Da exclusividade

Jairo Moura

Se buscamos uma relação de causalidade forte entre o que observamos e esperamos encontrar, sabemos que a religião não explica satisfatoriamente os fatos do mundo. Suas previsões são vagas e não raramente dependem de uma interpretação ad hoc para comprová-las. Maiores aprofundamentos sobre o assunto estão expostos nos vários livros a que temos disposição, e o seu número aumenta conforme dominamos línguas estrangeiras. Desde os fragmentos em grego antigo de Epicuro, até o inglês moderno de Dawkins, não faltam exemplos de obras que expõem a incoerência da crença em divindades, sejam elas pessoais ou não.

Para não sermos repetitivos, resta partirmos dessa premissa e analisarmos algumas das razões pelas quais, mesmo com toda essa massiva produção intelectual, a religião e seus mais diversos seguidores permanecem fiéis — na acepção mais legítima da palavra — em suas crenças. Em outras palavras, deixemos de lado, ao menos por enquanto, uma análise ontológica da divindade. Passemos, então, a abordar aspectos sócio-antropológicos do fenômeno religioso, na busca de traços mais gerais que nos permitam entender o que nos leva a ter comportamentos contrários aos pressupostos que julgamos verdadeiros, adquiridos depois de muito estudo acumulado.

É comum ouvirmos a alegação de que a religião transmite a ideia de paz e de tranquilidade. Mas por quê? Não vemos guerras religiosas e conflitos ideológicos o tempo todo? Não vemos cismas e juras de ódio por dissidentes tão frequentemente? Não vemos discursos de ojeriza e de concorrência para com as seitas rivais? Isso tudo não seria suficiente para retirar da religião a aura de austeridade? Se ainda ouvimos tais alegações, concluímos obviamente que não. Mesmo com toda a reprovação desses acontecimentos, mesmo com toda a revolta que nos causa sermos tão intolerantes nesses aspectos, mesmo com todo o sentimento de repúdio a comportamentos tão primitivos, o que vemos, em geral, é que eles estão bem longe de nossa realidade.

Podemos, é claro, discordar desse viés e apontar vários exemplos de casos iguais ou muito semelhantes que ocorrem em nosso meio. No entanto, a depender de nosso grau de parcialidade com a questão, teremos na ponta da língua as justificativas que nos dão a prerrogativa para agirmos da forma que não suportamos ver outros agirem. Neles, é apenas a expressão mais brutalizada da falta de civilidade; em nós, é a máxima liberdade de expressão e de consciência contra algo que julgamos ter bons motivos para rejeitar. “Ao menos não matamos quem discorda de nós”, poderíamos dizer, aqui no Brasil, sobre os conflitos do Oriente Médio. E se, ao pesquisarmos notícias nacionais, encontrássemos casos de homicídio que seguem os mesmos padrões, diríamos apenas que são exceções, muito mais relacionadas com algum distúrbio mental ou de caráter dos agentes, do que com a influência de nossas ideologias sobre eles.

Tiremos a nossa incrível capacidade de autoengano de questão, por ora. Se ignoramos o que deveria ser um ponto negativo, deve ser porque os pontos positivos superam os prejuízos. Mas que pontos positivos podemos elencar? Devemos começar, já que é uma alegação recorrente, pelo conforto que os ritos ou os rituais religiosos podem nos oferecer. Afinal de contas, o prazer é uma medida que todos nós usamos para identificar se a repetição de certa atividade nos é útil. Por analogia, se sentimos prazer praticando esportes, é muito provável que nos sintamos compelidos a praticá-los cada vez mais. E se, ao invés de prazer, sentimos desconforto pela falta de habilidade em um determinado jogo, a tendência é que evitemos nos expor ao embaraço.

Com esse raciocínio, podemos começar nossa análise. Partamos do cristianismo, por ser o grupo mais populoso para nós, tendo experimentado — ou a menos conhecido, dada a massiva exposição — alguns de seus rituais. Seja na forma da missa católica ou do culto protestante, as características básicas são as mesmas: uma reunião periódica com indivíduos que frequentam o mesmo espaço, supostamente com os mesmos objetivos. Já não é o bastante para que sintamos uma forte conexão? Tirando os detalhes pertinentes somente aos ritos religiosos, não é o mesmo sentimento que temos em um encontro no qual todos temos os mesmos hobbies? Por oposição, teríamos esse sentimento, caso estivéssemos em uma comemoração na qual todos partilham do mesmo gosto musical, menos nós? Acompanharíamos os refrãos com o mesmo entusiasmo, se sequer sabemos a letra?

Pois bem: reuniões religiosas nos dão um sentimento de união e de conexão com os demais indivíduos, mas é só? Obviamente não. Entretanto, os detalhes ulteriores dependem de que reunião costumamos participar. Da mesma forma que não sentimos as mesmas respostas de prazer em um clube de leitura e em um ginásio esportivo, não sentiremos as mesmas respostas em cultos mais calmos e noutros mais agitados. Dependendo de nossas preferências, podemos escolher o que mais nos agrada, considerando a variedade existente. Mesmo dentro da igreja católica, para citar o exemplo do que deveria ser uma unidade, há missas mais “animadas” e outras mais introspectivas. Há padres que valorizam o movimento, e outros que valorizam o sentimento de profundidade mental. Há oferta suficiente para satisfazer os vários tipos de fregueses.

O que devemos ter em mente, com esses dados em mãos, é que essas respostas, independentemente de quais sejam, são consideradas tipicamente religiosas porque aprendemos, geração após geração, que assim o são. Mesmo com o esvaziamento de muitos deles, temos feriados tipicamente cristãos, como a Páscoa ou o Natal, cada qual com determinados tipos de celebração, com tradições — religiosas ou seculares — bem enraizadas, com rituais que por vezes destoam de nossas vidas comuns. Se Natal, por nossa configuração pessoal, significa a reunião de toda a família, não será difícil traçar uma correlação entre eles — e já deve restar bem clara a diferença entre correlação e causalidade.

Historicamente, em tempos de forte controle social exercido pela religião, esses ritos mais centrais eram tão sacralizados que sua atuação era exclusiva do culto — e logo vem à mente toda a liturgia. Tiremos o canto, por exemplo. Uma das mais belas formas de música sacra é o canto gregoriano: tipo de canto implementado pelo papa Gregório I, monódico e geralmente não acompanhado por outros instrumentos musicais, que consiste em pequenos versos entoados repetidamente por vozes masculinas. Some-se a isso a acústica de uma catedral com seus poderosos ecos, e teremos um belo conjunto representativo de contemplação.

Um exemplo fácil para ilustrar nosso ponto é o Kyrie Eleison. Composta apenas dos versos gregos “Κύριε ἐλέησον, Χριστὲ ἐλέησον, Κύριε ἐλέησον”, a canção pode durar por vários minutos. Os versos originais talvez não sejam familiares para a maioria de nós, mas servem perfeitamente para que entendamos um importante aspecto: sem sabermos exatamente o conteúdo de certa atividade, como podemos discernir se é religiosa ou não? Por costume, geralmente. Esse tipo de musicalidade está profundamente associado à figura dos monges e a tradução dos versos não deixa dúvidas da conexão: “Senhor, tende piedade; Cristo, tende piedade; Senhor, tende piedade”.

Poderíamos, contudo, criar uma canção que seguisse as mesmas características musicais, mas que deixasse de lado o conteúdo religioso? Nihil obstat. O leitor mais curioso, por sinal, não demorará a encontrar exemplos. O sentimento é o mesmo? Certamente. Para aqueles que apreciam o estilo musical, não sentirão senão paz e conforto. Parece restar entendido que não é o conteúdo religioso que nos transmite tais sentimentos, mas algum tipo de configuração cerebral que nos permite admirar a monotonia e conectá-la com algum tipo de sentimento austero. Em outras situações, a maioria de nós sente o mesmo ao observarmos cachoeiras, só para citar um exemplo completamente laico ― que, aliás, nos permite traçar um paralelo entre os adoradores da “natureza”.

É exatamente nessas linhas que os estudos mais recentes da psicologia evolutiva buscam descrever as nossas capacidades. Segundo eles, a religião não cria esses sentimentos, mas, assim como qualquer outra área artístico-cultural, apenas se apropria de configurações biológicas, que não necessariamente foram selecionadas para tais propósitos. Dessa forma, não se tratam de características filtradas pela seleção natural, mas de produtos acidentais (by-products) que surgem da justaposição de características independentes. Comparando com nossas ferramentas, seria algo como comprar um microcomputador como uma importante fonte de estudos, e descobrir que podemos usá-lo para muitas outras atividades, como entretenimento e comunicação.

Não é difícil concluir que a religião não detém qualquer tipo de patente sobre os neuroreceptores cerebrais estimulados durante a execução deste ou daquele ritual. Se só conseguimos sentir certas sensações durante cultos de qualquer espécie, isso diz muito mais sobre nossas rotinas sociais do que sobre qualquer benefício intrínseco da prática religiosa. Se, na maioria das vezes, não conseguimos os benefícios da química cerebral sem os transtornos de uma congregação, deve ser muito provavelmente porque aprendemos socialmente que aquele é o lugar e o tempo devido para senti-los. Não é por isso que poupamos intervenções de sanidade mental em cultos religiosos? Fora daquele círculo, todas as “possessões” não seriam encaradas como desvios do que consideramos aceitável, em termos de comportamento?

Se ainda restam dúvidas, pensemos na meditação. Sua fórmula mais comum envolve práticas religiosas advindas do que chamamos de oriente e, dadas as circunstâncias, dificilmente encontraremos um mantra original recitado em língua portuguesa. Mas isso nos impede de aproveitarmos as técnicas de relaxamento? Será que precisamos aceitar a divindade das vacas, como é costume do hinduísmo? Para os seus adeptos, elas recitam o mantra om (ॐ), considerado o mais importante deles, relacionado ao som do próprio universo. De fato, em nossa comunidade, são animais que não costumam gozar do mesmo prestígio, servindo-nos principalmente como fonte de leite e de carne. Mas isso configura qualquer impedimento para meditarmos, enquanto nos concentramos na nossa própria respiração?

Assim, ao invés de comunhão com deus(es), passamos a explicar os sentimentos de acordo com os seus desdobramentos: técnicas de respiração, passatempos relaxantes, métodos de introspecção etc. Não precisamos, portanto, do intermédio das religiões para atingirmos os tais estados mentais. Com o conhecimento que temos em nosso tempo, elas parecem mais como atravessadores cujos impostos se tornaram muito caro manter ― principalmente por descobrirmos como pegar direto da fonte. E, mesmo assim, continuamos a ver pessoas aderindo às suas causas. Disso tiramos duas conclusões principais: 1) as religiões, ainda que de maneira pouco eficiente, funcionam com relação ao que propõem; e 2) somos viciados nesses sentimentos e julgamos mal a relação custo/benefício, já que tudo o que está em jogo é apenas saciar as nossas vontades ― “assim na terra, como no céu”.

As explicações podem ser infantis, mas o sentimento está lá. Concorrente das religiões no quesito “explicar”, costuma-se acusar a ciência de ser fria demais para opor uma guerra que possa ganhar: simplesmente descrever os processos mentais, usando nomes como “dopamina” ou “serotonina”, está longe de dar o mínimo de satisfação que quinze minutos de meditação podem nos oferecer. E a comparação não está muito distante da diferença entre desenhar as ligações químicas do tetraidrocanabinol e fumar um cigarro de Cannabis sativa. Que não se espantem os leitores com a comparação a psicotrópicos, porque, no fundo, o princípio é o mesmo: alterar com artifícios o que o cérebro só nos daria em resposta a comportamentos que propiciem a nossa sobrevivência e/ou procriação.

 

Leituras recomendadas

BOYER, Pascal. Religion: bound to believe? Disponível em: <http://artsci.wustl.edu/~pboyer/PBoyerHomeSite/articles/2008BoyerReligionEssay.pdf>. Último acesso em 29 jun. 2011. [em inglês]

DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

EPICURO. Pensamentos. São Paulo: Martin Claret, 2005.

HARRIS, Sam. How to meditate. Disponível em: <http://www.samharris.org/blog/item/how-to-meditate/>. Último acesso em 29 jun. 2011. [em inglês]

HUME, David. Investigação sobre o entendimento humano. São Paulo: UNESP, 2005.

PYYSIÄINEN, Ilkka; HAUSER, Marc. The origins of religion: evolved adaptation or by-product? Disponível em <http://www.wjh.harvard.edu/~mnkylab/publications/recent/EvolReligion.pdf>. Último acesso em 30 nov. 2010. [em inglês]

 

Ilustrações

Kyrie Eleison, canção entoada pelos monges beneditinos de Santo Domingo. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=aah_ITLw3R8>. Último acesso em 30 jun. 2011. [em grego]

Ord, canção composta e tocada pela banda Ulver, misturando motivos gregorianos com letras não religiosas. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=04el46gWkWI>. Último acesso em 30 jun. 2011. [em norueguês]

At Giza, canção composta e tocada pela banda Om, que mistura heavy metal com motivos hindus. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=dAXNBS2sEeg>. Último acesso em 30 jun. 2011. [em inglês]