Investigação Acerca do Entendimento Humano

David Hume

Seção I

Das diferentes classes de filosofia [1]

A filosofia moral, ou ciência da natureza humana [2], pode ser tratada de duas maneiras diferentes; cada uma delas tem seu mérito peculiar e pode contribuir para o entretenimento, instrução e reforma da humanidade. A primeira considera o homem como nascido principalmente para a ação; como influenciado em suasavaliações pelo gosto e pelo sentimento; perseguindo um objeto e evitandooutro, segundo o valor que esses objetos parecem possuir e de acordo com a luzsob a qual eles próprios se apresentam. Como se admite que a virtude é o mais valioso dos objetos, os filósofos desta classepintam-na com as mais agradáveis cores e, valendo-se da poesia e da eloquência,discorrem acerca do assunto de maneira fácil e clara: o mais adequado paraagradar a imaginação e cativar as inclinações. Escolhem, na vida cotidiana, as observações e exemplos mais notáveis, colocam oscaracteres opostos num contraste adequado e, atraindo-nos para oscaminhos da virtude com visões de glória e de felicidade, dirigem nossos passosnestes caminhos com os mais sadios preceitos e os mais ilustres exemplos.Fazem-nos sentir a diferença entre o vício e a virtude; excitam eregulam nossos sentimentos; e se eles podem dirigir nossos corações para o amorda probidade e da verdadeira honra, pensam que atingiram plenamente o fim detodos os seus esforços.

Os filósofos da outra classe consideram o homemmais um ser racional que um ser ativo, e procuram formar seu entendimento em lugar demelhorar-lhe os costumes. Consideram a naturezahumana objeto de especulação e examinam-na com rigoroso cuidado a fim deencontrar os princípios que regulam nosso entendimento, excitam nossossentimentos e fazem-nos aprovar ou censurar qualquer objeto particular, ação ouconduta. Julgam uma desgraça para toda a literatura que a filosofia não tenhaestabelecido, além da controvérsia, o fundamento da moral, do raciocínio e dacrítica; e que sempre tenha que falar da verdade e da falsidade, do vício e davirtude, da beleza e da fealdade, sem ser capaz de determinar a fonte destasdistinções. Enquanto tentam realizar esta árdua tarefa, nenhuma dificuldade osdesencoraja; passam de casos particulares para princípios gerais, e conduzemainda mais suas investigações para princípios maisgerais, e não ficam satisfeitos até chegar àqueles princípios primitivos que,em toda ciência, devem limitar toda curiosidade humana. Embora suasespeculações pareçam abstratas e mesmo ininteligíveis aos leitores comuns,aspiram à aprovação dos eruditos e dos sábios e consideram-se suficientementecompensados pelo esforço de toda a existência se puderem descobrir algumasverdades ocultas que possam contribuir para o esclarecimento da posteridade.

Certamente, a filosofia fácil e dada terá sempre preferência, para amaioria dos homens, sobre a filosofia exata e abstrusa; e por muitos serárecomendada, não apenas como a mais agradável, mas também como mais útil do quea outra. Ela penetra mais na vida cotidiana, molda o coração e os afetos, e aoatingir os princípios que impulsionam os homens, reforma-lhes a conduta eaproxima-os mais do modelo de perfeição que ela descreve. Ao contrário, afilosofia abstrusa, alicerçada numa concepção que não pode penetrar na vidaprática e na ação, desvanece quando o filósofo sai da sombra e penetra no diaclaro, nem seus princípios podem manter facilmente qualquer influência sobrenossa conduta e nossos costumes. Os sentimentos de nosso coração, a perturbaçãode nossas paixões e a impetuosidade de nossas emoções, dissipam todas as suasconclusões e reduzem o filósofo profundo a um simples plebeu.

É preciso também reconhecer que a filosofia fácil adquiriu a maisdurável como também a mais justa fama, e que os raciocinadores abstratos têmapenas, até aqui, gozado de uma reputação momentânea, nascida do capricho ou daignorância de sua própria época, mas eles não têm sido capazes de manter suafama ante o juízo equitativo da posteridade. Um filósofo profundo podefacilmente cometer um erro em seus raciocínios sutis, e um erro énecessariamente gerado de um outro, visto que ele o desenvolve até suasconsequências e não é dissuadido em adotaruma conclusão de aspecto incomum ou por ser contrária à opinião popular. Masum filósofo que apenas se propõe representar o sentimento comum da humanidadenas cores mais belas e mais agradáveis, se por acidente cai em erro, recorrenovamente ao senso comum e aos sentimentos naturais do espírito e assim voltaao caminho certo e se protege de ilusões perigosas. A fama de Cícero floresceno presente, mas a de Aristóteles está completamente decadente. La Bruyéreultrapassou os mares e ainda mantém sua reputação; todavia, a glória deMalebranche está limitada à sua própria nação e à sua própria época. Addison,talvez, será lido com prazer quando Locke estiver completamente esquecido. [3]

O mero filósofo é geralmente uma personalidade pouco admissível nomundo, pois supõe-se que ele em nada contribui para o benefício ou para oprazer da sociedade, porquanto vive distante de toda comunicação com os homense envolto em princípios e noções igualmente distantes de sua compreensão. Poroutro lado, o mero ignorante é ainda mais desprezado, pois não há sinal maisseguro de um espírito grosseiro, numa época e uma nação em que as ciênciasflorescem, do que permanecer inteiramente destituído de toda espécie de gostopor estes nobres entretenimentos. Supõe-se que o caráter mais perfeito seencontra entre estes dois extremos: conservaigual capacidade e gosto para os livros, para a sociedade e para os negócios;mantém na conversação discernimento e delicadeza que nascem da culturaliterária; nos negócios, a probidade e a exatidão que resultam naturalmente deuma filosofia conveniente. Para difundir e cultivar um caráter tãoaperfeiçoado, nada pode ser mais útil do que as composições de estilo emodalidade fáceis, que não se afastam em demasia da vida, que não requerem,para ser compreendidas, profunda aplicação ou retraimento e que devolvem oestudante para o meio de homens plenos de nobres sentimentos e de sábiospreceitos, aplicáveis em qualquer situação da vida humana. Por meio de taiscomposições, a virtude torna-se amável, a ciência agradável, a companhiainstrutiva e a solidão um divertimento.

O homem é um ser racional e, como tal, recebe da ciência sua adequadanutrição e alimento. Mas os limites do entendimento humano são tão estreitosque pouca satisfação se pode esperar neste particular, tanto pela extensão comopela segurança de suas aquisições.

O homem é um ser sociável do mesmo modo que racional. No entanto, nemsempre pode usufruir de uma companhia agradável e divertida ou conservar ogosto adequado para ela. O homem é também um ser ativo, e esta tendência, bemcomo as várias necessidades da vida humana, o submete necessariamente aosnegócios e às ocupações; todavia, o espírito precisa de algum repouso, já quenão pode manter sempre sua inclinação para o cuidado e o trabalho. Parece,pois, que a Natureza indicou um gênero misto de vida como o mais apropriado àraça humana, e que ela secretamente advertiu aos homens de não permitirem anenhuma destas tendências arrastá-los em demasia, de tal modo que ostorne incapazes para outras ocupações e entretenimentos. Tolero vossa paixãopela ciência, diz ela, mas fazei com que vossa ciência seja humana de tal modoque possa ter uma relação direta com a ação e a sociedade. Proíbo-vos opensamento abstruso e as pesquisas profundas; punir-vos-ei severamente pelamelancolia que eles introduzem, pela incerteza sem fim na qual vos envolvem epela fria recepção que vossos supostos descobrimentos encontrarão quandocomunicados. Sede um filósofo, mas, no meio de toda vossa filosofia, sedesempre um homem. [4]

Se, em geral, os homens se contentassem empreferir a filosofia fácil à abstrata e profunda, sem censurar ou desprezar a última, não seria, talvez,inadequado, concordar com esta opinião geral e permitir a cada homem o direitode desfrutar livremente de seu próprio gosto e sentimento. Mas, como a questãoé, frequentemente, levada mais longe, até a completa rejeição de todoraciocínio profundo, ou o que é geralmente denominado de metafísica,passaremos a examinar o que se pode considerar razoável pleitear em seu favor.

Podemos começar observando que uma vantagem considerável que resulta dafilosofia abstrata e exata consiste em sua utilidade para a filosofia fácil ehumana, a qual, sem a primeira, nunca poderia alcançar um grau suficiente deexatidão em suas opiniões, preceitos ou raciocínios. As belas-letras não sãooutra coisa senão pinturas da vida humana em diversas atitudes e situações, quenos infundem diferentes sentimentos de louvor ou de censura, de admiração ou dezombaria, de acordo com as qualidades dos objetos que elas colocam diante denós. Um artista estará mais bem qualificado para triunfar em seu empreendimentose possui, além de gosto delicado e de rápida compreensão, um conhecimentoexato da estrutura interna do corpo, das operações do entendimento, dofuncionamento das paixões e das diversas espécies de sentimentos que distinguemo vício e a virtude. Por mais árdua que possa parecer esta pesquisa ouinvestigação interna, ela se toma, em certa medida, indispensável àqueles quequiserem descrever com sucesso as aparências exteriores e patentes da vida edos costumes. O anatomista apresenta aos olhos os objetos mais hediondos edesagradáveis, porém sua ciência é útil ao pintor, quando desenha até mesmo umaVênus ou uma Helena. Enquanto o pintor emprega as cores mais ricas de sua artee dá às suas figuras o aspecto mais gracioso e o mais atraente, deve aindadirigir sua atenção para a estrutura interna do corpo humano: a posição dosmúsculos, o sistema ósseo e a forma e função de cada parte ou órgão. A exatidãoe, em todos os casos, vantajosa à beleza, e o raciocínio justo ao sentimentodelicado. Em vão exaltaríamos uma desvalorizando a outra.

Além disso, podemos observar em todas as artes ou profissões, mesmo asque mais se relacionam com a vida ou com aação, que um espírito de exatidão, por qualquer meio adquirido, asconduz mais perto da perfeição e as torna mais úteis aos interesses dasociedade. Embora um filósofo possa viver longe dos negócios, o espírito dafilosofia, se cuidadosamente cultivado por alguns, difunde-se gradualmenteatravés de toda a sociedade e confere a todas as artes e profissões semelhantecorreção. O político adquirirá maior previsão e sutileza na divisão e noequilíbrio do poder, o advogado, mais método e princípios mais sutis em seusraciocínios, o general, mais regularidade em sua disciplina, mais cautela emseus planos e em suas manobras. A maior estabilidade dos governos modernossobre os antigos e a exatidão da filosofia moderna têm melhorado, eprovavelmente melhorarão ainda mais, por gradações semelhantes.

Se não houvesse nenhuma vantagem a ser colhida destes estudos além dasatisfação de uma curiosidade ingênua, mesmo assim este resultado não devia serdesprezado, pois ele se acrescenta aos poucos prazeres seguros e inofensivosque são conferidos à raça humana. O caminho da vida, o mais agradável e o maisinofensivo, passa pelas avenidas da ciência e do saber; e, quem quer que possaremover quaisquer obstáculos desta via ou abrir uma nova perspectiva, deve serconsiderado um benfeitor da humanidade. Embora estas pesquisas possam parecerárduas e fatigantes, ocorre aqui como com certos espíritos ou com certos corposque, por estarem dotados de grande vitalidade, necessitam de exercícios severose colhem prazer daquilo que, para a maioria dos homens, parece penoso elaborioso. A obscuridade é, de fato, penosa tanto para o espírito como para osolhos; todavia, trazer luz da obscuridade, por mais trabalhoso que seja, deveser agradável e regozijador.

Mas, objeta-se, a obscuridade da filosofia profunda e abstrata não éapenas penosa e fatigante, como também é uma fonte inevitável de incerteza e deerro. Na verdade, esta é a objeção mais justa e mais plausível contra uma parteconsiderável da metafísica, que não constitui propriamente uma ciência, masnasce tanto pelos esforços estéreis da vaidade humana que queria penetrar emrecintos completamente inacessíveis ao entendimento humano, como pelos artifícios das superstições populares que,incapazes de se defenderem lealmente, constroem estas sarças emaranhadaspara cobrir e proteger suas fraquezas. Perseguidos em campo aberto, estessalteadores correm para a floresta e põem-se de emboscada para surpreender todaavenida desguarnecida do espírito, a fim de dominá-lo com temores epreconceitos religiosos. O antagonista mais valente é subjugado se, por ummomento, suspende sua guarda. Muitos por covardia e tolice abrem os portõespara os inimigos e voluntariamente os recebem com reverência e submissão comose fossem seus soberanos legítimos.

Mas esta é uma razão suficiente para que os filósofos desistam de taispesquisas e deixem a superstição para sempre em posse de seu refúgio? Não émais conveniente tirar uma conclusão contrária e perceber a necessidade deconduzir a guerra no mais secreto abrigo do inimigo? Em vão esperamos que oshomens, em virtude de frequentes decepções, abandonem finalmente estas ciênciasetéreas e descubram o verdadeiro campo da razão humana. De fato, além de muitaspessoas empenharem-se sensatamente em sempre repetir semelhantes ponderações,além disso, digo eu, nas ciências nunca há razão para desesperar; embora osesforços anteriores tenham fracassado, há ainda esperança de que a diligência,a boa sorte ou a sagacidade aperfeiçoada de gerações sucessivas possam alcançardescobertas desconhecidas das épocas anteriores. Todo espírito aventureiro selançará para a conquista do difícil prêmio e se verá mais estimulado do quedesencorajado pelas falhas de seus predecessores, porquanto espera que a glóriade terminar uma aventura tão difícil lhe é reservada. O único método paralibertar de vez o saber destas questões abstrusas consiste em examinarseriamente a natureza do entendimento humano e mostrar, por meio de uma análiseexata de suas faculdades e capacidades, que ela não é, de nenhuma maneira,adequada a assuntos tão remotos e abstrusos. Devemos submeter-nos a esta fadigaa fim de viver tranquilos todo o resto do tempo, e devemos cultivar averdadeira metafísica com cuidado para destruir a metafísica falsa eadulterada. A indolência que, para algumas pessoas, oferece proteção contraesta filosofia enganadora é para outras superada pela curiosidade; e odesespero que em alguns momentos prevalece pode ser seguido de grandesesperanças e de expectativas otimistas. O raciocínio exato e justo é o únicoremédio universal adequado a todas as pessoas e aptidões, o único capaz dedestruir a filosofia abstrusa e o jargão metafísico que, mesclados com asuperstição popular, se tomam, por assim dizer, impenetráveis aos pensadoresdescuidados e se afiguram como ciência e sabedoria. [5]

Além das vantagens de rejeitar, após a investigação deliberada, oaspecto mais incerto e desagradável do conhecimento, há muitas vantagens queresultam de uma inquirição exata dos poderes e das faculdades da naturezahumana. É curioso que as operações do espírito, não obstante mais intimamenteligadas a nós, surjam envoltas em obscuridade todas as vezes que se tornam objetoda reflexão e a visão é incapaz de discernir com facilidade as linhas e oslimites que as separam e as distinguem. Os objetos são muito tênues parapermanecer por muito tempo sob o mesmo aspecto ou situação e devem serapreendidos num instante, por uma perspicácia superior recebida da natureza edesenvolvida pelo hábito e pela reflexão. Deste modo, apenas conhecer asdiferentes operações do espírito, sua separação, sua classificação emcategorias apropriadas e a correção da aparente desordem em que se encontramconstitui uma parte considerável da ciência, quando elas são tomadas comoobjeto da reflexão e da pesquisa. Esta tarefa de organização e de distinção,que não tem mérito quando feita em relação aos corpos externos que são osobjetos de nossos sentidos, aumenta de valor quando se dirige às operações doespírito, em proporção à dificuldade e ao esforço que encontramos aorealizá-la. Se não pudermos ir além desta geografia mental ou do delineamentodas distintas partes e faculdades do espírito, ao menos será satisfatóriochegar até lá; por mais evidente que possa parecer esta ciência — e de nenhummodo o é — mais desprezível ainda deve ser considerada sua ignorância por todosaqueles que pretendem alcançar o saber e a filosofia.

Nenhuma dúvida pode subsistir de que esta ciênciaé incerta e quimérica, a não ser que nos nutramos de um tal ceticismo que destrua inteiramentetoda especulação e mesmo toda ação. Não hádúvidas de que o espírito está dotado de diversos poderes e faculdades, queesses poderes são distintos uns dos outros, que o que é realmentediferente de imediato para a percepção pode ser discernido pela reflexão e, porconseguinte, em todas as proposições que se referem a este tema há uma verdadee uma falsidade que não estão fora do alcance do entendimento humano. Há muitasdistinções evidentes deste gênero, como aquelas entre a vontade e oentendimento, a imaginação e as paixões, que podem ser compreendidas por todacriatura humana. As distinções mais sutis e mais filosóficas não são menos reaise certas, embora mais difíceis de ser compreendidas.Alguns exemplos, especialmente recentes, de êxitos obtidos nestas investigaçõespodem dar-nos uma noção mais justa da certeza e da solidez deste ramo dosaber. Ora, estimaremos valioso o esforço de um filósofo que nos dá umverdadeiro sistema dos planetas e estabelece a posição e a ordem daquelescorpos remotos, enquanto afetamos desdenhar aqueles que, com igual êxito,determinam as partes do espírito que nos dizem respeito tão de perto? [6]

Mas não podemos esperar que a filosofia, se cuidadosamente cultivada eencorajada pela atenção do público, possa levar suas indagações ainda maislonge e descubra, pelo menos em parte, as fontes e os princípios secretos queimpulsionam o espírito humano em suas operações? Os astrônomos contentaram-sedurante muito tempo em provar, a partir dos fenômenos, o movimento verdadeiro,a ordem e a grandeza dos corpos celestes até que surgiu um filósofo [7] que,mediante um feliz raciocínio, parece haver determinado também as leis e forçasque dirigem e governam as revoluções dos planetas. E não há razão para temerque não tenhamos o mesmo êxito em nossas investigações acerca da organização edas faculdades mentais, se realizadas com omesmo talento e cautela. É provável que uma operação e um princípio do espíritodependam de uma outra operação e de um outro princípio que, por seuturno, possam reduzir-se a uma outra operação e a um outro princípio mais gerale mais universal. E ser-nos-á muito difícil determinar exatamente até onde épossível levar nossas investigações, antes — e mesmo depois — de um cuidadosoexame. É verdade que tentativas deste tipo são feitas todos os dias, mesmo poraqueles que filosofam de maneira mais negligente. E nada pode ser maisnecessário que ingressar no empreendimentocom o máximo cuidado e atenção, de modo que, se está ao alcance doentendimento humano, pode ser levado a cabo com felicidade, e, se não está,pode ser rejeitado com alguma confiança e segurança. Esta última conclusão,certamente, não é desejável e não sedeveria aceitá-la com muita precipitação. Porque, se assim fosse, em quantodeveríamos diminuir a beleza e o valor desta classe de filosofia? Atéagora, os moralistas estão habituados, quando consideram a multiplicidade e adiversidade das ações que despertam nossa aprovação ou nossa repulsa, aprocurar um princípio comum do qual poderia depender esta variedade deopiniões. E, embora tenham às vezes levado o assunto demasiado longe devido àsua paixão por algum princípio geral, é preciso reconhecer que, sem dúvida, sãodesculpáveis quando esperam encontrar alguns princípios gerais, aos quais comjustiça se poderiam reduzir todos os vícios e virtudes. Análogos têm sido osesforços dos críticos, dos lógicos e mesmo dos políticos; nem têm sido suastentativas completamente malogradas, embora com o correr do tempo, com maiorexatidão e aplicação mais zelosa, possam aproximar ainda mais essas ciências desua perfeição. Renunciar de imediato atodas as pretensões desse tipo pode ser justamente julgado uma conduta maisimpetuosa, mais precipitada e mais dogmática do que a mais confiante e a maisafirmativa das filosofias, que jamais tentou impor aos homens seus preceitos eprincípios incompletos.

Que importa se estes raciocínios sobre a natureza humana pareçamabstratos e de difícil compreensão? Isto não nos induz a nenhuma pressuposiçãoacerca de sua falsidade. Pelo contrário, parece impossível que o que até agoratem escapado a tantos sábios e profundos filósofos seja muito fácil e evidente.Sejam quais forem os sofrimentos que estas pesquisas possam custar-nos, podemosconsiderar-nos suficientemente recompensados, não apenas em matéria deutilidade, mas por puro prazer, se pudermos assim aumentar nosso acervo deconhecimento acerca de assuntos de tão indiscutível importância.

Mas como, finalmente, o caráter abstrato destas especulações não asrecomendam mas lhes são desvantajosas, e como esta dificuldade pode talvezsuperar-se com engenho e arte, por evitar todo pormenor desnecessário, nós temostentado, na investigação que segue, lançar alguma luz sobre temas a propósitodos quais se têm mostrado os sábios, até agora, desanimados pela incerteza, eos ignorantes, pela obscuridade. Ficaríamos felizes se pudéssemos unir asfronteiras das diferentes correntes de filosofia, reconciliando a investigaçãoprofunda com a clareza e a verdade com a originalidade. E mais felizes aindase, raciocinando desta maneira fácil, pudéssemos destruir os fundamentos dafilosofia abstrusa, que até agora apenas parece haver servido de refúgio àsuperstição e de abrigo ao erro e ao absurdo.

  1. Nesta seção, Hume apresenta os principais objetivos desta Investigação.Por este motivo, ela corresponde, como muito bem observa Flew, à parteintrodutória do Tratado, em que Hume mostra que a discrepância existenteentre “filosofia e ciência” decorre do fato de elas não se fundamentarem embase comum. A seguir, revela que o caminho mais indicado para solucionar oproblema consiste em principiar estudando a “ciência do homem”, já que “todasas ciências têm uma relação, maior ou menor, com a natureza humana”. A. Flew, Hume’s Philosophy of Belief, Routlege& Kegan Paul, Londres, 1961, pp. 1-7.
  2. Ao identificar sua filosofia com a “filosofia moral, ou ciência danatureza humana”, Hume está indicando que o termo filosofia, como era entendidono século XVIII, tinha um amplo significado.
  3. Nas edições K e L, aparecia a seguinte nota: “Não se intenciona denenhum modo depreciar o mérito de Locke, que foi realmente um grande filósofo,pois raciocina com correção e modéstia. Pretende-se apenas mostrar o destinocomum deste gênero de filosofia abstrata”.
  4. A filosofia “fácil” considera seu tema adequado as ações humanas(ela visualiza o homem como “nascido para a ação”), e tem como fim inculcar avirtude. Seu método consiste no uso de exemplos que permitem inculcar avirtude. A filosofia “difícil” considera seu tema apropriado às especulaçõesmetafísicas acerca da natureza (isto é, das “essências ocultas”) do homem e domundo externo, pois o homem é considerado um “ser racional” que pode desvendara natureza das coisas. Seu fim é a verdade absoluta acerca desta naturezaimutável. Seu método é a “instrução” ou a apreensão do conhecimento através deuma longa cadeia de raciocínios. Uma filosofia adequada, sustenta Hume, devecombinar o tema, o método e o fim dessas duas classes de filosofia, pois adualidade da natureza humana parece ser um dos principais objetivos da Investigação.Desta maneira, o tema adequado é o “entendimento humano” em suas operações racionais e volitivas, já que o entendimentohumano pode ser entendido como aquilo que é capaz de conhecer-se a simesmo como centro do pensamento e da ação. O fim adequado diz respeito a umcontínuo desenvolvimento reflexivo de nossa compreensão do entendimento humanoe de suas operações (veja-se seção III). E o método apropriado é aquele quepossibilita esta continua autorreformação (veja-se seção II, nota 11). E assimque o entendimento humano chega a descobrir o que pode ser conhecido e o quepode ser feito, ou melhor, o objeto apropriado sobre o qual o entendimentohumano pode e deve operar e os princípios adequados que devem conduzir oshomens aos atos corretos. (R. Sternfeld, “TheUnity of Hume’s Enquiry concerning Human Understanding”, The Review ofMetaphysics, vol. III, 2,Dez., 1949, n. 10 pp. 167-188) [N. do T.] .
  5. A ênfase dada por Hume aos problemas da natureza e limites doentendimento humano reflete projeto semelhante ao de Locke, que no An Essayconcerning the Human Understanding, relata que seu livro nasceu quando ele,“com mais cinco ou seis amigos”, discorria sobre um “tópico bem remoto deste(isto é, Essay)”: “ficamos logo inertes, pelas dificuldades advindas detodas as partes. Depois de algum tempo de hesitação, sem nenhuma solução viávelacerca das dúvidas que nos haviam deixado perplexos, considerei que havíamosiniciado pelo caminho errado e que, antes de nos empenharmos em investigaçõesdesta natureza, devemos examinar nossas próprias habilidades para averiguar comquais objetos nossos entendimentos podem, ou não, tratar adequadamente” (ediçãoFrazer, Great Books, Chicago, 1952, p. 87). É preciso, todavia, observar que otexto de Hume deixa bem clara a intenção de empregar o mesmo descobrimento demaneira bem mais agressiva e mais categórica do que foi utilizado por Locke [N.do T.] .
  6. Nas edições K e L havia a seguinte nota: Esta faculdade que nospermite discernir o verdadeiro do falso e aquela que nos faz perceber adiferença entre o vício e a virtude têm sido por muito tempo confundidas umacom a outra. Supunha-se, deste modo, que toda temática moral estivesseconstruída sobre relações eternas e imutáveis, as quais, observadas porqualquer espírito inteligente, eram consideradas tão invariáveis como qualquerproposição acerca da quantidade e do número. Há pouco tempo um filósofo[Francis Hutcheson, citado em nota de rodapé] esclareceu-nos, mediante os maisconvincentes argumentos, que a moral não é nada quando encarada do ponto devista abstrato, sendo completamente relativa ao sentimento ou ao gosto de cadaser particular; do mesmo modo que as diferenças entre doce e amargo, quente efrio nascem do sentimento derivado de cada sentido ou de cada órgão. Convém,portanto, classificar as percepções morais, não com as operações doentendimento, mas com os gostos ou sentimentos. “Os filósofos tinham o habitode dividir todas as paixões do espírito em duas classes, as egoístas e asaltruístas, e supunham que elas estivessem em constante oposição e contradição.Pensavam, ainda, que as últimas jamais pudessem abarcar seu objeto apropriadosem referência às primeiras. Entre as paixões egoístas classificavam a avareza,a ambição e o espírito de vingança; entre as altruístas, a afeição natural, aamizade e o espírito público. Os filósofos já podem averiguar [vejam-se os Sermões de Butler] a inexatidão desta classificação. Ficou provado, de modoindubitável, que mesmo as paixões geralmente julgadas egoístas extravasam opróprio espírito na direção do objeto; que, embora a satisfação destas paixõesnos dê prazer, sua antecipação não é, todavia, a causa da paixão; ao contrário,a paixão precede o prazer e, sem a primeira, o último jamais teria podidoexistir; que esta é precisamente a situação das paixões denominadas altruístase que, por conseguinte, um homem não está mais interessado quando aspira à suaprópria glória do que quando a felicidade de seu amigo é o objeto de seus desejos; que ele não está mais desinteressadoquando sacrifica sua tranquilidade e seu repouso ao bem público do quequando trabalha para satisfazer sua avareza ou ambição. Eis, portanto. umajuste considerável entre as fronteiras das paixões, que têm sido confundidaspela negligência ou inexatidão dos filósofos precedentes. Estes dois exemplospodem servir para nos mostrar a natureza e a importância desta classe defilosofia”. E provável que Hume excluiu esta nota por considerá-la supérfluadepois da publicação de sua An Enquiry concerning the Principles of Morals,em 1751. Parece-nos, todavia, que ela pode esclarecer, especialmente pelamenção de Hutcheson, o projeto humiano. Ainfluência de Hutcheson sobre Hume, como mostra com acerto Smith, é maisconsiderável do que se supunha. O núcleo da teoria hutchesoniana consiste,segundo Smith, em considerar que o último fundamento de nossos juízos de valor,tanto morais como estéticos, não é a razão, mas o sentimento ou feeling.Hume não apenas adotou este ponto de vista, mas ampliou seu âmbito ao aplicá-loa todas as “questões de fato e de existência” (Investigação, seção IV).Hume antecipa, deste modo, a distinção entre “conhecimento” (nascido das “relaçõesde ideias” e restrito aos objetos matemáticos) e “crença” (inferida das “relaçõesde fatos” e englobando todos os outros objetos). Esta distinção é, em verdade,discutida com pormenores na seção IV desta Investigação. (Vejam-se de N. Kemp Smith, The Philosophy of DavidHume, Macmillan, 1949, capítulos I e II; de E. C. Mossner, The Life ofDavid Hume, Nelson, 1954, pp. 76-7; de F. Hutcheson, Inquiry into theOriginal of our Ideas on Beauty and Virtue, 1725, e Essay on the Natureand Conduct of the Passions and Affections, 1728.) [N. do T.]
  7. A analogia com a astronomia antes e depois deNewton indica quais os resultados que podem ser obtidos da pesquisa acerca das operações doentendimento humano. A aspiração manifestada por Hume no subtítulo do Tratado (“tentativa para introduzir o método do raciocínio experimental em objetosmorais”) — alusão evidente ao método de Newton e que lhe valeu o epíteto de sero Newton das ciências morais — é agora reduzida pela aspiração mais modesta defazer apenas uma “geometria mental”. Em verdade, a Investigação caracteriza-sepela maior ênfase dada aos problemas que dizem respeito à natureza,pressupostos e limitações de vários tipos de pesquisas. (Flew, obra citada, p.14.) [N. do T.]

Seção II

Da origem das ideias

Cada um admitirá prontamente que há uma diferençaconsiderável entre as percepções [1] do espírito, quando uma pessoa sente a dor do calorexcessivo ou o prazer do calor moderado, e quandodepois recorda em sua memória esta sensação ou a antecipa por meio de suaimaginação. Estas faculdades podem imitar ou copiar as percepções dossentidos, porém nunca podem alcançar integralmente a força e a vivacidade dasensação original. O máximo que podemos dizer delas, mesmo quando atuam com seumaior vigor, é que representam seu objeto de um modo tão vivo que quase podemosdizer que o vemos ou que o sentimos. Mas, a menos que o espírito estejaperturbado por doença ou loucura, nunca chegam a tal grau de vivacidade que nãoseja possível discernir as percepções dos objetos. Todas as cores da poesia,apesar de esplêndidas, nunca podem pintar os objetos naturais de tal modo quese tome a descrição pela paisagem real. O pensamento mais vivo é sempreinferior à sensação mais embaçada.

Podemos observar uma distinção semelhante em todas as outras percepçõesdo espírito. Um homem à mercê dum ataque de cólera é estimulado de maneiramuito diferente da de um outro que apenas pensa nessa emoção. Se vós me dizeisque certa pessoa está amando, compreendo facilmente o que quereis dizer-me eformo uma concepção precisa de sua situação, porémnunca posso confundir esta ideia com as desordens e as agitações reais dapaixão. Quando refletimos sobre nossas sensações e impressões passadas,nosso pensamento é um reflexo fiel e copia seus objetos com veracidade, porémas cores que emprega são fracas e embaçadas em comparação com aquelas querevestiam nossas percepções originais. Não é necessário possuir discernimentosutil nem predisposição metafísica para assinalar a diferença que há entreelas. Podemos, por conseguinte, dividir todas as percepções do espírito em duasclasses ou espécies, que se distinguem por seus diferentes graus de força e devivacidade. As menos fortes e menos vivas são geralmente denominadas pensamentos ou ideias. A outra espécie não possui um nome em nosso idioma e namaioria dos outros, porque, suponho, somente com fins filosóficos eranecessário compreendê-las sob um termo ou nomenclatura geral. Deixe-nos,portanto, usar um pouco de liberdade e denominá-las impressões,empregando esta palavra num sentido de algum modo diferente do usual. Pelotermo impressão entendo, pois, todas as nossas percepções mais vivas,quando ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou queremos. E asimpressões diferenciam-se das ideias, que são as percepções menos vivas, dasquais temos consciência, quando refletimos sobre quaisquer das sensações ou dosmovimentos acima mencionados. [2]

À primeira vista, nada pode parecer mais ilimitado do que o pensamentohumano, que não apenas escapa a todaautoridade e a todo poder do homem, mas também nem sempre é reprimido dentrodos limites da natureza e da realidade. Formar monstros e juntar formas eaparências incongruentes não causam à imaginação mais embaraço do que conceberos objetos mais naturais e mais familiares. Apesar de o corpo confinar-se numsó planeta, sobre o qual se arrasta com sofrimento e dificuldade, o pensamentopode transportar-nos num instante às regiões mais distantes do Universo, oumesmo além do Universo, para o caos indeterminado, onde se supõe que a Naturezase encontra em total confusão. Pode-se conceber o que ainda não foi visto ououvido, porque não há nada que esteja fora do poder do pensamento, exceto o queimplica absoluta contradição.

Entretanto, embora nosso pensamento pareça possuir esta liberdadeilimitada, verificaremos, através de um exame mais minucioso, que ele estárealmente confinado dentro de limites muito reduzidos e que todo poder criadordo espírito não ultrapassa a faculdade de combinar, de transpor, aumentar ou dediminuir os materiais que nos foram fornecidos pelos sentidos e pelaexperiência. Quando pensamos numa montanha de ouro, apenas unimos duas ideiascompatíveis, ouro e montanha, que outrora conhecêramos. Podemosconceber um cavalo virtuoso, pois o sentimento que temos de nós mesmos nospermite conceber a virtude e podemos uni-la à figura e forma de um cavalo, queé um animal bem conhecido. Em resumo, todos os materiais do pensamento derivamde nossas sensações externas ou internas; mas a mistura e composição delesdependem do espírito e da vontade. Ou melhor, para expressar-me em linguagemfilosófica: todas as nossas ideias ou percepções mais fracas são cópias denossas impressões ou percepções mais vivas.

Para prová-lo, espero que serão suficientes os dois argumentosseguintes. Primeiro, se analisamos nossos pensamentos ou ideias, por maiscompostos ou sublimes que sejam, sempre verificamos que se reduzem a ideias tãosimples como eram as cópias de sensações precedentes. Mesmo as ideias que, àprimeira vista, parecem mais distantes desta origem mostram-se, sob umescrutínio minucioso, derivadas dela. A ideia de Deus, significando o Serinfinitamente inteligente, sábio e bom, nasce da reflexão sobre as operações denosso próprio espírito, quando aumentamos indefinidamente as qualidades debondade e de sabedoria. Podemos continuar esta investigação até a extensão quequisermos, e acharemos sempre que cada ideia que examinamos é cópia de umaimpressão semelhante. Aqueles que dizem que esta afirmação não é universalmenteverdadeira, nem sem exceção, têm apenas um método, e em verdade fácil, pararefutá-la: mostrar uma ideia que, em sua opinião, não deriva desta fonte. Incumbir-nos-iaentão, se quiséssemos preservar nossa doutrina, de mostrar a impressão oupercepção mais viva que lhe corresponde.

Segundo, se ocorre que o defeito de um órgão prive uma pessoa de umaclasse de sensação, notamos que ela tem a mesma incapacidade para formar ideiascorrespondentes. Assim, um cego não pode ter noção das cores nem um surdo dossons. Restaurai a um deles um dos sentidos de que carecem: ao abrirdes asportas às sensações, possibilitais também a entrada das ideias, e a pessoa não terámais dificuldade para conceber aqueles objetos. O mesmo fenômeno ocorre quandoo objeto apropriado para estimular qualquer sensação nunca foi aplicado aoórgão do sentido. Um lapão ou um negro, por exemplo, não têm nenhuma noção dosabor do vinho. Apesar de haver poucos ou nenhum caso de semelhante deficiênciano espírito, em que uma pessoa nunca sentiu ou que é completamente incapaz deum sentimento ou paixão próprios de sua espécie, constatamos, todavia, que amesma observação ocorre em menor grau. Um homem de modos brandos não podeformar uma ideia de vingança ou de crueldade obstinada, nem um coração egoístapode conceber facilmente os ápices da amizade e da generosidade. Em verdade,admitimos que outros seres podem possuir muitos sentidos dos quais não temosnoção, porque as ideias destes sentidos nunca nos foram apresentadas pela únicamaneira por que uma ideia pode ter acessoao espírito, isto é, mediante o sentimento e a sensação reais.

Há, no entanto, um fenômeno contraditório que pode provar que não éabsolutamente impossível que as ideias nasçam independentes de suas impressõescorrespondentes. Acredito que se concordaria facilmente que as várias ideias decores diferentes que penetram pelos olhos, ou aquelas de sons conduzidas peloouvido, são realmente diferentes umas das outras, embora, ao mesmo tempo,parecidas. Ora, se isto é verdadeiro a respeito das diferentes cores, devesê-lo igualmente para os diversos matizes da mesma cor; e cada matiz produz umaideia diversa, independente das outras. Pois, se se negasse isto, seriapossível, por contínua gradação dos matizes, passar insensivelmente de uma cora outra completamente distante de série; se vós não admitis a distinção entreos intermediários, não podeis, sem absurdo, negar a identidade dos extremos.Suponde, então, uma pessoa que gozou do uso de sua visão durante trinta anos ese tornou perfeitamente familiarizada com cores de todos os gêneros, exceto comum matiz particular do azul, por exemplo, que nunca teve a sorte de ver.Colocai todos os diferentes matizes daquelacor, exceto aquele único, defronte daquela pessoa, decrescendo gradualmente do maisescuro ao mais claro. Certamente, ela perceberá um vazio onde falta este matiz,terá o sentimento de que há uma grande distância naquele lugar, entre as corescontíguas, mais do que em qualquer outro.Ora, pergunto se lhe seria possível, através de sua imaginação, preencher este vazioe dar nascimento à ideia deste matiz particular que, todavia, seus sentidosnunca lhe forneceram? Poucos leitores, creio eu, serão de opinião que ela nãopode; e isto pode servir de prova que as ideias simples nem sempre derivam dasimpressões correspondentes, mas esse caso tão singular é apenas digno deobservação e não merece que, unicamente por ele, modifiquemos nossa máximageral.

Eis, portanto, uma proposição que não apenas parece simples einteligível em si mesma, mas que, se se fizer dela o uso apropriado, podetornar toda discussão igualmente inteligível e eliminar todo jargão, que hámuito tempo se apossou dos raciocínios metafísicos e os desacreditou. Todas asideias, especialmente as abstratas, são naturalmente fracas e obscuras; oespírito tem sobre elas um escasso controle; elas são apropriadas para seremconfundidas com outras ideias semelhantes, e somos levados a imaginar que umaideia determinada está aí anexada se, o que ocorre com frequência, empregamosqualquer termo sem lhe dar significado exato. Pelo contrário, todas asimpressões, isto é, todas as sensações, externas ou internas, são fortes e vivas;seus limites são determinados com mais exatidão e não é tão fácil confundi-lase equivocar-nos. Portanto, quando suspeitamos que um termo filosófico estásendo empregado sem nenhum significado ou ideia — o que é muito frequente —devemos apenas perguntar: de que impressão é derivada aquela suposta ideia? [3] E, se for, impossível designar uma, isto servirá para confirmar nossa suspeita. E razoável, portanto, esperar que, aotrazer as ideias a uma luz tão clara, removeremos toda discussão quepode surgir sobre sua natureza e realidade. [4]

  1. O termo “percepções” é utilizado por Hume para designar a totalidadedos fatos mentais e das operações volitivas. Mais adiante, nesta seção(p. 70), ele escreve que as percepções constituem “todos os materiaisdo pensamento”. (vejam-se também: Tratado, I. ii, 6, p. 67 — IIi, p. 456.) Hume difere assim de Locke, que emprega o termo “ideia(veja-se nota 12 desta seção) com aquele sentido genérico. [N. do T.]
  2. As percepções originais, isto é, os elementos primitivos daexperiência, são, escreve Hume, as “impressões”. As “ideias”, por seu turno,que afloram à consciência, quando pensamos ou raciocinamos, são fracas imagensdas impressões. As ideias não são, portanto, como para os platônicos, osarquétipos de tudo que existe e nem, como para os cartesianos, inatas, poisunicamente as impressões são inatas (veja-se O. Brunet, Philosophie etesthétique chez David Hume, Nizet, Paris, 1965, pp. 292-295.). Como asideias são fracas imagens de impressões correspondentes, podemos dizer que aspercepções do espírito, assumindo dupla forma, como impressões e como ideias,distinguem-se em grau e não em natureza. Ou melhor, as duas facetas de umaúnica percepção discriminam-se entre si do mesmo modo como um modelo sediferencia de sua cópia. [N. do T.]
  3. O método filosófico adequado é aquele que permite a contínuareforma de nossas ideias acerca das operações do entendimento humano. E asideias são reformadas por estarem relacionadas com suas impressõescorrespondentes. Esta relação é dupla: a) as ideias são similares àsimpressões, ou melhor, são cópias ou imagens das impressões (em concordânciacom o método baseado no exemplo), e b) as ideias estão necessariamente unidasàs impressões, ou melhor, as ideias não são descobertas sem impressõescorrespondentes (do mesmo modo que a filosofia difícil admite que a conclusãonão pode ser levada a cabo sem as premissas adequadas). (Sternfeld, artigocitado, pp. 173-174.) [N. do T]
  4. É provável que todos aquelesque negaram as ideias inatas queriam apenas dizer que todas as nossas ideiaseram cópias de nossas impressões, embora seja preciso confessar que os termospor eles empregados nem sempre foram escolhidos com precaução nemdefinidos com exatidão, a fim de evitar equívocos sobre suas doutrinas. O quese entende por inato? Se inato é equivalente a natural, então se deve concederque todas as percepções e ideias do espírito são inatas ou naturais, emqualquer sentido que tomemos este último termo, seja em oposição ao que éinsólito, artificial ou miraculoso. Se inato significa contemporâneo ao nossonascimento, a discussão parece frívola,pois não vale a pena averiguar em que momento se começa a pensar: se antes, no,ou depois de nosso nascimento. Demais, parece-me que Locke e outros tomam otermo ideia em sentido muito vago, tanto indicando nossaspercepções, sensações e paixões, como nossos pensamentos. Ora, neste sentido eugostaria de saber o que é que se quer dizer quando se afirma que o amor-próprioou ressentimento por injúrias sofridas ou a paixão entre os sexos não é inata?

    Mas admitindo-se os termos impressões e ideias no sentidoexposto acima e entendendo por inato o que é primitivo ou não copiado denenhuma percepção precedente, podemos então afirmar que todas as nossasimpressões são inatas e que nossas ideias não o são.

    Para ser franco, devo confessar que em minha opinião Locke foi enganadosobre esta questão pelos escolásticos, que, utilizando termos definidos semrigor, prolongavam cansativamente asdiscussões sem jamais atingir o núcleo da questão. Semelhante ambiguidade e circunlocuçãoparecem estar presentes nos raciocínios deste filósofo acerca deste tema comotambém da maioria de outras questões (Hume).

Seção III

Da associação de ideias [1]

É evidente que há um princípio de conexão entre os diferentespensamentos ou ideias do espírito humano e que, ao se apresentarem à memória ouà imaginação, se introduzem mutuamente com certo método e regularidade. E istoé tão visível em nossos pensamentos ou conversas mais sérias que qualquerpensamento particular que interrompe a sequência regular ou o encadeamento dasideias é imediatamente notado e rejeitado. Até mesmo em nossos maisdesordenados e errantes devaneios, como também em nossos sonhos, notaremos, serefletimos, que a imaginação não vagou inteiramente a esmo, porém havia sempreuma conexão entre as diferentes ideias que se sucediam. Se se transcrevesse aconversa mais solta e mais livre, notar-se-ia imediatamente alguma coisa que aligou em todas as suas transições. E se este princípio faltasse, quem quebrou ofio da conversa poderia ainda informar-vos que havia secretamente esclarecidoem seu espírito uma sucessão de pensamentos, os quais o tinham desviadogradualmente do tema da conversa. Entre os idiomas mais diferentes, mesmonaqueles em que não podemos supor a menor conexão ou comunicação, encontramosque as palavras que exprimem as ideias mais complexas quase se correspondementre si, o que é uma prova segura de que as ideias simples, compreendidas nasideias complexas, foram ligadas por algum princípio universal que tinha igualinfluência sobre todos os homens. [2]

Embora o fato de que as ideias diferentes estejamconectadas seja tão evidente para não ser percebido pela observação, creio que nenhum filósofo [3] tentou enumerar ou classificar todos os princípios de associação, assuntoque, todavia, parece digno de atenção. Para mim, apenas há três princípios deconexão entre as ideias, a saber: de semelhança, de contiguidade —no tempo e no espaço — e de causa ou efeito.

Que estes princípios servem para ligar ideias, não será, creio eu,muito duvidoso. Um quadro conduz naturalmente nossos pensamentos para ooriginal; [4] quando se menciona um apartamento de um edifício, naturalmente seintroduz uma investigação ou uma conversa acerca dos outros. [5] E, se pensamosacerca de um ferimento, quase não podemos furtar-nos a refletir sobre a dor queo acompanha. [6] Entretanto, é difícil provar tanto para nossa como para asatisfação do leitor que esta enumeração é completa e que não há outrosprincípios de associação. Cabe-nos, portanto, em tal situação, recapitularvários exemplos e examinar cuidadosamente o princípio que liga mutuamente osdiferentes pensamentos, e apenas detendo-nos quando tornarmos o princípio tãogeral quanto possível. [7] E, à medida que examinarmos outros exemplos e ofizermos com o máximo cuidado, adquiriremos a certeza de que a enumeração,estabelecida a partir de um conjunto de observações, é completa e inteira.

[Nas edições K, L, e N, esta seção continuava daseguinte maneira: “Em vez de entrar num pormenor deste gênero, o que nos conduziria a várias einúteis sutilezas, consideraremos alguns dos efeitos desta conexão sobre aspaixões e a imaginação; poderemos principiar assim um campo de especulação maisinteressante e talvez mais instrutivo do que o outro.]

Como o homem é um ser racional e estácontinuamente à procura da felicidade, que espera alcançar para a satisfação de alguma paixão ouafeição, raramente age, pensa ou fala sem propósito ou intenção. Sempre temalgum objeto em vista; embora às vezes sejam inadequados os meios que escolhepara alcançar seu fim, jamais o perde de vista e nem desperdiça seuspensamentos ou reflexões quando não espera obter nenhuma satisfação deles.

Em todas as composições geniais é, portanto, necessário que o autortenha algum plano ou objeto; e embora possa ser desviado deste plano pelaimpetuosidade de seu pensamento, como numa ode, ou omiti-lo descuidadamente,como numa epístola ou num ensaio, deve aparecer algum fim ou intenção em suaprimeira composição, senão na composição completa da obra. Uma obra sem umdesígnio se assemelha mais a extravagâncias de um louco do que aos sóbriosesforços do gênio e do sábio.

Como esta regra não admite exceção, conclui-se que nas composiçõesnarrativas os eventos ou atos que o escritor relata devem estar unidos poralgum elo ou laço; é preciso que estejam unidos uns aos outros na imaginação eformem uma espécie de unidade que possa situá-los em um único plano, em um único ponto de vista, e que possa ser oobjeto e o fim do autor em seu primeiro empreendimento.

Este princípio de conexão entre vários eventos, formando o tema de umpoema ou de uma história, pode serdiferente segundo os distintos planos de um poeta ou de um historiador. Ovídio modelouseu plano sobre o princípio conectivo de semelhança. Toda transformaçãofabulosa produzida pelo poder miraculoso dos deuses aparece em sua obra. Não épreciso senão esta condição para que um evento convirja para seu plano originalou intenção.

Um analista ou historiador que tentasse escrever a história da Europadurante um século seria influenciado pela conexão de contiguidade no tempo e noespaço. Todos os eventos que aconteceram nesta porção do espaço e neste períododo tempo estão compreendidos em seu desígnio, embora em outros aspectos sejamdiferentes e sem relação uns com os outros. Ainda assim têm uma espécie deunidade entre toda diversidade.

Entretanto, a espécie mais habitual de relação entre os diferenteseventos que fazem parte de uma composição narrativa é a de causa e efeito;quando um historiador segue a série de ações segundo sua ordem natural, remontaàs suas fontes e princípios secretos e descreve suas mais remotasconsequências. Escolhe como tema certa porção desta grande cadeia deacontecimentos que constitui a história da humanidade; tenta tocar em suanarrativa cada elo desta cadeia. Às vezes, uma inevitável ignorância tornainúteis todos os seus esforços; às vezes preenche por conjeturas o que édeficiente em seu conhecimento; e sempre tem consciência de que sua obra é maisperfeita em função da maior continuidade de cadeia de acontecimentos queapresenta ao leitor. Ele sabe que o conhecimento de causas não é apenas o maissatisfatório, já que esta relação ou conexão é mais forte do que todas asoutras, mas também mais instrutivo, pois é unicamente por este conhecimento quesomos capazes de controlar eventos e governar o futuro.

Podemos agora, portanto, ter uma ideia desta unidade de ação,que tem sido bastante discutida por todos os críticos depois de Aristóteles semmuito êxito, talvez porque não controlavam seus gostos e sentimentos por umafilosofia rigorosa. Parece que em todas as obras, tanto épicas como trágicas, épreciso certa unidade, e que em nenhum momento podemos permitir aos nossospensamentos divagarem a esmo, se quisermos produzir uma obra de interessedurável à humanidade. Parece também que mesmo um biógrafo que escrevesse a vidade Aquiles tentaria relacionar os eventos para mostrar sua mútua dependência erelação, do mesmo modo que um poeta que fizesse da cólera deste o tema de suanarrativa. [8] Não é apenas numa determinada parcela da vida que as ações de umhomem dependem umas das outras, mas durante toda a sua existência, ou seja, doberço ao túmulo; é impossível quebrar um único elo, embora diminuto, destacadeia regular sem afetar toda a série de eventos. A unidade de ação, portanto,que pode ser encontrada na biografia ou na história difere da poesia épica nãoem gênero, mas em grau. Na poesia épica, a conexão entre os eventos é maispróxima e mais sensível; a narrativa não abrange tão grande extensão temporal;os atores dirigem-se às pressas para uma situação notável para satisfazer àcuriosidade dos leitores. Esta conduta do poeta épico conta com a situaçãoparticular da imaginação e das paixões que se verificam nesta produção. Tanto aimaginação do escritor como a do leitor é mais avivada, e as paixões são mais estimuladas do que na história, na biografia ouem todo tipo de narração confinada estritamente à verdade e à realidade.Consideremos o efeito destas circunstâncias — imaginação avivada e paixõesestimuladas — que pertencem à poesia e, especialmente, ao gênero épico mais doque qualquer outra espécie de composição; e examinemos a razão pela qual elasexigem unidade mais próxima e mais estrita em sua fabulação.

Em primeiro lugar, toda poesia, que é uma espécie de pintura, noscoloca mais perto do objeto do que qualquer outro tipo de narrativa, o iluminacom mais força e delineia com mais distinção as menores circunstâncias que,embora pareçam supérfluas ao historiador, servem vigorosamente para avivar asimagens e satisfazer à imaginação. Se não é necessário, como na Ilíada,nos informar toda vez que o herói afivela seus sapatos e amarra sua jarreteira,será preciso, talvez, entrar em maiores minúcias que na Henriade, em que oseventos se processam com tal rapidez que mal temos tempo para nos familiarizarcom a cena ou com a ação. Destarte, se um poeta quisesse abranger em seu temagrande extensão temporal ou uma longa série de eventos e remontasse da morte deHeitor às duas causas mais remotas, tais como o rapto de Helena ou o julgamentode Páris, necessitaria estender em demasia seu poema para preencher esta enormetela com pinturas e imagens convenientes. A imaginação do leitor, estimuladapor tal sequência de descrições poéticas, e suas paixões inflamadas por umacontínua simpatia para com os atores devem enfraquecer bem antes do fim dorelato e cair em lassidão e aversão pela repetição dos mesmos movimentosviolentos.

Em segundo lugar, que um poeta épico não deve descrever uma longasérie de causas, aparecerá mais adiante se considerarmos uma outra razãoderivada de uma propriedade ainda mais notável e mais singular das paixões. Éevidente que numa composição correta todas as emoções estimuladas pelosdiferentes eventos descritos e representados adicionam suas forças mutuamente;além disso, enquanto os heróis estão todos empenhados numa cena comum e cadaação está fortemente ligada ao conjunto, o interesse permanece sempre vivo e aspaixões passam facilmente de um objeto a outro. A forte conexão de eventosfacilita, ao mesmo tempo, a passagem do pensamento ou da imaginação de um aoutro e a transfusão das paixões, e mantém as emoções sempre no mesmo canal ena mesma direção. Nossa simpatia e nosso interesse por Eva preparam o caminhopara semelhante simpatia por Adão: a emoção é mantida quase intacta natransição, e o espírito apreende imediatamente o novo objeto como fortementeunido àquele que de início atraía sua atenção. Mas se o poeta quisesse fazeruma completa digressão em seu tema e se introduzisse uma nova personagem semnenhuma ligação com as anteriores, a imaginação sentiria uma ruptura natransição, penetraria friamente na nova cena e se animaria lentamente; quandoretornasse ao tema central do poema, passaria, por assim dizer, sobre um terreno estranho e seu interesse despertarianovamente para colaborar com os principais atores. O mesmo inconvenienteaparece em menor grau quando o poeta descreve seus eventos a uma longa distânciae liga entre si ações que, embora não sejam completamente separadas, não têmuma conexão tão forte como é necessário para propiciar a transição das paixões.Esta é a origem do relato indireto empregado na Odisseia e na Eneida:o herói é inicialmente introduzido, antes de ter sido estabelecida suafinalidade, e a seguir nos são mostrados, de modo perspectivo, os maisdistantes eventos e causas. Deste modo, a curiosidade do leitor é imediatamenteestimulada; os eventos se desenvolvem com rapidez e em conexão muito próxima; ointeresse se mantém bastante vivo e, com o auxílio da relação próxima com osobjetos, cresce sem cessar do começo ao fim da narrativa.

A mesma regra se verifica na poesia dramática; jamais é permitidointroduzir, numa composição regular, um ator sem conexão ou que tem apenasfraca conexão com as principais personagens do relato. O interesse doespectador não pode ser desviado por cenas desarticuladas e separadas dasoutras. Isto quebra o curso das paixões e impede a comunicação de váriasemoções, pelas quais uma cena adiciona força a outra e transfere a piedade e oterror que cada uma desperta à cena seguinte, até que em sua totalidade produza rapidez de movimento peculiar ao teatro. Como é preciso extinguir este calorafetivo para iluminar de repente uma nova cena e novas personagens sem nenhumarelação com as precedentes; como é preciso localizar uma ruptura, um hiatodeveras sensível no curso das paixões pelo efeito desta ruptura no curso das ideias; e, em lugar de dirigir a simpatia de umacena à seguinte, ser obrigado em todo momento a despertar um novointeresse e a participar de uma nova cena de ação?

Embora esta regra da unidade de ação seja comum à poesia dramática e àépica, podemos ainda observar que há entre elas uma diferença digna decuriosidade. Nestas duas espécies de composição é indispensável a unidade e asimplicidade de ação para manter intacto e sem distração o interesse e asimpatia; mas, na poesia épica ou narrativa, esta regra se estabelece sobre umoutro fundamento: a necessidade que se impõe a todo escritor de ter um plano oudesígnio antes de principiar qualquer dissertação ou relato e de compreenderseu tema sob um aspecto geral ou uma visão unificadora que possa ser o objeto constantede sua atenção. Como o autor está completamente esquecido nas composiçõesdramáticas, e o espectador supõe consigo mesmo estar realmente presente nasações representadas, esta razão não intervém no palco; e pode-se introduzir um diálogo ou uma conversaçãoque teria podido passar nesta parte do espaço representado pela cena.Por este motivo, em todas as comédias inglesas, inclusive as de Congreve, aunidade de ação não é estritamente observada; mas o poeta pensa que ésuficiente relacionar de qualquer maneira suas personagens, quer pelo sangue,quer pelo fato de elas pertencerem a uma mesma família; a seguir as introduz emdeterminadas cenas em que mostram seus temperamentos e seus caracteres semavançar em muito a ação principal. As duplas intrigas de Terêncio sãoliberdades do mesmo gênero, embora em grau menor. Apesar de este procedimentonão ser inteiramente regular, não é completamente incompatível com a naturezada comédia, em que os mecanismos das paixões não atingem tão alto como natragédia; ao mesmo tempo, a ficção e a representação atenuam, até certo ponto,tais liberdades. Em um poema narrativo, a primeira proposição, o primeirodesígnio, limita o autor a um tema; recusar-se-iam imediatamente as digressõesdesta natureza como obscuras e monstruosas. Nem Boccaccio, nem La Fontaine, nemqualquer outro autor deste gênero jamais se deixaram cair em digressões, emboraseu principal objetivo tenha sido a graça.

Retomando a comparação entre a história e a poesia épica, podemosconcluir dos raciocínios precedentes que certa unidade é necessária em todas asproduções, e esta não pode ser deficiente tanto na história como em qualqueroutra; que na história, a conexão que une os diferentes eventos num só corpo éa relação de causa e efeito, a mesma que aparece na poesia épica; e que, nestaúltima composição, é preciso que esta conexão seja mais próxima e mais sensível em virtude da vivacidade da imaginação eda força das paixões que o poeta deve abarcar em sua narrativa. A guerrado Peloponeso é um tema apropriado à história, o cerco de Atenas, a um poemaépico, e a morte de Alcibíades, a uma tragédia.

Destarte, como a diferença entre a história e a poesia épica consisteapenas nos graus de conexão que une entre si os vários eventos que compõem seutema, será difícil, senão impossível,determinar com exatidão as fronteiras que separam um do outro. E mais umaquestão de gosto que de raciocínio; podemos, talvez, desvendar com frequênciaesta unidade em um tema que, à primeira vista e segundo considerações abstratas,esperamos ao menos encontrar.

É evidente que Homero ultrapassa, no curso de sua narrativa, a primeiraproposição de seu tema, e que a cólera de Aquiles, causa da morte de Heitor,não é a mesma que ocasionou tantos males aos gregos. Mas a força da relação queune estes dois movimentos, a rapidez de transição de um ao outro, o contraste [9] entre os efeitos da concórdia e da discórdia entre os princípios e acuriosidade natural que temos para ver Aquiles em ação depois de tão longorepouso — este conjunto de causas não cessade exercer influência sobre o leitor e dá ao tema suficiente unidade.

Pode-se objetar a Milton o fato de ele ter buscado suas causas numalonga distância e que a revolta dos anjos produziu a queda do homem por umencadeamento de eventos que é, ao mesmo tempo, muito longo e muito fortuito.Sem mencionar que a criação do mundo, relatada em toda a sua extensão, não émais causa desta catástrofe que a batalha de Farsália, ou qualquer outroacontecimento que sempre tem acontecido. Além disso, se considerarmos que todosestes eventos (a revolta dos anjos, a criação do mundo e a queda do homem) são semelhantes,pois todos são miraculosos e apartados do curso ordinário da natureza; que sãosupostos contíguos no tempo; que se separam de todos os outros eventos esão os únicos fatos originais revelados, eles impressionam de imediato a visãoe naturalmente evocam uns aos outros no pensamento e na imaginação. Seconsiderarmos tais circunstâncias em sua totalidade, verificaremos que todasestas ações parceladas têm unidade suficiente para serem compreendidas numúnico relato ou narrativa. Acrescentemos a estas razões que a revolta dos anjose a queda do homem têm uma semelhança determinada, porque são correlatas eapresentam ao leitor a mesma moral de obediência ao nosso Criador.

Apresento estas sugestões desconexas com o fim dedespertar a curiosidade dos filósofos e com a suposição, senão a firme persuasão, de que é umtema bastante prolixo, e que as numerosas operações do espírito humano dependemda conexão ou da associação de ideias aqui explicadas. Especialmente a simpatiaentre as paixões e a imaginação mostrar-se-á talvez notável, quando observamosque as emoções despertadas por um objeto passam facilmente a um outro unido aele, mas se misturam com dificuldade, ou de nenhum modo, com objetos diferentese sem nenhuma conexão. Ao introduzir numa composição personagens e açõesestranhas umas às outras, um autor imprevidente destrói esta comunicação deemoções, que é o único meio de interessar ao coração e despertar as paixões nograu desejado e no momento apropriado. A explicação completa destes princípiose de todas as suas consequências nos conduziria a raciocínios muito profundos eprolixos para esta investigação. É-nos suficiente presentemente terestabelecido esta conclusão: os três princípios de todas as ideias são asrelações de semelhança, de contiguidade e causalidade.

  1. Nas edições K e L o título era: “Conexão de ideias”.
  2. Hume afirma no Abstract que “se alguma coisa pode designar oautor [isto é, Hume] pelo glorioso título de inventor, consiste namaneira por que ele emprega o princípio de associação de ideias, que aparece emquase toda a sua filosofia”. Hume não se considera o inventor da teoriaassociativa, mas apenas admite ter descoberto uma nova maneira de utilizá-la.(veja-se J. Passmore, Hume’s Intentions, segunda edição, Basic Books,Nova York, 1968, p. 105.) Com efeito, Locke afirma que algumas de nossas ideiastêm uma natural correspondência e conexão entre si; constitui tarefa equalidade da razão delineá-las… Há, ademais, outra conexão de ideias devidatotalmente ao acaso ou costume. Ideias que em si mesmas não sãoem nada aparentadas, tornam-se de tal modo unidas em alguns espíritos humanos,que é muito difícil separá-las” (Essay, edição citada, cap. XXXIII, 5, pp.248-9). De acordo com a teoria de Locke, portanto, apenas as relaçõesreflexivas (isto é, “necessárias”) revelam um pensamento ordenado, ao passo quea “associação de ideias” (isto é, relação “costumeira”) é um princípio de“conexão errônea” (Idem, 9, p. 249) ou de aberrações mentais.(veja-se A. L. Leroy, David Hume, Paris, 1953, p. 47.) Ora, para Hume, otermo “relação”, como é entendido na “linguagem comum”, designa esta “qualidade(ou principio) pela qual duas ideias estão unidas na imaginação, e uma introduznaturalmente a outra” (Tratado, I, v, pp. 13-4). Denominando esteprocesso de “relação natural”, Hume acrescenta que, quando o espírito faz, demodo constante e uniforme, e sem qualquer base racional, a transição entrepercepções, acha-se influenciado por este tipo de relação. Sugere-nos, assim,que a “relação natural” consiste na transição irrefletida, habitual eassociativa entre ideias. Daqui, podemos concluir que para Hume: 1) osprincípios associativos baseiam-se na “relação natural”, pois decorrem dapropensão da imaginação de efetuar a fácil transição de uma impressão para umaideia, ou de uma ideia para outra ideia, e 2) com exclusão apenas das relações matemáticas (em parteconcorda com Locke, que excluía também as relações morais), todas asoutras conexões consistem na constatação de que nossas ideias estãohabitualmente unidas e que a conexão costumeira de ideias é o caso típico, enão uma ocasional aberração mental como supõe Locke. (Passmore, ob. cit.,p. 67.) [N. do T.]
  3. Hume esqueceu de mencionar que Aristóteles já havia distinguido osprincípios de semelhança, de contraste e de contiguidade (On Memory andReminiscense, edição Ross, Great Books, 1952, 451b, pp. 692-3). Humeelimina o principio de contraste, embora na nota 7, desta seção, ele considereo “contraste” uma mistura de semelhança e de causalidade. [N. do T.]
  4. Semelhança (Hume).
  5. Contiguidade (Hume).
  6. Causa e efeito (Hume).
  7. Por exemplo, o contraste ou a contrariedade é tambémuma conexão entre ideias, mas podemos sem dúvida considerá-la uma mistura de causalidade e semelhança. Quando dois objetos são contrários, um destrói ooutro, isto é, constitui a causa de sua aniquilação, e a ideia de aniquilaçãode um objeto implica a ideia de sua existência anterior (Hume). Esta nota é atranscrição da nota 21, p. 76, operada por Hume, quando ele suprimiu o fimdesta seção. [N. do T.]
  8. Ao contrário de Aristóteles, a fábula não é una, como algunspensam, pelo fato de não haver senão um herói, pois a vida de um mesmo homemcompreende um grande número, uma infinidade de eventos que não formam umaunidade. E, do mesmo modo, um mesmo homem realiza várias ações que nãoconstituem uma ação única etc. Capítulo VIII (Hume). Poética, 1451 a,pp. 16-19; a tradução citada é a de M. J. Hardy. veja-se Hume, Enquête surl’entendement humain, trad. Leroy, 1948, p. 63, nota 1. [N. do T.]
  9. Veja-se nota 7, desta seção. [N. do T.]

Seção IV

Dúvidas céticas sobre as operações do entendimento

Primeira parte: a filosofia moral

Todos os objetos da razão ou da investigação humanas podem dividir-senaturalmente em dois gêneros, a saber: relações de ideias e de fatos.Ao primeiro pertencem as ciências da geometria, da álgebra e da aritmética [1] e, numa palavra, toda afirmação que é intuitivamente ou demonstrativamentecerta. Que o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos dois lados,é uma proposição que exprime uma relação entre estas figuras. Que três vezescinco é igual à metade de trinta exprime uma relação entre estes números.As proposições deste gênero podem descobrir-se pela simples operação dopensamento e não dependem de algo existente em alguma parte do universo. Emboranunca tenha havido na natureza um círculo ou um triângulo, as verdadesdemonstradas por Euclides conservarão para sempre sua certeza e evidência.

Os fatos, que são os segundos objetos da razão humana, não sãodeterminados da mesma maneira, nem nossa evidência de sua verdade, por maiorque seja, é de natureza igual à precedente. O contrário de um fato qualquer ésempre possível, pois, além de jamais implicar uma contradição, o espírito oconcebe com a mesma facilidade e distinção como se ele estivesse em completoacordo com a realidade. Que o sol não nascerá amanhã é tão inteligível enão implica mais contradição do que a afirmação que ele nascerá. Podemosem vão, todavia, tentar demonstrar sua falsidade. Se ela fossedemonstrativamente falsa, implicaria uma contradição e o espírito nunca poderiaconcebê-la distintamente. [2]

Portanto, deve ser assunto digno de nossa atenção investigar qual é anatureza desta evidência que nos dásegurança acerca da realidade de uma existência e de um fato que não estão aoalcance do testemunho atual de nossos sentidos ou do registro de nossa memória.E preciso frisar que este aspecto da filosofia tem sido pouco cultivado tantopelos antigos como pelos modernos; e, portanto, nossas dúvidas e nossos errosao realizar esta investigação tão importante são certamente os maisdesculpáveis, já que marchamos através de tão difíceis caminhos sem nenhum guiaou direção. [3] Na realidade, podem revelar-se úteis ao excitar a curiosidade eao destruir esta fé cega e a segurança quesão a ruína de todo raciocínio e de toda investigação livre. Suponho quedescobrir defeitos na filosofia comum, se os há, não é motivo de desânimo mas,pelo contrário, como é de costume, um incentivo para se tentar alguma coisamais completa e mais satisfatória do que aquela que tem sido até agora propostaao público.

Todos os raciocínios que se referem aos fatos parecem fundar-se narelação de causa e efeito. Apenas por meio desta relaçãoultrapassamos os dados de nossa memória e de nossos sentidos. Se tivésseis queperguntar a alguém por que acredita na realidade de um fato que não constataefetivamente, por exemplo, que seu amigo está no campo ou na França, ele vosdaria uma razão, e esta razão seria um outro fato: uma carta que recebeu ou oconhecimento de suas resoluções e promessas anteriores. Um homem, ao encontrarum relógio ou qualquer outra máquina numa ilha deserta, concluiria que outrorahavia homens na ilha. Todos os nossos raciocínios sobre os fatos são da mesmanatureza. E constantemente supõe-se que há uma conexão entre o fato presente eaquele que é inferido dele. Se não houvesse nada que os ligasse, a inferênciaseria inteiramente precária. A audição de uma voz articulada e de uma conversaracional na obscuridade nos dá segurança sobre a presença de alguma pessoa. Porquê? Porque estes sons são os efeitos da constituição e da estrutura do homem eestão estreitamente ligados a ela. Se analisamos todos os outros raciocíniosdesta natureza, verificaremos que se fundam na relação de causa e de efeito eque esta relação se acha próxima ou distante, direta ou colateral. O calor e aluz são efeitos colaterais do fogo, e um dos efeitos pode ser inferidolegitimamente do outro.

Portanto, se quisermos satisfazer-nos a respeito da natureza destaevidência que nos dá segurança acerca dos fatos, deveremos investigar comochegamos ao conhecimento da causa e do efeito.

Ousarei afirmar, como proposição geral, que não admite exceção, que oconhecimento desta relação não se obtém, em nenhum caso, por raciocínios apriori, porém nasce inteiramente da experiência quando vemos que quaisquerobjetos particulares estão constantemente conjuntados entre si. Apresente-se umobjeto a um homem dotado, por natureza, de razão e habilidades tão fortesquanto possível; se o objeto lhe é completamente novo, não será capaz, peloexame mais minucioso de suas qualidades sensíveis, de descobrir nenhuma de suascausas ou de seus efeitos. Mesmo supondo que as faculdades racionais de Adãofossem inteiramente perfeitas desde o primeiro momento, ele não poderia ter inferidoda fluidez e da transparência da água que ela o afogaria, ou da luz e do calordo fogo, que este o consumiria. Nenhum objeto jamais revela, pelas qualidadesque aparecem aos sentidos, tanto as causas que o produziram como os efeitos quesurgirão dele; nem pode nossa razão, sem o auxílio da experiência, jamais tiraruma inferência acerca da existência real e de um fato.

A proposição que estabelece que as causas e os efeitos não sãodescobertos pela razão, mas pela experiência, será prontamente admitida emrelação àqueles objetos de que nos recordamos e que certa vez nos foramcompletamente desconhecidos, porquanto devemos ter consciência de nossaabsoluta incapacidade de predizer o que surgiria deles. Apresentai dois pedaçosde mármore polido a um homem sem nenhum conhecimento de filosofia natural; elejamais descobrirá que eles se aderirão de tal maneira que se requer grandeforça para separá-los em linha reta, embora ofereçam menor resistência àpressão lateral. Considera-se também indiscutível que o conhecimento doseventos que têm pouca analogia com o curso corrente da natureza se obtém pormeio da experiência; assim, ninguém imagina que se teria descoberto a explosãoda pólvora ou a atração da pedra-ímã por argumentos a priori. Da mesmamaneira, quando se supõe que um efeito depende de um mecanismo complicado ou deelementos de estrutura desconhecida, não temos dificuldade em atribuir todo onosso conhecimento à experiência. Quem será capaz de afirmar que pode dar arazão última por que o leite e o pão são alimentos apropriados ao homem e não aum leão ou a um tigre?

Mas, à primeira vista, poderia parecer que esta mesma verdade não é tãoevidente em relação aos eventos que nos são familiares desde o nossonascimento, que têm estreita analogia com todo o curso da natureza e, como sesupõe, dependem das qualidades simples dos objetos, sem a intervenção deelementos de estrutura desconhecida. Desta maneira, somos levados a imaginar que poderíamos descobrir estes efeitossem o auxílio da experiência, recorrendo apenas às operações da razão.Imaginamos que, se fôssemos repentinamente lançados neste mundo, poderíamos deantemão inferir que uma bola de bilhar comunicaria movimento a outra aoimpulsioná-la, e que não teríamos necessidade de observar o evento para nospronunciarmos com certeza a seu respeito. E é tão grande a influência docostume que, onde ela se apresenta com maisvigor, encobre, ao mesmo tempo, nossa natural ignorância e a si mesma e, quandodá a impressão de não intervir, é unicamente porque se encontra em seumais alto grau.

No entanto, para nos convencermos de que, sem exceção, todas as leis danatureza e todas as operações dos corpos são conhecidas apenas pelaexperiência, as reflexões que seguem são sem dúvida suficientes. Se qualquerobjeto nos fosse mostrado, e se fôssemos solicitados a pronunciar-nos sobre oefeito que resultará dele, sem consultar observações anteriores; de quemaneira, eu vos indago, deve o espírito proceder nesta operação? Terá deinventar ou imaginar algum evento que considera como efeito do objeto; e éclaro que esta invenção deve ser inteiramente arbitrária. O espírito nunca podeencontrar pela investigação e pelo mais minucioso exame o efeito na supostacausa. Porque o efeito é totalmente diferente da causa e, por conseguinte,jamais pode ser descoberto nela. O movimento na segunda bola de bilhar é umevento bem distinto do movimento na primeira, já que não há na primeira o menorindício da outra. Uma pedra ou um pedaço de metal levantados no ar e deixadossem nenhum suporte caem imediatamente. Mas, se consideramos o assunto apriori, descobrimos algo nesta situação que nos pode dar origem à ideia deum movimento descendente, em vez de ascendente, ou de qualquer outro movimentona pedra ou no metal?

Do mesmo modo que a imaginação inicial ou invenção de um efeitoparticular é, em todas as operações naturais, arbitrária se não consultamos aexperiência, devemos igualmente supor como tal o laço ou a conexão entre acausa e o efeito, que une um ao outro e faz com que seja impossível quequalquer outro efeito possa resultar da operação desta causa. Quando vejo, porexemplo, que uma bola de bilhar desliza em linha reta na direção de outra,mesmo se suponho que o movimento na segunda me seja acidentalmente sugeridocomo o resultado de seu contato ou impulso, não posso conceber que cemdiferentes eventos poderiam igualmente resultar desta causa? Não podem ambas asbolas permanecer em absoluto repouso? Não pode a primeira bola voltar em linhareta ou ricochetear na segunda em qualquer linha ou direção? Todas estas suposiçõessão compatíveis e concebíveis. Por que, então, deveríamos dar preferência a umaque não é mais compatível ou concebível que o resto? Todos os nossosraciocínios a priori nunca serão capazes de nos mostrar fundamento paraesta preferência.

Em uma palavra: todo efeito é um evento distinto de sua causa.Portanto, não poderia ser descoberto na causa e deve ser inteiramentearbitrário concebê-lo ou imaginá-lo a priori. E mesmo depois que oefeito tenha sido sugerido, a conjunção do efeito com sua causa deve parecerigualmente arbitrária, visto que há sempre outros efeitos que para a razãodevem parecer igualmente coerentes e naturais. Em vão, portanto, pretenderíamosdeterminar qualquer evento particular ou inferir alguma causa ou efeito sem aajuda da observação e da experiência.

Daqui, podemos descobrir o motivo pelo qual nenhum filósofo racional emodesto jamais pretendeu indicar a causa última de qualquer fenômeno natural,ou mostrar distintamente a ação do poder queproduz qualquer efeito singular no universo. Concordar-se-á que o esforçomáximo da razão humana consiste em reduzir à sua maior simplicidade osprincípios que produzem os fenômenosnaturais; e restringir os múltiplos efeitos particulares a um pequeno número decausas gerais, mediante raciocínios baseados na analogia, na experiênciae na observação. No entanto, com referência às causas das causas gerais, em vãotentaríamos descobri-las, pois jamais ficaríamos satisfeitos com qualquerexplicação particular que lhes déssemos. Estas fontes e estes princípiosúltimos estão totalmente vedados à curiosidade e à investigação humanas. Aelasticidade, a gravidade, a coesão das partes, a comunicação de movimentos porimpulso são provavelmente as causas e princípios últimos que sempredescobriremos na natureza; e podemos considerar-nos suficientemente felizes se,mediante investigação e raciocínio exatos, podemos subir dos fenômenosparticulares até, ou quase até, os princípios gerais. Enquanto a filosofianatural mais perfeita apenas diminui uma pequena parcela de nossa ignorância, afilosofia mais perfeita — do gênero moral ou metafísico — revela-nos, talvez,que nossa ignorância se estende a domínios mais vastos. Deste modo, resulta detoda a filosofia a constatação da cegueira e debilidade humanas que se nosapresentam em todo momento por mais que tentemos disfarçá-las.

Nem a geometria, com toda exatidão dos raciocínios que a fezmerecidamente célebre, é capaz de remediar este defeito e de nos conduzir aoconhecimento das causas últimas, quando é solicitadapara auxiliar a filosofia natural. Cada setor das matemáticas aplicadasfunciona sobre a suposição de que a natureza estabeleceu certas leis emseus procedimentos, e os raciocínios abstratos são usados tanto para auxiliar aexperiência na descoberta dessas leis como para determinar a ação dessas leisem casos particulares, quando ela depende de graus exatos de distância e dequantidade. Assim, por exemplo, uma lei de movimentos descoberta pelaexperiência é a que diz que o momento ou a força de um corpo em movimento estáem razão ou proporção de sua massa e de sua velocidade, e, por conseguinte, queuma pequena força pode remover os maiores obstáculos ou levantar os maiorespesos se, mediante uma invenção ou mecanismo, pudermos aumentar a velocidade daforça até fazê-la superar a força antagônica. A geometria auxilia-nos a aplicaresta lei, dando-nos as dimensões exatas de todas as partes e de todas as figuras que fazem parte de qualquer tipode máquinas, mas, ainda assim, a descoberta da própria lei é devidaunicamente à experiência; e todos os raciocínios abstratos do mundo não poderãojamais nos levar a dar um passo para chegar a conhecê-la. Quando raciocinamos apriori e consideramos um objeto ou uma causa, tal como aparece ao espírito,ou seja, independente de toda observação, jamais poderia sugerir-nos a ideia deum objeto distinto, como por exemplo seu efeito, e menos ainda mostrar-nos ainseparável e inviolável conexão entre eles. É preciso que um homem seja muitosagaz para poder descobrir através do raciocínio que o cristal é o efeito docalor e o gelo o efeito do frio, sem estar previamente familiarizado com ofuncionamento destes estados dos corpos.

  1. A presente posição de Hume representa um aperfeiçoamento (veja-seFlew, ob. cit., p. 62) em comparação ao Tratado, que consideraapenas a álgebra e a aritmética como “as únicas ciências em que podemosconduzir uma cadeia de raciocínios a qualquer grau de complicação, e ainda preservar perfeita exatidão e certeza. Aopasso que a geometria não é dotada deste perfeito rigor e certeza, quesão peculiares à aritmética e à álgebra” (Tratado, I, iii, 1, p. 71).[N. do T.]
  2. Locke divide o conhecimento em três graus, a saber, intuitivo,demonstrativo e sensitivo, e afirma que “as ideias da quantidade não sãoas únicas capazes de demonstração e de conhecimento…” (Essay, ediçãocitada, Book IV, p. 317). Ou melhor, Locke pensa que a ciência da moralidade,do mesmo modo que as ciências matemáticas, é passível de demonstração. Comoexemplos de proposições tão certas como quaisquer proposições matemáticas elecita: “onde não há propriedade não háinjustiça” e “nenhum governo permite liberdade absoluta”. (Idem, p.318). Hume situa, de um lado, as “relações de ideias”, que devem serentendidas como comparação de ideias. O conhecimento consistiria precisamenteem comparar ideias, ou melhor, fundamenta-se em “relações de ideias”, as quaispermanecem invariáveis, contanto que as ideias não se alterem (Tratado,I, iii, I, pp. 69-71). Daqui nascem determinadas “proposições” que são“intuitivamente e demonstrativamentecertas” e evidentes, na medida em que, no entender de Hume, sua verdade, garantidapela lei da não-contradição, se revela pela “simples operação do pensamento”.Trata-se, segundo Hume, dos “raciocínios demonstrativos” (investigação,p. 82), empregados unicamente pelas ciências matemáticas e não, como querLocke, também pelas ciências morais. Hume coloca, de outro lado, as “relaçõesde fatos”, que podem modificar-se sem que haja qualquer alteração nas ideias (Tratado,idem), pois o “contrário de um fato qualquer é sempre possível”, e não encerracontradição afirmar “que o sol não nascerá amanhã” ou “que elenascerá”. Tanto uma como outra afirmativa são perfeitamente claras;entretanto, não podemos recorrer, a exemplo do que acontece nas “relações deideias”, ao método demonstrativo, pois apenas a experiência é que possuijurisdição na esfera das “relações de fatos”. Evidentemente, o núcleo doproblema ínsito nas proposições “o sol nascerá” ou “não nascerá”, não dizrespeito às dúvidas de Hume quanto ao aparecimento do sol, mas apenas consistena indicação de um tipo de certeza diferente da certeza absoluta. Trata-se,portanto, da caracterização da crença, que reina na esfera da opinião, e, deacordo com Hume, que aqui diverge de Locke (veja-se N. K. Smith, ob. cit.,pp. 63-70), é estendida a todas as “questões de fato e de existência”. É assimque Hume estabelece uma categórica dicotomia entre o conhecimento e a crença. [N.do T.]
  3. O caminho que Hume pretende seguir aqui pode, talvez, ser iluminadopela seguinte passagem do Abstract: “o célebre Monsieur Leibnizobservou, como um defeito comum dos sistemas de lógica, que eles são prolixosquando explicam as operações do entendimento formando demonstrações, mas sãobastante concisos quando tratam das probabilidades e das outras medidas deevidência das quais a vida e a ação dependem inteiramente”. (pp. 7-8; citadotambém por Flew, ob. cit., p. 69). [N. do T.]
Segunda parte

Entretanto, não chegamos ainda a nenhuma resposta satisfatória arespeito da primeira questão proposta. Cada solução gera uma nova questão tãodifícil como a precedente e nos conduz a novas investigações. Quando sepergunta: qual é a natureza de todos os nossos raciocínios sobre os fatos?A resposta conveniente parece ser que eles se fundam na relação de causa eefeito. Quando se pergunta: qual é o fundamento de todos os nossosraciocínios e conclusões sobre essa relação? Pode-se replicar numa palavra:a experiência. Mas, se ainda continuarmos com a disposição de esmiuçar oproblema e insistirmos: qual é o fundamento de todas as conclusões derivadasda experiência? Esta pergunta implica uma nova questão que pode ser desolução e explicação mais difíceis. Os filósofos que se dão ares de sabedoriasuperior e suficiência têm uma tarefa difícil quando se defrontam com pessoascom disposições inquisitivas, que os desalojam de todos os esconderijos em quese refugiam, e que estão seguras delevá-los finalmente a um perigoso dilema. O melhor recurso para evitar estaconfusão consiste em ter modestas pretensões e descobrir nós mesmos asdificuldades antes que nos sejam objetadas. Desta maneira, faremos de nossaignorância uma virtude.

Contentar-me-ei nesta seção com uma tarefa fácil: pretenderei apenasdar uma resposta negativa à questão aqui proposta. Digo, pois, que mesmo depoisque temos experiência das operações de causa e de efeito, nossasconclusões desta experiência não estão fundadas sobre raciocínios ou sobrequalquer processo do entendimento. Devemos tratar de explicar e defender estaposição.

Certamente, deve-se admitir que a natureza nos tem mantido a uma grandedistância de todos os seus segredos, e que apenas nos tem concedido oconhecimento de algumas qualidades superficiais dos objetos, enquanto ela nosesconde os poderes e princípios dos quais depende inteiramente a ação dessesobjetos. Nossos sentidos nos informam a cor, o peso e a consistência do pão,porém, nem os sentidos e nem a razão jamais podem informar-nos sobre asqualidades que o fazem apropriado paraalimentar e sustentar o corpo humano. A visão e o tato nos dão uma ideiado movimento real dos corpos, porém não podemos formar o mais remoto conceitoda maravilhosa força ou poder que é capaz de manter indefinidamente emmovimento um corpo, e que este nunca aperde, mas a comunica a outros. Mas, não obstante esta ignorância dos poderes [1] e princípios naturais, sempre presumimos quando vemosqualidades sensíveis análogas que elas têm poderes ocultos análogos, eesperamos que a estas seguirão efeitos semelhantes àqueles que já temosexperimentado. Se nos fosse mostrado um corpo de cor e consistência análogas àsdo pão que havíamos comido anteriormente, não teríamos nenhum escrúpulo emrepetir o experimento, prevendo com certeza que ele nos alimentará e nossustentará de maneira semelhante. Ora, eis um processo do espírito e dopensamento cujo fundamento gostaria de conhecer. Toda a gente está de acordoque não se conhece nenhuma conexão entre as qualidades sensíveis e os poderesocultos e, por conseguinte, o espírito não é levado a tirar uma conclusão sobrea conjunção constante e regular daquelas, tendo por base algo que possaconhecer na natureza destas. Pode-se admitir que a experiência passadadá somente uma informação direta e segura sobre determinados objetos emdeterminados períodos do tempo, dos quais ela teve conhecimento. Todavia, éesta a principal questão sobre a qual gostaria de insistir: porque estaexperiência tem de ser estendida a tempos futuros e a outros objetos que, peloque sabemos, unicamente são similares em aparência. O pão que outrora comialimentou-me, isto é, um corpo dotado de tais qualidades sensíveis estava, aeste tempo, dotado de tais poderes desconhecidos. Mas, segue-se daí que esteoutro pão deve também alimentar-me como ocorreu na outra vez, e que qualidadessensíveis semelhantes devem sempre ser acompanhadas de poderes ocultossemelhantes? A consequência não parece de nenhum modo necessária. Pelo menos,deve-se reconhecer que aqui o espírito tira uma consequência; que deu um certopasso; que há um processo do pensamento e uma inferência que necessitam de umaexplicação. Estas duas proposições não são de nenhum modo iguais: verifiqueique tal objeto sempre tem sido acompanhado por tal efeito, e prevejo que outrosobjetos que são em aparência semelhantes, serão acompanhados por efeitossemelhantes. Concederei, se vós permitis, que uma das proposições pode ser legitimamente inferida daoutra: sei, de fato, que ela sempre se infere. Mas, se vós insistis emque a inferência é feita por uma cadeia de raciocínios, desejaria que vósconstruísseis este raciocínio. A conexão entre estas proposições não éintuitiva. Requer-se um termo médio que permita ao espírito extrair tal inferência,se é que, verdadeiramente, é extraída mediante raciocínio e argumentos. Qual éo termo médio? Devo confessar, é algo que ultrapassa minha compreensão, e cabemostrá-lo por aqueles que afirmam que realmente existe e que é a origem detodas as nossas conclusões acerca dos fatos.

Certamente, este argumento negativo pode tornar-se inteiramenteconvincente no decorrer do tempo, se muitos filósofos hábeis e perspicazesdirigirem suas investigações neste sentido, e se ninguém for capaz de descobriralguma proposição conectiva ou algum degrau intermediário que apoie oentendimento nesta conclusão. Mas, como se trata de dificuldade recente, osleitores não devem confiar em demasia na sua própria sagacidade a ponto deconcluir que um argumento realmente não existe porque escapa à investigação.Por esta razão, é preciso empreender pesquisa mais difícil e, por enumeração detodos os ramos de conhecimento humano, tratar de mostrar que nenhum deles podeproporcionar semelhante argumento.

Todos os raciocínios dividem-se em duas classes: raciocíniosdemonstrativos, que se referem às relações de ideias, e os raciocínios morais(ou prováveis) que se referem às questões de fato e de existência. Pareceevidente que os últimos não englobam argumentos demonstrativos, pois não écontraditório o fato de que o curso da natureza pode modificar-se e que umobjeto, aparentemente semelhante aos já observados, possa ser acompanhado deefeitos diferentes ou contrários. Não posso conceber clara e distintamente queum corpo que tomba das nuvens — semelhante em todos aspectos ao da neve —tenha, todavia, sabor de sal e queime como o fogo? Há proposição maisinteligível do que esta: todas as árvores florescerão em dezembro-janeiro edefinharão em maio-junho? Portanto, considera-se inteligível toda proposiçãoconcebida distintamente e sem contradição e, por conseguinte, jamais suafalsidade é mostrada por argumento demonstrativo ou raciocínio abstrato apriori.

Entretanto, se os argumentos nos levarem a confiar na experiência efazê-la padrão de nosso juízo futuro, deveremos considerá-los apenas prováveis,isto é, referentes às questões de fato e de existência real, de acordo com adivisão acima mencionada. Mas, se nossa explicação desta classe de raciocínio é considerada sólida e satisfatória,verificaremos que de fato não existe tal tipo de argumento. Temos ditoque todos os argumentos referentes à existência se fundam na relação de causa eefeito; que nosso conhecimento daquela relação provém inteiramente daexperiência; e que todas as nossas conclusões experimentais decorrem dasuposição que o futuro estará em conformidade com o passado. Portanto, tentarprovar a última conjetura, por argumentos prováveis, por argumentos referentesà existência, consiste, certamente, em girar num círculo e dar por admitido oque precisamente se problematiza.

Em verdade, todos os argumentos derivados da experiência se fundam nasemelhança que constatamos entre objetos naturais e que nos induz a esperarefeitos semelhantes àqueles que temos visto resultar de tais objetos. Apesar desomente um bobo ou um louco — e ninguém mais! — pretender discutir a autoridadeda experiência ou rejeitar este grande guia da vida humana, é lícito, contudo,admitir que um filósofo tenha ao menos a curiosidade de examinar qual é oprincípio da natureza humana que dota a experiência de tão forte autoridade eleva-nos a aproveitar da semelhança estabelecida pela natureza entre diversosobjetos. De causas que parecem semelhantes esperamos efeitossemelhantes. E este o resultado de todas as nossas conclusões experimentais.Ora, parece evidente que se esta conclusão fosse reproduzida pela razão, elaseria tão perfeita desde o início e a partir de um único caso, do que após umalonga série de experimentos. Mas as coisas ocorrem de modo bem diverso. Não hánada mais semelhante do que os ovos; todavia, ninguém espera, por causa destaaparente semelhança, idêntico gosto e saborem todos os ovos. E é somente depois de uma longa série de experimentos uniformes,sobre qualquer gênero dado, que nos tornamos confiantes e seguros em relação aum evento particular. Ora, onde está o processo de raciocínio que, de um únicocaso, tira uma conclusão tão diferente daquele que infere de cem casos que nãosão de modo algum diferentes do primeiro? Proponho este problema visando, aomesmo tempo, obter informação e suscitar dificuldades. Não consigo localizar,não consigo imaginar tal raciocínio. Mas mantenho meu espírito sempre aberto àinstrução, se alguém quiser dignar-se a me conceder.

Poder-se-ia dizer que, de certo número de experimentos uniformes, inferimos uma conexão entre as qualidades sensíveis e os poderes ocultos; o que, devoconfessar, parece enunciar a mesma dificuldade, em termos diferentes. A questãoreaparece: sobre qual processo de argumentação se funda esta inferência?Onde está o meio-termo, as ideias intermediárias que unem proposições tãodistantes entre si? Tem-se admitido que a cor, a consistência e outrasqualidades sensíveis do pão não parecem ter em si mesmas nenhuma conexão com ospoderes ocultos da nutrição e da subsistência.

De outro modo, poderíamos inferir esses poderes ocultos a partir daprimeira aparição destas qualidades sensíveis e sem o auxílio da experiência,contrariamente à opinião de todos os filósofos e contrariamente à evidência dofato. Tal é, pois, nosso estado natural de ignorância em relação aos poderes eà influência de todos os objetos. Como isto é remediado pela experiência? Elaapenas nos mostra certo número de efeitos uniformes resultantes de certosobjetos e nos ensina que esses objetos particulares, nessa época determinada,estavam dotados de tais poderes e de tais forças. Quando aparece um novo objetodotado de qualidades sensíveis semelhantes, esperamos poderes e forçassemelhantes e esperamos também um efeito análogo. De um corpo igual ao pão em cor e consistência, esperamosalimentação e subsistência análogas. Eis, portanto, uma etapa ouprocesso do espírito que necessita de uma explicação. Quando uma pessoa afirma: tenho encontrado em todos os casos anteriores tais qualidades sensíveisconjugadas com tais poderes ocultos; e quando assevera: qualidadessensíveis semelhantes estarão sempre conjugadas com poderes ocultos semelhantes,não pode ser acusada de tautologia, pois estas proposições diferem em todos os aspectos. Dizeis que uma proposição éinferida da outra, porém deveis admitir que a inferência não éintuitiva, nem tampouco demonstrativa. De que natureza é ela então? Responderque deriva da experiência significa cometer uma petição de princípio. Porquetodas as inferências provenientes da experiência supõem, como seu fundamento,que o futuro se assemelhará ao passado, que poderes semelhantes estarãoconjugados com qualidades sensíveis semelhantes. Se subsistir qualquer dúvidade que o curso da natureza pode mudar e que o passado não pode servir de modeloao futuro, toda experiência se tornaria inútil e não geraria nenhuma inferênciaou conclusão. E inconcebível, portanto, que nenhum argumento tirado da experiência possa provar a semelhança do passado aofuturo, já que estes argumentos se baseiam na suposição daquelasemelhança. [2] Concordais que o curso das coisas tenha sido sempre tãoregular. Apenas esta constatação, sem novo argumento ou inferência, não é provasuficiente de que no futuro continuaráassim. Em vão pretendereis ter conhecido a natureza dos corpos a partir devossa experiência passada. Sua natureza oculta e, por conseguinte, todos osseus efeitos e toda sua ação podem mudar, sem que haja qualquermodificação em suas qualidades sensíveis. Certamente, isto ocorre algumasvezes, e com relação a alguns objetos. Por que não poderia ocorrer sempre, ecom relação a todos os objetos? Qual lógica, qual processo de raciocínio vosassegura contra esta conjetura? Minha prática, dizeis, refuta minhas dúvidas.Mas, neste caso, confundis o significado de minha questão. Como pessoa que age,estou muito satisfeito a este respeito; mas, como filósofo dotado de algumacuriosidade — não direi ceticismo — quero saber o fundamento desta inferência.Nenhuma leitura, nenhuma investigação, tem sido todavia capaz de remover minhadificuldade, ou de dar-me satisfação num assunto de tanta importância. Possofazer algo melhor do que propor a dificuldade ao público, apesar de ter poucasesperanças de obter uma solução? Deste modo, pelo menos, teremos consciência denossa ignorância, se não ampliarmos nosso conhecimento.

Reconheço que, quando alguém conclui que um argumento não existe porqueescapou de sua investigação, é acusado deimperdoável arrogância. Reconheço também que, apesar de várias geraçõesde sábios se terem dedicado infrutiferamente pesquisando um objeto, seria,talvez, precipitado concluir afirmando que ele ultrapassa toda compreensãohumana. Mesmo se examinássemos todas as fontes de nosso conhecimento econcluíssemos que são inadequadas para um tal assunto, pode ainda perdurar asuspeita de que a enumeração não é completa ou o exame não é exato. Mas, emrelação ao tema que nos ocupa, há algumas reflexões que parecem remover todaacusação de arrogância ou a suspeição de um equívoco.

Certamente, os camponeses mais ignorantes e estúpidos — até os bebês eas bestas irracionais — se aperfeiçoam pela experiência e adquirem conhecimentodas qualidades dos objetos naturais, observando os efeitos que resultam deles.Quando uma criança sentiu a sensação da dor ao tocar a chama de uma vela, terácuidado de não pôr mais sua mão perto de outra vela, pois ela esperará umefeito semelhante de uma causa que é semelhante em suas qualidades e aparênciassensíveis. Se afirmais, contudo, que o entendimento da criança chega a estaconclusão por algum processo de argumento ou de raciocínio, posso legitimamentepedir-vos que se mostre este argumento, e não tendes qualquer pretexto pararecusar um pedido tão justo. Não podeis dizer que o argumento é abstruso e quepossivelmente escapa à investigação, desde que confessais que ele é evidenteaté mesmo para a capacidade de um simples bebê. Se hesitais, contudo, por ummomento, ou se, depois da reflexão, produzis um argumento complicado ouprofundo, de certa maneira abandonais o problema e confessais que não é oraciocínio que nos induz a supor que o passado se assemelha ao futuro e aesperar efeitos semelhantes de causas que são, aparentemente, semelhantes. Estaé a proposição que pretendia reforçar na presente seção. Se estou certo, nãopretendo ter feito qualquer descoberta considerável. Se estou errado, devoreconhecer para mim mesmo que sou realmente um estudante muito atrasado, desdeque não posso descobrir um argumento que, parece-me, era perfeitamenteconhecido muito antes de eu ter saído de meu berço.

  1. O termo “poder” é usado aqui em sentido vago e popular. Suaexplicação mais rigorosa acrescenta evidência a estes argumentos. Veja-se seçãoVII. (Hume)
  2. A inferência causal fundamenta-se na semelhança entre o passado e ofuturo. De que modo esta semelhança pode ser provada? Primeiro, não pode serprovada pelo “raciocínio demonstrativo”, pois, escreve Hume, é “evidente queAdão. com toda a sua ciência, jamais seria capaz de demonstrar que o curso danatureza deve permanecer uniformemente o mesmo, e que o futuro deveconformar-se ao passado. O que é possível nunca pode ser demonstrado comofalso; e é possível que o curso da natureza possa mudar, desde que podemosconceber tal mudança” (Abstract, p. 15). Segundo, não pode igualmente serjustificada pelo “raciocínio provável”, desde que “ele [Adão] não poderiaprovar por nenhum raciocínio provável que o futuro deve conformar-se aopassado. Todos os argumentos prováveis estão fundados na suposição de que háconformidade entre o passado e o futuro, portanto, [Adão] jamais pode prová-lo”(Idem, p. 15). A inferência causal não pode ser teoricamente justificada, poistanto o raciocínio demonstrativo como o provável não provaram a semelhançaentre o passado e o futuro. Hume está, por conseguinte, preparado para concluirque é “unicamente o hábito e não a razãoque nos determina a fazer [da experiência] a norma de nossos juízos futuros”(Abstract, pp. 21-22). [N. do T.]

Seção V

Solução cética destas dúvidas

Primeira parte

Tanto a paixão filosófica como a paixão religiosa parecem expostas —embora procurem extirpar nossos vícios e corrigir nossos hábitos — aoinconveniente, quando manejadas com imprudência, de servirem apenas paraencorajar uma inclinação predominante e conduzir o espírito resolutamente nadireção que previamente mais o atraia, devido às tendências einclinações do temperamento natural. Certamente, enquanto aspiramos à magnânimafirmeza do saber filosófico e tentamos encerrar nossos prazeres nos limites denosso próprio espírito, podemos, finalmente, tornar nossa filosofia, comoaquela de Epíteto e outros estoicos, num sistema mais refinado de egoísmo epersuadir-nos racionalmente de nos desligar de toda virtude como também de todosos prazeres sociais. Enquanto refletimos a propósito da vaidade da vida humanae pensamos na natureza fútil e transitória das riquezas e das honras, estamos,talvez, durante todo este tempo, lisonjeando nossa indolência natural que, poraversão à azáfama do mundo e à fadiga dos negócios, procura um pretextoracional para entregar-se completa e livremente à preguiça. Há, contudo, umacorrente filosófica que parece menos exposta a este inconveniente, pois ela nãose liga a nenhuma paixão desordenada do espírito e nem se alia a qualquer tendência ou propensão natural: é afilosofia acadêmica ou cética. Os acadêmicos falam sempre da dúvida e dasuspensão do juízo, do risco das resoluções apressadas, em confinar asinvestigações do entendimento a estreitos limites e em renunciar a todas asespeculações que transbordam as fronteiras da vida e da prática cotidianas.Nada, por conseguinte, pode ser mais contrário a tal filosofia do que aindolente letargia do espírito, sua atrevida arrogância, suas elevadas pretensõese sua credulidade supersticiosa. Toda paixão é mortificada por ela, exceto oamor à verdade; e esta paixão não é jamais, nem pode ser, elevada a um graudemasiado alto. É surpreendente, todavia, que esta filosofia, que em quasetodos os aspectos deve ser inofensiva e inocente, seja o objeto de tantasacusações e de tantas censuras infundadas. Mas, talvez, a própria circunstânciaque a torna tão inocente seja justamente o que a expõe ao ódio e aoressentimento públicos. Porque ela não adula nenhuma paixão desordenada, nãoobtém muitos adeptos; porque ela se opõe a tantos vícios e tantas tolices,levanta contra si um grande número de adversários, que a estigmatizam comoprofana, libertina e irreligiosa.

Não temos necessidade de recear que esta filosofia, enquanto trata delimitar nossas investigações à vida diária, solape os raciocínios da vidadiária e estenda suas dúvidas até o ponto de destruir toda ação como tambémtoda especulação. A natureza manterá eternamente seus direitos e prevalecerásobre todos os raciocínios abstratos. [1] Embora devêssemos concluir, a exemploda seção anterior, que em todos os raciocínios derivados da experiência oespírito avança sem apoiar-se em argumentos ou processo do entendimento, não háperigo que estes raciocínios, dos quais depende quase todo conhecimento, sejamafetados por tal descoberta. Se o espírito não é levado a dar este passo por umargumento, deve ser persuadido por outro princípio de igual peso e autoridade;e este princípio manterá sua influência contanto que a natureza humanapermaneça invariável. Vale a pena investigar qual é a natureza deste princípio.

Suponde que um homem, dotado das mais poderosas faculdades racionais,seja repentinamente transportado para este mundo; certamente, notaria deimediato a existência de uma contínua sucessão de objetos e um eventoacompanhado por outro, mas seria incapaz de descobrir algo a mais. De início,não seria capaz, mediante nenhum raciocínio, de chegar à ideia de causa eefeito, visto que os poderes particulares que realizam todas as operaçõesnaturais jamais se revelam aos sentidos; nem é razoável concluir, apenas porqueum evento em determinado caso precede outro, que um é a causa e o outro, oefeito. Esta conjunção pode ser arbitrária e acidental. Não há base racionalpara inferir a existência de um pelo aparecimento do outro. E, numa palavra,aquele homem, desprovido de experiência, jamais poderia conjeturar ou raciocinarsobre qualquer questão de fato, nem teria segurança de algo que não estivesseimediatamente presente à sua memória ou aos seus sentidos.

Suponde de novo que o mesmo homem tenha adquirido mais experiência eque tenha vivido o suficiente no mundo para observar que os objetos ou eventosfamiliares estão constantemente ligados; qual é a consequência destaexperiência? Imediatamente infere a existência de um objeto pelo aparecimentodo outro. Entretanto, não adquiriu, com toda a sua experiência, nenhuma ideiaou conhecimento do poder oculto, mediante o qual um dos objetos produziu ooutro; e não será um processo do raciocínio que o obriga a tirar estainferência. Mas ele se encontra determinado a tirá-la; e mesmo se ele fossepersuadido de que seu entendimento não participa da operação, continuariapensando o mesmo, porquanto há um outro princípio que o determina a tirarsemelhante conclusão.

Este princípio é o costume ou o hábito. Visto que todas as vezes que arepetição de um ato ou de uma determinada operação produz uma propensão arenovar o mesmo ato ou a mesma operação, sem ser impelida por nenhum raciocínioou processo do entendimento, dizemos sempre que esta propensão é o efeito docostume. Utilizando este termo, não supomos ter dado a razão última de tal propensão. Indicamos apenas um principio danatureza humana, que é universalmente reconhecido e bem conhecido porseus efeitos. Talvez não possamos levar nossas investigações mais longe e nemaspiramos dar a causa desta causa; porém, devemos contentar-nos com que ocostume é o último princípio que podemos assinalar em todas as nossas conclusõesderivadas da experiência. Já é, contudo, satisfação suficiente poder chegar atéaqui sem irritar-nos com nossas estreitas faculdades, estreitas porque não noslevam mais adiante. Certamente, temos aqui ao menos uma proposição beminteligível, senão uma verdade, quando afirmamos que, depois da conjunçãoconstante de dois objetos, por exemplo, calor e chama, peso e solidez,unicamente o costume nos determina a esperar um devido ao aparecimento dooutro. Parece que esta hipótese é a única que explica a dificuldade que temosde, em mil casos, tirar uma conclusão que não somos capazes de tirar de um sócaso, que não discrepa em nenhum aspecto dos outros. A razão não é capaz desemelhante variação. As conclusões tiradas por ela, ao considerar um círculo,são as mesmas que formaria examinando todos os círculos do universo. Mas ninguém, tendo visto somente umcorpo se mover depois de ter sido impulsionado por outro, poderiainferir que todos os demais corpos se moveriam depois de receberem impulsoigual. Portanto, todas as inferências tiradas da experiência são efeitos docostume e não do raciocínio. [2]

O costume é, pois, o grande guia da vida humana. E o único princípioque torna útil nossa experiência e nos faz esperar, no futuro, uma série deeventos semelhantes àqueles que apareceram no passado. Sem a influência docostume, ignoraríamos completamente toda questão de fato que está fora doalcance dos dados imediatos da memória e dos sentidos. Nunca poderíamos sabercomo ajustar os meios em função dos fins, nem como empregar nossas faculdadesnaturais para a produção de um efeito. Seria, ao mesmo tempo, o fim de todaação como também de quase toda especulação. [3]

Mas aqui deve ser conveniente notar que, embora nossas conclusõesderivadas da experiência nos levem além denossa memória e de nossos sentidos e nos assegurem da realidade de fatosque ocorreram em lugares mais distantes e em épocas remotas, é necessário queum fato esteja sempre presente aos sentidos e à memória, do qual podemos deinício partir para tirar essas conclusões. Se um homem encontrasse num paísdeserto os remanescentes de edifícios suntuosos, concluiria que o país, emtempos remotos, tinha sido cultivado por habitantes civilizados; mas, se nadadesta natureza lhe ocorresse, jamais poderia chegar a semelhante inferência.Pela história, conhecemos os eventos de épocas passadas; todavia, devemosprosseguir consultando os livros que contêm estes ensinamentos e, a partir daí,remontar nossas inferências de um testemunho a outro até chegar às testemunhasoculares e aos espectadores desses eventos remotos. Numa palavra, se nãopartirmos de um fato presente à memória ou aos sentidos, nossos raciocíniosserão puramente hipotéticos; e seja qual for o modo como estes elosparticulares estejam ligados entre si, toda a cadeia de inferência não terianada que lhe servisse de apoio e jamais por meio dela poderíamos chegar aoconhecimento de uma existência real. Se vos perguntasse por que acreditais emdeterminado fato que relatais, deveis indicar-me alguma razão; e esta razãoserá um outro fato em conexão com o primeiro. Entretanto, como não podeis procederdesta maneira in infinitum, deveis finalmente terminar por um fatopresente a vossa memória ou aos vossos sentidos, ou deveis admitir que vossacrença é inteiramente sem fundamento.

Qual é, portanto, a conclusão de toda a questão? É simples; no entanto,deve-se confessar que ela se acha muitodistante das teorias filosóficas correntes. Toda crença, em matéria de fato e deexistência real, procede unicamente de um objeto presente à memória ou aossentidos e de uma conjunção costumeira entre esse e algum outro objeto. Ou, emoutras palavras, como o espírito tem encontrado em numerosos casos que doisgêneros quaisquer de objetos — a chama e o calor, a neve e o frio — sempre têmestado em conjunção, se, de novo, a chama ou a neve se apresentassem aossentidos, o espírito é levado pelo costume a esperar calor ou frio, e aacreditar que esta qualidade existerealmente e que se manifestaria se estivesse mais próxima de nós. [4] Esta crençaé o resultado necessário de colocar o espírito em determinadas circunstâncias.E uma operação da alma tão inevitável como quando nos encontramos emdeterminada situação para sentir a paixão do amor quando recebemos benefícios;ou a de ódio quando nos defrontamos cominjustiças. Todas estas operações são uma espécie de instinto natural quenenhum raciocínio ou processo do pensamento e do entendimento é capaz deproduzir ou de impedir. [5]

A esta altura, poderíamos perfeitamente terminarnossas pesquisas filosóficas. Na maioria dos problemas jamais poderíamos adiantar um únicopasso; e em todas as questões deveríamos terminaraqui, depois das mais incessantes e curiosas investigações. Mas ainda nossacuriosidade será perdoável, talvez digna de elogio, se nos levar ainvestigações mais avançadas e nos fizer examinar com maior exatidão a naturezadesta crença e desta conjunção costumeira, isto é, de onde elaprocede. Por este meio podemos encontrar explicações e analogias quesatisfarão, ao menos, àqueles que amam as ciências abstratas e se contentam comespeculações que, por mais rigorosas que sejam, ainda podem conservar certograu de dúvida e de incerteza. Quanto aos leitores de gosto diverso, o restodesta seção não lhes é destinada, e, se eles não a lerem, ainda assim podemcompreender perfeitamente as investigações posteriores.

  1. A filosofia acadêmica ou cética designa a forma de filosofia daúltima Academia, que floresceu a partir do século IV a.C. Hume a distingue doceticismo pirrônico (veja-se seção XII), que é extremo e, segundo ele, um tipode dogmatismo negativista, pois, embora todos os argumentos racionais semostrem defeituosos e inconclusos, o homem deve decidir e tomar posição na vidaprática. Os escritos filosóficos de Cícero, profundamente marcados por essetipo de ensino, exerceram considerável influência na educação da maioria dosfilósofos modernos, especialmente de Locke, Berkeley e Hume. (Veja-se de Hume, An Inquiry Concerning HumanUnderstanding, ed. Hendel,Liberal Arts, 1955, p. 54, nota 1) [N. do T.]
  2. Nada é mais útil aos escritores, mesmo os queescrevem a respeito de temas morais, políticos ou físicos, do que distinguir entrea razão e a experiência e supor que estas classes de argumentaçãosão inteiramente diferentes entre si. As primeiras são consideradas merosresultados de nossas faculdades intelectuais, as quais, ao considerarem apriori a natureza das coisas e examinarem os efeitos, que devem resultar desua operação, estabelecem princípios particularesà ciência e à filosofia. As últimas são supostas derivar inteiramente dossentidos e da observação, por meio dos quais sabemos o que é queresultou de fato da operação de objetos particulares e assim somos capazes deinferir o que resultará deles no futuro. Assim, por exemplo, as limitações erestrições do governo civil e de sua constituição legal podem ser defendidastanto mediante a razão, que refletindo sobre a debilidade e corrupção danatureza humana nos ensina que a nenhum homem se pode confiar uma autoridadeilimitada, como mediante a experiência e a história, que nos informamdos enormes abusos que a ambição tem cometido em toda época e país, devido auma confiança tão imprudente.

    A mesma distinção entre razão e experiência se verifica em todas asnossas deliberações acerca da conduta na vida. Deste modo, o estadista, ogeneral, o médico e o mercador experientes são seguidos e inspiram confiança,enquanto o novato inexperiente é, por mais bem-dotado de talentos naturais,desprezado e desconsiderado. Embora se admita que a razão pode formularconjeturas mais plausíveis sobre determinada conduta em determinadas condições,supõe-se, todavia, que ela é imperfeita semo auxilio da experiência, pois esta é a única via capaz de conferirestabilidade e certeza às máximas deduzidas mediante estudo e reflexão.

    Apesar da aceitação universal desta distinção, tanto nas etapas da vidaativa como especulativa, não terei escrúpulos em afirmar que é uma atitudeerrônea ou, ao menos, superficial.

    Se examinarmos os argumentos em uma das ciências acima mencionadas esupusermos que eles são meros efeitos do raciocínio e da reflexão,verificaremos que terminam pelo menos em alguma conclusão ou princípio geral,aos quais não podemos alegar outra razão a não ser a observação e a experiência.A única diferença entre as máximas racionais e experimentais (estas vulgarmenteconsideradas resultantes da mera experiência) consiste em que as primeiras nãopodem ser estabelecidas sem algum processo do pensamento e alguma reflexãosobre o que foi observado, a fim de distinguir suas circunstâncias e traçarsuas consequências; nas máximas experimentais, o evento experienciado é exata ecompletamente similar ao que inferimos como resultado de uma situaçãoparticular qualquer. A história de um Nero ou de um Tibério nos levaria a temersemelhante tirania se nossos monarcas estivessem livres das restrições doSenado e da Lei. Mas a constatação de qualquer fraude ou crueldade na vidaprivada é suficiente, com o auxilio de alguma experiência, para alertar-nos domesmo temor, porque serve de exemplo da corrupção geral da natureza humana enos mostra o perigo que poderíamos correr se depositássemos inteira confiançana humanidade. Nos dois casos a experiência é, em última análise, o fundamentode nossa inferência e conclusão.

    Não há homem tão jovem e inexperiente que não tenha formado muitos ecorretos princípios sobre os assuntoshumanos e a conduta na vida. Mas é preciso admitir que, quando um homemprocura exercê-los, está mais propenso a errar, até que o tempo e experiênciasulteriores lhe ampliem estes princípios e lhe ensinem seu uso adequado eaplicação. Em toda situação ou incidente há várias circunstâncias particulares,aparentemente sem importância, que o homem mais bem-dotado está inclinado a princípioa desdenhar, embora dependam delas a exatidão de suas conclusões e, porconseguinte, a prudência de sua conduta. Sem mencionar que, para um jovemprincipiante, os princípios e as operações gerais nem sempre se manifestam emocasiões adequadas e nem podem ser imediatamente aplicados com a devida calma edistinção. A verdade é que um homem que raciocina sem experiência não poderiaraciocinar se olvidasse inteiramente a experiência; quando designamos alguémcom esta característica, fazemo-lo somente em sentido comparativo e supomos quepossui experiência em grau mais ou menos imperfeito (Hume).
  3. Em outra passagem desta Investigação, Hume manifesta aesperança de que “a filosofia, se cuidadosamente cultivada e encorajada pelaatenção do público, possa levar suas indagações ainda mais longe (isto é, dageografia mental) e descubra, pelo menos em parte, as fontes e os princípiossecretos que impulsionam o espírito humano em suas operações (seção I, p. 68).A descoberta da função indispensável do costume em todo conhecimento daexperiência pode ser, talvez, classificada como o avanço mais significativonaquela direção”. (Veja-se Flew, ob. cit., p. 77.) [N. do T.]
  4. O costume é, portanto, o fator que nos faculta a antecipar que ofuturo será semelhante ao passado e nos leva a inferir de uma causa presente umefeito ausente. O costume compreende tambémmais alguma coisa. As ideias introduzidas por ele são inferências e não merassugestões. A experiência que temos da conjunção constante entre, porexemplo, chama e calor, ou neve e frio, determina-nos, quando revemos a chamaou a neve, pelo “costume a esperar calor ou frio, e a acreditar que estarealidade existe realmente e que se manifestaria se estivesse mais próxima denós”. Revela-se, assim, como o costume envolve e condiciona a crença. [N. doT.]
  5. Hume escreve no Tratado que a “crença é mais propriamente umato sensitivo do que um aspecto cogitativo de nossa natureza” (1, iV, 1, p.183). [N. do T.]
Segunda parte

Não há nada mais livre do que a imaginação humana; embora não possaultrapassar o estoque primitivo de ideiasfornecidas pelos sentidos externos e internos, ela tem poder ilimitado paramisturar, combinar, separar e dividir estas ideias em todas as variedades daficção e da fantasia imaginativa e novelesca. Ela pode inventar uma série deeventos com toda aparência de realidade, pode atribuir-lhes um tempo e um lugarparticulares, concebê-los como existentes e descrevê-los com todos ospormenores que correspondem a um fato histórico, no qual ela acredita com amáxima certeza. Em que consiste, pois, a diferença entre tal ficção e a crença?Ela não se localiza simplesmente em uma ideia particular anexada a umaconcepção que obtém nosso assentimento, e que não se encontra em nenhuma ficçãoconhecida. Pois, como o espírito tem autoridade sobre todas as suas ideias,poderia voluntariamente anexar esta ideia particular a uma ficção e, por conseguinte, seria capaz de acreditar no que lheagradasse, embora se opondo a tudo que encontramos na experiência diária.Podemos, quando pensamos, juntar a cabeça de um homem ao corpo de um cavalo,mas não está em nosso poder acreditar que semelhante animal tenha alguma vezexistido.

Conclui-se, portanto, que a diferença entre a ficção e a crença se localiza em algum sentimento ou maneira de sentir, anexado à última enão à primeira, que não depende da vontade e não pode ser manipulado a gosto. Épreciso que a natureza a desperte como os outros sentimentos; é preciso que ela nasça da situação particular em que oespírito se encontra em cada conjuntura particular. Todas as vezes queum objeto se apresenta à memória ou aos sentidos, pela força do costume, aimaginação é levada imediatamente a conceber o objeto que lhe estáhabitualmente unido; esta concepção é acompanhada por uma maneira de sentir ousentimento, diferente dos vagos devaneios da fantasia. Eis toda a natureza dacrença. [1] Visto que nossa mais firme crença sobre qualquer fato sempre admiteuma concepção que lhe é contrária, não haveria, portanto, nenhuma diferença entre nosso assentimento ou rejeição dequalquer concepção, se não houvesse algum sentimento distinguindo uma da outra.Se vejo, por exemplo, uma bola de bilhar deslizar em direção de outranuma mesa polida, posso imaginar com clareza que uma parará ao chocar-se com a outra. Esta concepção não implicacontradição, porém a sinto muito diferente da concepção pela qual merepresento o impulso e a comunicação do movimento de uma bola a outra.

Se tentássemos uma definição [1] deste sentimento, veríamos, talvez,que se trata de tarefa muito difícil, senão impossível; da mesma maneira comose tentássemos definir a sensação de frio ou a paixão de cólera a uma criaturaque nunca teve a experiência destes sentimentos. Crença é o nome verdadeiro epróprio desta maneira de sentir; ninguém jamais se encontra em dificuldade parasaber o significado daquele termo, porque cada um está, em todo momento,consciente do sentimento que representa. Sem dúvida, não seria impróprio tentaruma descrição deste sentimento esperando chegar, por este meio, aalgumas analogias que poderiam fornecer uma explicação mais perfeita. Digo,pois, que a crença não é nada senão uma concepção de um objeto mais vivo, maisvivido, mais forte, mais firme e mais estável que aquela que a imaginação, porsi só, seria capaz de obter. Uso esta variedade de termos, embora tão pouco filosófica, com a única intenção de exprimir esteato de espírito que nos revela realidades, ou que se considera como tal,mais presentes a nós que as ficções, que as faz pensar mais no pensamento elhes dá uma influência superior às paixões e à imaginação. Desde queconcordamos no tocante à coisa, é desnecessário discutir acerca dos termos. Aimaginação governa todas as suas ideias e pode uni-las, misturá-las e variá-lasde todas as formas possíveis. Pode conceber objetos fictícios em todas assituações de espaço e de tempo. Pode colocá-los de certa maneira diante denossos olhos com suas próprias cores, exatamente como se houvessem existido.Mas, como é impossível que essa faculdade da imaginação possa jamais, por simesma, converter-se em crença, é evidente que a crença não consiste na naturezaparticular ou na ordem da ideias, mas na maneira como o espírito asconcebe e as sente. Confesso que é impossível explicar com perfeição estesentimento ou esta maneira de conceber. Podemos usar palavras que expressamalgo parecido. Mas o seu nome verdadeiro e próprio, como já dissemos, é crença:termo que cada um compreende suficientemente na vida corrente. Em filosofia,não podemos ir além da seguinte afirmação: crença é qualquer coisa sentida pelo espírito, que distingue as ideias dosjuízos das ficções da imaginação. Ela lhes dá maior peso e influência; as fazparecer de maior importância; as reforça no espírito e as estabelece como princípiosdiretivos de nossas ações. Ouço agora, por exemplo, a voz de uma pessoaconhecida, e o som parece vir do quarto contíguo. Esta impressão dos meussentidos conduz imediatamente meu pensamento à pessoa e, ao mesmo tempo, atodos os objetos circundantes. Eu os pinto para mim mesmo como existentesatualmente e com as próprias qualidades e relações que já sabia que possuíam.Estas ideias se apoderam de meu espírito mais depressa que as ideias de umcastelo encantado. Sinto-as de modo muito diferente, e sua influência é bemmaior, em todos os pontos de vista, tanto para produzir prazer e dor comoalegria e tristeza.

Consideremos, pois, esta doutrina em toda a sua extensão e concedamosque o sentimento da crença nada mais é do que uma concepção mais intensa e maisfirme do que aquele que acompanha as puras ficções da imaginação, e que esta maneira de conceber nasce de uma conjunção costumeira do objeto com alguma coisapresente à memória e aos sentidos. Não será difícil, creio eu, com estasconjeturas, encontrar outras operações do espírito que lhe sejam análogas eascender deste fenômeno a princípios ainda mais gerais.

Já temos observado que a natureza estabeleceu conexões entre as ideiasparticulares, e que uma ideia, logo que aparece aos nossos pensamentos,introduz sua correlata e dirige nossa atenção na direção dela, mediante ummovimento suave e insensível. Estes princípios de conexão ou de associaçãoforam por nós reduzidos a três, a saber: semelhança, contiguidade e causalidade, que são os únicos laços que unem entre si nossospensamentos e que engendram a série regular de reflexão ou do discurso que, emmaior ou menor grau, se realiza entre todos os homens. Ora aqui surge umproblema do qual dependerá a solução da presente dificuldade. Admitindo-se queem todas as relações, quando um dos objetos é revelado aos sentidos ou àmemória, o espírito não é apenas induzido a conceber seu correlato, mas oconcebe de maneira mais firme e mais forte, indagamos se esta nova concepçãopoderia ser alcançada de outro modo? Parece-nos que é o que ocorre com a crençaoriginada da relação de causa e efeito. Ora, se o mesmo fenômeno se verifica emoutras relações ou princípios de associação, poder-se-ia considerá-las uma leigeral ocorrendo em todas as operações do espírito.

Portanto, podemos constatar, como primeiro experimento em vista denossos fins atuais, que, quando nos defrontamos com o retrato de um amigoausente, é evidente que sua ideia nos é avivada pela semelhança, e quetoda paixão engendrada por esta ideia — quer de alegria, quer de tristeza —adquire nova força e novo vigor. Para a produção deste efeito, concorremsimultaneamente uma relação e uma impressão presente. Se o retrato não ésemelhante ao nosso amigo ou não foi ao menos feito para assemelhar-lhe, jamaisfaz convergir nosso pensamento para ele; se tanto o retrato como a pessoaestiverem ausentes, embora o espírito possa passar do pensamento de um para o da outra, sente que sua ideia se acha maisenfraquecida do que avivada por esta transição. Sentimos prazer quandovemos o retrato de um amigo; porém, quando ele é retirado, preferimosconsiderar nosso amigo diretamente a fazê-lo através de sua imagem refletidaque é, ao mesmo tempo, distante e obscura.

As cerimônias da religião católica romana podem considerar-se comoexemplos da mesma natureza. Os devotos desta superstição alegam geralmente,desculpando as momices que lhes censuram, que sentem o bom efeito destesmovimentos exteriores, de posturas e ações que avivam sua devoção e estimulamseu fervor, que de outro modo seriam enfraquecidos se se dirigisseminteiramente a objetos distantes e imateriais. Representamos os objetos denossa fé, dizem eles, com símbolos e imagens sensíveis, aproximando-os assim denós pela presença imediata destes símbolos do que pela mera visão intelectual econtemplativa. Os objetos sensíveis influem com mais vigor sobre a fantasia doque quaisquer outros e comunicam mais depressaesta influência às ideias com as quais se relacionam e se assemelham. Inferireisomente, destas práticas e deste raciocínio, que o efeito da semelhançaavivando ideias é bastante comum; e como em todos os exemplos concorrem umasemelhança e uma impressão presente, consideramo-nos fartamente abastecidos deexperimentos comprovantes da realidade do princípio precedente.

Podemos reforçar estas experiências com outras de gênero diferente,considerando os efeitos da contiguidade do mesmo modo que os da semelhança.Certamente, a distância diminui a força de toda ideia, e quando nos aproximamosde um objeto, mesmo se ele não se revela aos nossos sentidos, age sobre oespírito com influência parecida a uma impressão imediata. Pensar num objetofaz convergir imediatamente o espírito ao que lhe é contíguo; porém, éunicamente a presença real de um objeto que o transporta com vivacidadesuperior. Encontrando-me a poucas milhas de minha casa, qualquer coisa que serelaciona com ela me toca mais de perto do que quando estou a duzentas léguas,embora, mesmo a esta distância, se reflito sobre qualquer objeto situadopróximo de meus amigos ou de minha família, esta reflexão produz naturalmente aideia deles. Mas, considerando que, neste exemplo, os dois objetos do espíritosão apenas ideias e não obstante a fácil transição de uma a outra, estatransição, por si mesma, é incapaz de dotar de vivacidade superior quaisquerideias, porque ela carece de uma impressão imediata. [3]

Ninguém deve duvidar que a causalidade tem influência idêntica àsrelações de semelhança e de contiguidade. Os supersticiosos afeitos às relíquiasdos santos e de personagens sagradasprocuram, por esta razão, símbolos ou imagens que possam avivar sua devoção efornecer-lhes concepção mais íntima e mais forte das vidas exemplaresque visam a imitar. Ora, é evidente que uma das melhores relíquias procuradaspor um devoto seria um objeto feito pelo próprio santo; e se se consideram suasroupas e móveis sob este prisma, é porque estiveram uma vez à disposição dosanto que os tocou e, portanto, os influenciou. Devem, contudo, considerar-secomo efeitos imperfeitos e ligados ao santo por uma cadeia de consequênciasmais curtas do que algumas daquelas pelas quais adquirimos conhecimento sobresua existência real.

Suponde, de outro lado, que vos fosse apresentado o filho de um amigomorto ou ausente há muito tempo;certamente, este objeto reviveria num instante sua ideia correlata e fariaretomar ao nosso pensamento todas as intimidades e familiaridades passadas, emcores mais vivas do que aquelas que de outro modo vos teriam aparecido. Este éoutro fenômeno que parece comprovar o princípio acima mencionado.

Devemos assinalar que nestes fenômenos sempre se pressupõe a crença noobjeto correlato, sem o que a relação não teria nenhum efeito. O retrato exerceinfluência porque cremos que nosso amigo alguma vez já existiu. A contiguidadecom nossa casa não pode jamais estimular nossas ideias sobre ela, a menos quecreiamos que a casa realmente existe. Ora, afirmo que esta crença — se seestende além dos dados da memória ou dos sentidos — é de natureza semelhante e surge de causas semelhantes àtransição do pensamento e vivacidade da concepção, aqui explicadas.Quando lanço ao fogo um pedaço de lenha seca, meu espírito se vê obrigadoimediatamente a conceber que ela aviva em vez de extinguir a chama. Estatransição do pensamento da causa ao efeito não se baseia na razão. Sua origemderiva completamente do hábito e da experiência. Visto que a transição seorigina de um objeto presente aos sentidos, este incorpora à ideia ou àconcepção da chama mais força e vivacidade do que qualquer devaneio vago eflutuante da imaginação. Esta ideia nasce imediatamente. E o pensamentoconverge instantaneamente para a ideia, transferindo-lhe toda a forçaconceptual que deriva da impressão presente aos sentidos. Se uma espada estiverapontada para o meu peito, as ideias de ferimento e dor que a acompanham não meatingem com mais força do que se me apresentam um copo de vinho, e mesmosupondo que por acaso esta ideia surgisse após o aparecimento do último objeto?Mas, o que é que causa uma concepção tão forte, senão unicamente a presença deum objeto, e a transição costumeira para a ideia de outro objeto, que nosacostumamos a juntar com a primeira? Eis toda operação do espírito em todas asnossas conclusões referentes às questões de fato e de existência; e já é umasatisfação encontrar algumas analogias que podem explicá-la. A transição apartir de um objeto presente dá, em todos os casos, força e solidez à ideia coma qual está relacionado.

Eis, pois, uma espécie de harmonia preestabelecida entre o curso danatureza e a sucessão de nossas ideias; e embora os poderes e as forças quegovernam a primeira nos sejam totalmente desconhecidos, achamos que nossospensamentos e nossas concepções se têm sempre desenrolado na mesma sequênciaque as outras obras da natureza. O costume é o princípio que tem realizado estacorrespondência, tão necessária para a conservação de nossa espécie e para oregulamento de nossa conduta em todas as circunstâncias e situações da vidahumana. Se a presença de um objeto não despertasse instantaneamente a ideia dosobjetos que comumente estão unidos a ele, todo nosso conhecimento deverialimitar-se à estreita esfera de nossa memória e de nossos sentidos, e jamaisseríamos capazes de adaptar os meios em vista dos fins ou de empregar nossospoderes naturais para produzir o bem ou evitar o mal. Aqueles que se deliciamna descoberta e na contemplação das causas finais, têm aqui amplo objetopara empregar a sua curiosidade e espanto.

Acrescentarei reforçando a teoria precedente — que esta operação doespírito, permitindo-nos inferir efeitos semelhantes de causas semelhantes e vice-versa,por ser tão essencial para a conservação de todos os seres humanos, não poderiaser confiada às falazes deduções da razão humana, que é lenta em suas operaçõese não se manifesta, em qualquer grau, nos primeiros anos de nossa infância e,no melhor dos casos, no decorrer da vida humana acha-se mais exposta ao erro eao engano. Conforma-se mais com a sabedoria ordinária da natureza assegurar-sede um ato tão necessário do espírito graças a um instinto ou tendênciamecânica, que pode ser infalível em suas operações e pode revelar-se a partirdo nascimento da vida e do pensamento e, demais, independe de todas aselaboradas deduções de entendimento. Do mesmo modo que a natureza nos ensinou ausar nossos membros sem esclarecer-nos acerca dos músculos e nervos que osmovem, ela também implantou em nós um instinto que impulsiona o pensamento numprocesso correspondente ao estabelecido entre os objetos externos, emboramantendo-nos ignorantes destes poderes e forças dos quais dependem totalmente ocurso regular e a sucessão de objetos.

  1. Hume acrescenta, no “Appendix” do Tratado, um novo elementopara explicar a crença. Salienta que um “segundo erro pode ser encontrado noprimeiro livro, página 96, quando digo que duas ideias de um mesmo objeto podemser discriminadas apenas por seus diferentes graus de força e vivacidade.Acredito que há outra diferença entre as ideias que não podem ser adequadamentecompreendidas com aqueles termos. Se tivesse dito que duas ideias de um mesmoobjeto podem diferenciar-se apenas por seus diferentes feeling [traduzimospor “maneira de sentir”], estaria bem mais próximo da verdade” (p. 636). Estanova discussão da natureza da crença ocupa nove das dezessete páginas do“Appendix”, e seu principal aspecto consiste em mostrar que a crença é um feeling.Convém lembrar que, no corpo do Tratado, em nenhum momento a crença é designadacomo feeling. Tendo, porém, introduzido esse acréscimo no “Appendix”,Hume permanece coerente com a mesma doutrina na Investigação. [N. do T.]
  2. Hume anota que a crença constitui um ato do espírito jamais“explicado por nenhum filósofo” (Tratado, 1, iii, vil, p. 97, nota).Mostra, por exemplo, que não custa muito explicar como uma “pessoa” consideraverdadeiras as proposições demonstrativas ou intuitivas, já que quando ela“decide, não apenas concebe as ideias segundo a proposição, mas énecessariamente determinada a concebê-las de um modo específico” (Idem, p. 95).Mas o que é evidente para a demonstração não o é em relação à crença baseadanos raciocínios de causalidade, nos quais a “necessidade absoluta não severifica, e a imaginação é livre para conceber os dois aspectos da questão” (Ibidem,p. 95). [N. do T.]
  3. “Poderia dizer, ele respondeu, que é uma disposição natural ou nãosei qual ilusão que nos deixa intensamente comovidos quando vemos os lugarespelos quais, como nos informaram, homens dignos de memória passaram longotempo, do que quando nos falam a respeito deles ou lemos alguma coisa escritapor eles? Eu, por exemplo, estou agora comovido. Platão surge em minha mente e,pelo que sabemos, ele foi o primeiro homem a realizar aqui discussõesregulares: estes pequenos jardins, tão próximos de nós, não apenas despertam emmim a lembrança de Platão, mas apresentam, por assim dizer, sua imagem diantede meus olhos. Era aqui que estava Espeusipo, lá Xenócrates e acolá seudiscípulo, Polemo, que sentava geralmente naquele lugar. Em verdade, quando via sede de nosso Senado (refiro-me à que foi construída por Hostilio e não aonovo prédio, que quase não me comove depois que foi ampliado), pensei emCipião, Catão e Lélio, mas sobretudo em meu avô. E tão grande o poder doslugares para despertar recordações que, com muita razão, o treinamento damemória deriva deles” Cícero, De Finibus, v. 2 (Hume). [Trad. por AnoarAiex] .

Seção VI

Da probabilidade [1]

Embora não haja tal coisa como o acaso no mundo, nossa ignorância dacausa real de qualquer evento tem igual influência sobre o entendimento,gerando equivalente tipo de crença ou opinião. Há certamente uma probabilidadeque resulta de uma superioridade de possibilidades a favor de uma das partes e,à medida que esta superioridade aumenta excedendo as possibilidades opostas, aprobabilidade recebe um aumento proporcional gerando maior grau de crença ouassentimento à parte em que descobrimos a superioridade. Se um dado fossemarcado com um algarismo ou mesmo número de pontos em quatro faces e com outroalgarismo ou mesmo número de pontos nas duas restantes, seria mais provável quesaísse uma daquelas do que destas faces; todavia, se mil faces fossem marcadasde modo idêntico e apenas uma diferente, a probabilidadeseria muito maior, e nossa crença ou expectativa do evento seria mais firme emais segura. Este processo do pensamento ou raciocínio pode parecer semimportância e evidente; porém, para quem o examina com mais cuidado, pode,talvez, constituir assunto de curiosa especulação.

Parece evidente que, quando o espírito se antecipa para desvendar oevento que resultará do lançamento de tal dado, considera como igualmenteprovável que saia qualquer uma das faces, pois é inerente ao acaso tornarinteiramente iguais todos os eventos particulares compreendidos nele. Mas,verificando que maior número de faces aparece mais em um evento que no outro, oespírito converge com mais frequência para ele e o encontra muitas vezes aoconsiderar as várias possibilidades das quais depende o resultado definitivo.Esta afluência de várias inspeções sobre um único evento particular geraimediatamente, por uma inexplicável disposição natural, o sentimento da crença,dando primazia a este evento sobre seu antagonista, que é apoiado por pequenonúmero de inspeções e recorre com menos frequência ao espírito. Se concordamosque a crença nada mais é do que uma concepção de um objeto, mais firme e mais forte do que aquela que acompanha as ficções daimaginação, podemos, talvez, explicar até certo ponto esta operação. Aconfluência de várias inspeções ou de olhadas rápidas imprime a ideia com maisforça em nossa imaginação, dá-lhe força e vigor superiores, torna mais sensívelsua influência sobre as paixões einclinações e, numa palavra, origina esta confiança e segurança que constituema natureza da crença e da opinião.

Com a probabilidade das causas ocorre o mesmo que com a dos acasos. Háalgumas causas que são inteiramente uniformes e constantes na produção dedeterminado efeito e não apresentam nenhum exemplo de falha ou irregularidadeem seu procedimento. O fogo e a água têmsempre queimado ou asfixiado a todo ser humano; a produção do movimento peloimpulso e gravidade é uma lei universal que até agora se tem admitidosem exceção. Há, contudo, outras causas que têm sido consideradas maisirregulares e incertas, por exemplo, o ruibarbo nem sempre se tem mostradopurgativo, nem o ópio soporífero, a todas as pessoas que têm tomado essesremédios. Em verdade, quando uma causa deixa de produzir seu efeito habitual,os filósofos não atribuem esta falha a uma irregularidade na natureza, pelocontrário, supõem que algumas causas desconhecidas, situadas na estrutura doselementos, têm impedido a operação. Contudo, nossos raciocínios e conclusõessobre o evento permanecem os mesmos como se este princípio não existisse. Comoo costume nos determina a transferir o passado para o futuro em todas as nossasinferências, esperamos — se o passado tem sido inteiramente regular e uniforme— o mesmo evento com a máxima segurança enão toleramos qualquer suposição contrária. Mas, se temos verificado quediferentes efeitos acompanham causas que em aparência são exatamentesimilares, todos estes efeitos variados devem apresentar-se ao espírito aotransferir o passado para o futuro, edevemos considerá-los quando determinamos a probabilidade do evento. Embora demospreferência ao efeito que tem sido mais usual e creiamos que ele existirá, nãodevemos descuidar dos outros efeitos, porémdevemos assinalar para cada um deles uma autoridade e peso específicos,em proporção à maior ou menor frequência em que os temos encontrado. E maisprovável — na maioria dos países europeus — que geará em algum dia de janeiro,e é improvável que durante este mês não geará: embora esta probabilidade variede acordo com os diferentes climas, ela aproxima-se da certeza nos paísesnórdicos. Parece, pois, evidente que, quando transferimos o passado para ofuturo, a fim de determinarmos o efeito que resultará de alguma causa,transferimos todos os diferentes eventos na mesma proporção em que têmaparecido no passado e consideramos que um se tem revelado cem vezes, porexemplo, essoutro dez vezes e aqueloutro, uma só vez. Como um grande número deinspeções afluem aqui sobre um único evento, elas o fortificam e o confirmam naimaginação, engendrando este sentimento que denominamos crença; econfere ao seu objeto preferência sobre o evento oposto que não é apoiado pelo mesmo número de experimentos e nãoretorna com tanta frequência ao pensamento quando transferimos o passadopara o futuro. Se alguém tentar explicar este processo do espírito em qualquer um dos sistemas filosóficosexistentes, sentir-se-á consciente da dificuldade. De minha parte,dar-me-ei por satisfeito se as presentes indicações incitarem a curiosidade dosfilósofos e os fizerem ver quão deficientes são todas as teorias vigentesquando discorrem sobre objetos tão curiosos e sublimes.

  1. Locke divide todos os argumentos em demonstrativos e prováveis.Segundo este ponto de vista, devemos afirmar que é apenas provável que todos oshomens devem morrer ou que o sol nascerá amanhã. Mas para conformar nossalinguagem ao uso corrente, devemos dividir os argumentos em demonstrações,provas e probabilidades. Por prova, entendemos aqueles argumentosderivados da experiência que não deixam lugar à dúvida ou à oposição (Hume).

    A discriminação entre vários graus de certeza, correspondentesrespectivamente ao conhecimento, provas e probabilidades, estabelece de maneiramais categórica a dicotomia entre conhecimento e crença. Sugere-nos, assim, quepodemos estabelecer, como escreve acertadamente Mossner, a seguinteclassificação: 1) o conhecimento dotado de certeza absoluta, atingível atravésda demonstração e enquadrável pela esfera do a priori; 2) a crença,alcançável em dois níveis no primeiro, denominado provas, em que não havendoexperiência contra experiência a crença opera com todo o vigor. Trata-se,portanto, dos argumentos da experiência isentos de dúvida e incerteza, a saber,o “nascimento do sol” ou que “todos os homens morrem”.

    No segundo nível, situam-se as probabilidades ou argumentos daexperiência suscetíveis de dúvidas, em que a crença pode variar darelativamente baixa para a relativamente alta. (Veja-se de Mossner, “Introduction to Modernity”, p. 49, in ASymposion on Eighteenth Centuny, Mollenauer (org.), Austin, 1965.) Devemos, todavia, evitar interpretarerroneamente o sentido de “probabilidades” na filosofia humeana. Não se tratade cálculo matemático de probabilidades. Em nenhum de seus textos Hume fazqualquer referência ao emprego das probabilidades em sentido técnico. Aocontrário, trata-se apenas de mostrar o mecanismo psicológico pelo qual acrença se fixa na imaginação. [N. do T.]

Seção VII

Da ideia de conexão necessária [1]

Primeira parte

A grande vantagem das ciências matemáticas sobre as ciências moraisconsiste nisto: as ideias das primeiras, sendo sensíveis, são sempre claras edistintas; assim a menor diferença entre elas é imediatamente perceptível e,ademais, os mesmos termos exprimem sempre as mesmas ideias sem ambiguidade ouvariação. Um óvulo nunca se confunde com um círculo, nem uma hipérbole com umaelipse. Os triângulos isósceles e escaleno diferenciam-se por limites maisexatos que o vício e a virtude, o bem e o mal. Se se define um termo em geometria,o espírito imediatamente e por si mesmo substitui em todas as ocasiões adefinição pelo termo definido, ou ainda,quando utiliza a definição, o próprio objeto pode apresentar-se aos sentidos e,por este meio, apreende-o com firmeza e claramente. Mas os sentimentosmais sutis do espírito, as funções do entendimento, as diversas agitações daspaixões, embora realmente diferenciados em si mesmos, esquivam-se facilmente denós quando os examinamos pela reflexão; e temos o poder de recordar o objetooriginal tão frequentemente como temos ocasião de contemplá-lo. Desta maneira,a ambiguidade se introduz gradualmente em nossos raciocínios: objetossemelhantes são facilmente considerados como idênticos, e a conclusão torna-seafinal muito afastada das premissas.

Pode-se, portanto, afirmar com toda a segurança que, se considerarmosestas ciências de modo adequado, suas vantagens e desvantagens quase secompensam e ambas se igualam. Se o espírito retém com mais facilidade as ideiasgeométricas claras e distintas, deve, todavia, desenvolver uma cadeia deraciocínios muito mais extensa e bem mais complicada, e deve comparar ideiasbastante afastadas entre si, a fim de alcançar as verdades mais abstrusas dessaciência. E, se as ideias morais tendem, a menos que se tenha grande cuidado, acair na obscuridade e na confusão, as inferências são muito mais curtas nestaspesquisas, e os passos intermediários que levem à conclusão, bem menores que osda ciência que trata da quantidade e do número. Na realidade, é raro encontrarna geometria de Euclides uma proposição tão simples, que não tenha mais partesque as que se encontram em qualquer raciocínio moral, a menos que este serefira a coisas quiméricas ou fantásticas. Quando localizamos os princípios doespírito humano através de alguns passos, podemos contentar-nos com nossoprogresso, se considerarmos quãorapidamente a natureza antepõe uma barreira a todas as nossas investigações sobreas causas e nos obriga a reconhecer nossa ignorância. Portanto, o principalobstáculo para o nosso aperfeiçoamento nas ciências morais ou metafísicasconsiste na obscuridade das ideias e na ambiguidade dos termos. A principaldificuldade nas matemáticas refere-se à extensão das inferências e dopensamento necessário para formular qualquer conclusão. E, talvez, nossoprogresso em filosofia natural se retarde principalmente pela escassez deexperimentos e de fenômenos adequados, que são frequentemente descobertos poracaso e nem sempre localizados quando precisamos, mesmo pela mais diligente eprudente investigação. Como a filosofia moral se revela até agora menosaperfeiçoada do que a geometria ou a física, podemos concluir que, se há algumadiferença sob este aspecto entre estas ciências, os obstáculos que impedem oprogresso da primeira necessitam de maior cautela e habilidade para seremsobrepujados.

Não há ideias mais obscuras e incertas em metafísica do que as depoder, força, energia ou conexão necessária [2], às quais necessitamosreportar-nos constantemente em todas as nossas inquirições. Tentaremos,portanto, nesta seção, estabelecer e, por este meio, remover parte daobscuridade tão lamentada neste gênero de filosofia.

Parece que esta proposição não admitirá muita controvérsia: todas asnossas ideias são cópias de impressões ou, em outras palavras, é-nos impossívelpensar em algo que antes não tivéramos sentido, quer pelos nossos sentidosexternos, quer pelos internos. Tenho intentado [3] explicar e provaresta proposição, e tenho também manifestado minhas expectativas de que,mediante sua adequada aplicação, se possa alcançar mais clareza e exatidão nosraciocínios filosóficos do que até agora se tem podido obter. As ideiascomplexas podem, talvez, ser bem entendidas por definição, consistindo naenumeração das porções ou ideias simples que as compõem. Contudo, quandoencaminhamos as definições às ideias mais simples e deparamos ainda algumaambiguidade e obscuridade, que recurso possuímos? Que invenção nos permiteiluminar estas ideias e fazê-las completamente exatas e determinadas à consideraçãointelectual? É preciso produzir as impressões ou sensações originais das quaisas ideias são cópias. Essas impressões são todas fortes e sensíveis. Nãoadmitem ambiguidade. Elas próprias não estão apenas colocadas em plena luz, maspodem também iluminar suas ideias correspondentes que jazem na obscuridade.Podemos, talvez por este meio, obter um novo microscópio ou novo sistema deóptica que possibilite, nas ciências morais, a ampliação das ideias maissimples e diminutas de modo que possamos apreendê-las facilmente e possamosconhecê-las do mesmo modo que as ideias mais palpáveis e sensíveis, que devemser o objeto de nossa inquirição.

Portanto, para atingir um conhecimento total da ideia de poder ou deconexão necessária, devemos examinar sua impressão e, a fim de desvendar aimpressão com maior segurança, busquemo-la em todas as fontes das quais elapossivelmente deve derivar.

Quando olhamos em torno de nós na direção dos objetos externos econsideramos a ação das causas, não somos jamais capazes, a partir de um únicocaso, de descobrir algum poder ou conexão necessária, alguma qualidade queligasse o efeito à causa e tomasse um a consequência infalível do outro. Apenasconstatamos que um, realmente, segue o outro. O impulso de uma bola de bilhar éacompanhado pelo movimento de segunda. Eis tudo que se manifesta aos sentidosexternos. O espírito não sente nenhuma sensação ou impressão interna em virtudedesta sucessão de objetos; por conseguinte, não há, num só caso isolado eparticular de causa e efeito, nada que possa sugerir a ideia de poder ou deconexão necessária.

A partir da primeira aparição de um objeto,jamais podemos conjeturar que efeito resultará dele. Mas se o espírito pudesse descobrir o poder ou aenergia de qualquer causa, poderíamos prever o efeito, mesmo sem a experiência,e poderíamos também, desde o principio, pronunciarmos com certeza a seurespeito, apenas pela força do pensamento e do raciocínio.

Na realidade, não há nenhuma porção da matéria que nos revele, atravésde suas qualidades sensíveis, um poder ou energia, ou que nos dê fundamentopara imaginar que poderia produzir algo, ou que seria seguida por um outroobjeto que poderíamos denominar seu efeito. A solidez, a extensão e o movimentosão qualidades completas em si mesmas e não indicam outro evento que possaresultar delas. As cenas do universo variam continuamente; e um objetoacompanha outro em sucessão ininterrupta; porém, o poder ou a força que movetoda a máquina está completamente oculto de nós e nunca se revela em nenhumadas qualidades sensíveis dos corpos. Sabemos que, de fato, o calor é umacompanhante constante de chama, mas não temos ensejo para conjeturar ouimaginar qual é a sua conexão. Portanto, é impossível que a ideia de poderpossa derivar da contemplação de corpos em casos isolados de sua operação,porque jamais um corpo nos revela um poder que seja a origem desta ideia. [4]

Portanto, já que os objetos externos, tal como aparecem aos sentidos,não nos fornecem nenhuma ideia de poder ou conexão necessária, através de suasoperações em casos particulares, vejamos se esta ideia deriva da reflexão sobreas operações de nosso próprio espírito e se ela é copiada de alguma impressãointerna. Pode-se dizer que, em todo momento, temos consciência de nosso poder interno,porquanto sentimos que, pela mera ordem de nossa vontade, podemos mover osórgãos de nosso corpo ou governar nossas faculdades espirituais. Um atovolitivo produz um movimento em nossos membros ou origina uma nova ideia emnossa imaginação. Conhecemos esta influência da vontade pela consciência.Adquirimos assim a ideia de poder ou de energia e certificamo-nos que tanto nóscomo todos os outros seres inteligentes são dotados deste poder. [5] Estaideia, portanto, é uma ideia reflexiva porque surge ao refletir sobre as operaçõesde nosso próprio espírito e sobre o governo que a vontade exerce tanto sobre osórgãos do corpo como sobre as faculdades da alma. [6]

Examinaremos esta hipótese [7] verificando primeiramente a influênciada vontade sobre os órgãos do corpo. Esta influência, devemos observar, é umfato que, como todos os outros eventos naturais, unicamente pode ser conhecidapela experiência e jamais pode ser prevista a partir da aparente energia oupoder situado na causa, unindo-a ao efeito e fazendo de um a consequênciainfalível da outra. O movimento de nosso corpo obedece à ordem da vontade.Disto temos sempre consciência. Mas o modo pelo qual isto se realiza, a energiaconferida à vontade no desempenho deste processo tão extraordinário distanciam-sede nossa consciência imediata e devem excluir-se para sempre de nossa maisdiligente investigação.

Em primeiro lugar, indagamos se há em toda a natureza algum princípiomais misterioso que o da união da alma com o corpo, pelo qual uma suposta substânciaespiritual adquire influência sobre uma substância material, de tal modo que opensamento mais refinado é capaz de mover a matéria mais grosseira? Setivéssemos o poder, por um desejo secreto, de mover montanhas ou controlar osplanetas em sua órbita, esta ampla autoridade não seria mais extraordinária enão ultrapassaria demais nossa compreensão. Mas, se a consciência nos fizesseperceber um poder ou uma energia na vontade, deveríamos apreender este poder;deveríamos entender sua conexão com o efeito; deveríamos conhecer a uniãooculta da alma e do corpo e a naturezadestas duas substâncias por meio da qual uma é capaz de agir, de tantos modos,sobre a outra.

Em segundo lugar, não somos capazes de mover todos os órgãos do corpocom a mesma autoridade, embora não possamos designar nenhuma razão, exceto aexperiência, para uma diferença tão marcante entre uns e outros. Por que avontade tem influência sobre a língua e os dedos e não sobre o coração ou ofígado? Esta questão jamais nos embaraçaria se tivéssemos consciência de umpoder no primeiro caso, e não no segundo. Deveríamos então perceber,independentemente da experiência, por que a autoridade da vontade sobre os órgãosdo corpo se circunscreve dentro de limitestão estreitos. Teríamos, neste caso, um conhecimento completo do poderou da força que a faz agir, saberíamos também por que sua ação alcançaprecisamente tais limites e por que ela não os ultrapassa.

Um homem subitamente atacado por uma paralisia da perna ou do braço ouque tenha recentemente perdido esses membros tende a princípio e com frequênciaa movê-los e usá-los em suas funções habituais. Neste caso, está tão conscientedo poder que governa estes membros como um homem de saúde perfeita é conscientedo poder que move qualquer membro que permanece em sua condição e estadonaturais. Mas a consciência nunca ilude. Por conseguinte nem num caso como nooutro jamais temos consciência de um poder. Somente a experiência nos ensina aação de nossa vontade. E a experiência nos ensina apenas como um eventoacompanha constantemente outro, sem nosinformar sobre a desconhecida conexão que os liga e que os torna inseparáveis.

Em terceiro lugar, a anatomia nos informa que o objeto imediato dopoder no movimento voluntário não é o próprio membro que é movido, porém certosmúsculos, nervos e espíritos animais e, talvez, alguma coisa ainda menor edesconhecida através da qual o movimento se propaga sucessivamente antes dealcançar o próprio membro, cujo movimento é o objeto imediato da volição. Podehaver prova mais segura de que o poder que realiza toda a operação, tãodistante de ser direta e completamente conhecido por um sentimento interno ouconsciência, é em última análise misterioso e ininteligível? Logo que oespírito quer certo evento, imediatamente um outro evento é gerado, queignoramos e que é totalmente diferente do evento visado; este evento gera um outro, igualmente desconhecido, até que,finalmente, através de uma longa sucessão, o evento desejado é gerado.Mas, se se sentisse o poder original, deveríamos conhecê-lo; se oconhecêssemos, dever-se-ia conhecer também seu efeito, visto que todo poder érelativo ao seu efeito. E vice-versa, se não se conhece o efeito, não sepode conhecer nem sentir o poder. Como, em verdade, poderíamos ser conscientesde um poder de mover nossos membros quando não temos um tal poder, mas apenasaquele de mover certos espíritos animais que, embora produzam em definitivo omovimento de nossos membros, agem de uma maneira que ultrapassa totalmentenossa compreensão?

Podemos, pois, concluir de toda esta argumentação, sem temeridade,espero, mas com segurança: nossa ideia de poder não é copiada de um sentimentoou da consciência de nosso poder interno, quando produzimos o movimento animalou aplicamos nossos membros à sua própria função ou uso. Que seu movimentoobedece à ordem da vontade é um fato da experiência corriqueira igual a tantosoutros eventos naturais; mas o poder ou a energia que o realizou, do mesmo modoque em outros eventos naturais, é desconhecido e inconcebível. [8]

Afirmaremos, pois, que somos conscientes de um poder ou energia denossos espíritos quando, por um ato ou ordem de nossa vontade, suscitamos umanova ideia, firmamos o espírito em sua consideração, a visamos sob todos osângulos e por fim a rejeitamos por outra ideia quando pensamos que a temosexaminado com suficiente exatidão? Acredito que os mesmos argumentos provarãoque esta ordem da vontade não nos fornece nenhuma ideia real de força ou deenergia.

Primeiramente, deve-se admitir que, quando conhecemos um poder,apreendemos na causa a precisa circunstância que o capacita para produzir seuefeito, porque ambos se supõem sinônimos. Portanto, devemos conhecer tanto acausa como o efeito e a relação entre eles. Mas aspiramos conhecer a naturezada alma humana e a natureza de uma ideia, ou a capacidade de uma produzir aoutra? Esta é uma criação real; uma produção de alguma coisa a partir do nada;que implica um poder tão grande, que à primeira vista parece estar fora doalcance de todo ser menor que o infinito. Pelo menos, deve-se reconhecer que umtal poder não é nem sentido nem conhecido e nem mesmo concebível pelo espírito.Apenas sentimos o evento, a saber, a existência de uma ideia consequente a umaordem da vontade; porém, a maneira como se realiza esta operação e o poder pelo qual ela é produzida estão inteiramentefora de nossa compreensão.

Secundariamente, o governo do espírito sobre si mesmo é limitado,assim como seu controle sobre o corpo; e estes limites não são conhecidos pelarazão ou por qualquer conhecimento da natureza de causas e efeitos, mas apenaspela observação ou pela experiência, como em todos os outros eventos naturais ena operação de objetos externos. Nossa autoridade sobre nossos sentimentos enossas paixões é muito mais débil do que sobre nossas ideias; e mesmo estaúltima se circunscreve dentro dos mais estreitos limites. Quem pretenderá dar arazão última destes limites ou mostrar porque o poder é débil em alguns casos, e não em outros?

Terceiramente, este domínio de si mesmo é muito diferente emdiferentes momentos. Um homem sadio opossui em maior grau do que alguém que se consome com a doença. Somos maisdonos de nossos pensamentos pela manhã do que pela noite; em jejum, do que apósuma refeição copiosa. Podemos dar alguma razão destas variações exceto aexperiência? Onde está, pois, o poder doqual pretenderíamos ser conscientes? Não há aqui, seja em uma substânciaespiritual ou material, seja em ambas, algum mecanismo desconhecido ouestrutura de elementos do qual depende o efeito e que, por nos ser inteiramentedesconhecido, torna o poder ou energia da vontade igualmente desconhecidos eincompreensíveis?

A vontade é certamente um ato do espírito, com a qual estamossuficientemente familiarizados. Refleti sobre ela. Considerai-a sob todos osângulos. Encontrastes nela algo de semelhante a este poder criador, pelo qualdo nada gera uma nova ideia, e, por uma espécie de fiat, imita aOnipotência de seu Criador — se se me permite falar assim — que converge para aexistência os diferentes panoramas da natureza? Esta energia da vontade acha-setão afastada de nossa consciência que necessitamos recorrer à experiência —como a que possuímos — para convencer-nos de que tão extraordinários efeitosresultam efetivamente de um simples ato da vontade.

Os homens, em geral, não encontram jamais qualquer obstáculo paraexplicar as mais comuns e usuais operações da natureza, tais como a queda doscorpos pesados, o crescimento das plantas, a procriação dos animais ou anutrição dos corpos pelos alimentos; e eles admitem que, em todos estesfenômenos, percebem com exatidão a força ou a energia da causa, que a põe emconexão com seu efeito e sempre é infalível em sua operação. Adquirem, porlongo hábito, tal modo de pensar que, ao aparecer uma causa, esperamimediatamente e com segurança o seu acompanhante usual e dificilmente concebemque seja possível que um outro evento possa resultar dela. Apenas quandodescobrem fenômenos extraordinários, tais como o terremoto, a peste e outros prodígiosdeste gênero, encontram-se embaraçados para designar uma causa apropriada epara explicar de que modo produz o efeito. Os homens têm o hábito, em taisdificuldades, de recorrer a algum principio invisível e inteligente [9] comocausa imediata do evento que os surpreende e que, pensam eles, não pode serexplicado pelos poderes corriqueiros da natureza. Mas os filósofos, que levamsuas pesquisas um pouco mais adiante, percebem imediatamente que, mesmo noseventos mais familiares, a energia da causa é tão ininteligível como no maisinvulgar, e que apenas apreendemos da experiência a frequente conjunção dosobjetos, sem que jamais sejamos capazes de compreender nada semelhante à conexão entre eles. [10]

Daqui, pois, que muitos filósofos se julguemobrigados pela razão a recorrer, em todas as ocasiões, ao mesmo principio que o vulgo nos invocaapenas nos casos aparentemente miraculosos e sobrenaturais. Reconhecem que oespírito e a inteligência são, não apenas a causa última e original de todas as coisas, mas também a única causa e acausa imediata de todo evento que aparece na natureza. Pretendem que osobjetos geralmente denominados causas não são em realidade nada mais doque ocasiões, e que o verdadeiro e direto princípio de todo efeito não énenhum poder ou força natural, mas a vontade do Ser Supremo, que quer que taisobjetos particulares estejam sempre ligados entre si. Em vez de dizer que umabola de bilhar move outra por uma força derivada do autor da natureza, dizemeles que a própria Divindade move a segunda bola por um ato da vontade, emconsequência das leis gerais impostas a si mesma no governo do universo. Mas osfilósofos, persistindo em suas investigações, descobrem que, do mesmo modo queignoramos totalmente o poder do qual depende a ação mútua dos corpos, ignoramostambém o poder do qual depende a operação do espírito sobre o corpo ou do corposobre o espírito; e não somos capazes, a partir de nossos sentidos ou de nossaconsciência, de assinalar o princípio último tanto num caso como no outro. Amesma ignorância, portanto, os leva à mesma conclusão. Afirmam que a Divindadeé a causa imediata da união da alma e do corpo, e que não são os órgãos dossentidos que, agitados pelos objetos externos, produzem as sensações noespírito; porém, trata-se de um ato da vontade de nosso onipotente Criador queexcita uma dada sensação em consequência de um movimento do órgão. De maneiraanáloga, não é nenhuma energia da vontade que produz o movimento local denossos membros: é Deus mesmo quem se deleita em ajudar nossa vontade, em simesma impotente, e em ordenar o movimento que erroneamente atribuímos ao nossopróprio poder e à nossa própria eficácia. Os filósofos não se detêm nestaconclusão. Às vezes estendem a mesma inferência ao próprio espírito em suas operaçõesinternas. Nossa visão mental ou nossa concepção de ideias nada mais é do queuma revelação que nos faz nosso Criador. Quando voluntariamente dirigimosnossos pensamentos para um objeto e suscitamos sua imagem na fantasia, não é avontade que cria esta ideia, é o Criador Universal quem a descobre e a revelaao espírito. [11]

Assim, segundo estes filósofos, toda coisa está plena de Deus.Descontentes com o princípio de que nada existe a não ser por sua vontade, deque nada possui poder senão por sua concessão, despojam tanto a natureza comotodos os seres criados de todo poder a fim de tornar sua subordinação a Deusainda mais sensível e imediata. Não consideram que, mediante esta teoria, diminuem, em vez de aumentar, a grandezadestes atributos que pretendem tanto celebrar. Certamente, comprova-semais poder em Deus, delegando às criaturas inferiores certa porção do poder doque fazendo-o produzir tudo por sua vontade imediata. Demonstra mais sabedoriaorganizar a princípio toda estrutura do universo com tanta perfeição que, porsi mesmo e por sua própria operação, pode servir completamente aos desígnios daprovidência, do que obrigar o grande Criador a ajustar e a animarconstantemente toda a engrenagem desta prodigiosa máquina.

Mas, se quisermos refutar filosoficamente esta teoria, talvez as duasseguintes reflexões serão suficientes.

Em primeiro lugar, parece-me que a teoria referente à energia e açãouniversal do Ser Supremo afigura-se bastante arrojada para convencer quem tenhasuficiente consciência da debilidade da razão humana e dos estreitos limitesque a confinam em todas as suas operações. Embora a cadeia de argumentosconduzindo a ela seja logicamente correta, persiste a forte suspeita, senão umacerteza absoluta, de que ela nos levou a transbordar o alcance de nossasfaculdades conduzindo-nos a conclusões tão extraordinárias e distanciadas davida diária e da experiência. Somos levados ao país das fadas bem antes dechegarmos aos últimos estágios de nossa teoria; e não temos motivospara confiar em nossos métodos usuais de argumentação, nem de supor que nossasanalogias e probabilidades usuais tenham alguma autoridade. Nossa linha é muitocurta para sondar a imensidão de semelhantes abismos. E por mais quepretendamos crer que em cada passo que damos nos guia uma espécie deverossimilhança e de experiência, podemos assegurar-nos de que esta experiênciaimaginária não tem autoridade quando a aplicamos a casos inteiramente estranhosao campo da experiência. Todavia, mais adiante teremos ocasião para retomareste tópico. [12]

Em segundo lugar, não consigo perceber nenhuma força nos argumentosque fundamentam esta teoria. De fato, ignoramos a maneira segundo a qual oscorpos agem entre si. Sua força ou energia é inteiramente incompreensível. Mas nãoignoramos também de que maneira ou força um espírito, mesmo o Supremo Espírito,age sobre si mesmo ou sobre um corpo? De onde, pergunto-vos, adquirimos essaideia? Não temos sentimento ou consciência deste poder em nós mesmos. Não temosoutra ideia do Ser Supremo a não ser aquela que aprendemos ao refletir sobrenossas próprias faculdades. Portanto, se nossa ignorância fosse uma boa razãopara rejeitar algo, seríamos induzidos ao princípio de negar energia quer aoSer Supremo quer à matéria mais vulgar.Certamente não entendemos bem as atividades de um como de outro. É maisdifícil conceber que o movimento pode surgir do impulso que da vontade? Tudo oque conhecemos é nossa profunda ignorância em ambos os casos. [13]

  1. Nas edições K e L o título era:“Da ideia de poder ou de conexão necessária”. Hume escreve, no Tratado,que considerava esclarecida a fundamental questão da inferência causal, oumelhor, a maneira segundo a “qual raciocinamos além de nossas impressõesimediatas, e, concluído que tais causas particulares devem ter taisefeitos particulares” (I, iii, XIV, p. 155), verifica-se que devemos agora“retornar sobre nossos passos e examinar a questão, que em primeiro lugar nosocorreu e foi deixada para trás em nosso caminho, a saber: em que consistenossa ideia de necessidade, quando dizemos que dois objetos estãonecessariamente unidos entre si” (Idem, p. 155). A relevante questãocolocada entre parênteses momentaneamente indica que para Hume a ideia denecessidade sempre esteve em sua cogitação, como também sugere que elarepresenta uma das principais peças de sua filosofia. [N. do T.]
  2. Além dessas ideias, o Tratado apresenta: “eficácia,agente, necessidade, conexão e qualidadeprodutiva”, e adverte que, sendoaqueles termos “quase sinônimos”, não se deve supor que a definição deum define os outros. (T, iii, XIV, p. 157) [N. do T.]
  3. Seção II (Hume).

    Hume indica, assim, sua intenção de aplicar rigorosamente o método dedesafio: “quando suspeitamos que um termofilosófico está sendo empregado sem nenhum significado ou ideia — o queé muito frequente — devemos apenas perguntar: de que impressão é derivadaaquela suposta ideia?” (p. 71) [N. do T]
  4. Locke diz, em seu capítulo acerca do poder, que ao verificarmediante a experiência que há uma variedade de novas criações na matéria,conclui que em algum lugar deve haver um poder capaz de produzi-las, raciocínioesse que o leva à ideia de poder. Mas nenhum raciocínio pode dar-nos uma nova,original e simples ideia, como este mesmo filósofo confessa. Portanto, esseraciocínio não pode jamais ser a origem desta ideia (Hume).
  5. Nas edições K e L havia a seguinte sentença intercalada: “Asoperações e a mútua influência dos corpos são, talvez, suficientes para provarque eles são também dotados disto”.
  6. Nas edições de K a N: “do Espírito”.
  7. Nas edições K e L havia a seguinte sentença intercalada:“Examinaremos esta hipótese e tentaremos evitar, na medida do possível, todojargão e confusão sobre temas tão profundos e sutis. Afirmo, pois, em primeirolugar, que a influência da volição sobre os órgãos é um fato etc.”.
  8. Pode-se pretender que a resistência que encontramos nos corpos eque nos obriga a empregar toda nossa força e a reunir todo nosso poder nos dá aideia de força e de poder. Este nisus ou vigoroso esforço de que somosconscientes é a impressão original de onde se copia esta ideia. Mas, emprimeiro lugar, atribuímos poder a um grande número de objetos, nos quaisjamais poderíamos supor que aparecesse esta resistência ou emprego de força: aoSer Supremo, que jamais depara com esta resistência; ao espírito, em seugoverno sobre as ideias e membros, sobre o pensamento e movimentos ordinários,em que o efeito segue imediatamente a vontade sem emprego ou concentração deforças; a matéria inanimada que não é suscetível deste sentimento.
  9. Em segundo lugar, este sentimento de esforço para vencer aresistência não tem nenhuma conexão conhecida com qualquer evento. Conhecemosatravés da experiência aquilo que lhe segue, mas não poderíamos conhecê-lo apriori. Portanto, é preciso admitir que o nisus animal experienciadopor nós, embora não nos possa fornecer nenhuma ideia rigorosa e determinada depoder, responde, até certo ponto, à ideia vulgar e impressão que dele temosformado (Hume).
  10. Na edição K lê-se “Quasi deus ex machina”. A edição L acrescenta areferência: “Cícero, De natura deorum”.
  11. Baseiam-se, talvez, neste resultado negativo da Investigação, ou maisprecisamente do Tratado, as restrições de John Stewart, Some Remarkson the Laws of Motion, and the Inertia of Matter, de 1754,contra a doutrina de Hume. Sabemos que o primeiro [segundo referência de N.Kemp Smith, ob. cit., pp. 411-3] escreve que alguma coisa pode começar aexistir, ou principiar a ser, sem uma causa, foi em verdade mostrado em umsistema [isto é, o Tratado] mui engenhoso de filosofia cética”. Hume, emdefesa de seu ponto de vista, escreve: “Jamais defendi uma proposição tãoabsurda que qualquer coisa pode nascer sem uma causa. Apenas sustenteique nossa certeza ou falsidade desta proposição [isto é, “que César existiu”] não procede nem da demonstração e nem da intuição, mas de uma outra fonte” (Cartas,1, p. 187). Ou melhor, em nenhum momento Hume questiona a necessidade lógica damáxima casual, apenas procura evidenciar que sua explicação se fundamenta naexperiência. [N. do T.]
  12. Seção XII (Hume).
  13. Não é preciso examinar extensamente a vis inertiae, da qualtanto se tem falado na nova filosofia e que tem sido atribuída à matéria.Sabemos por experiência que um corpo em repouso ou movimento continua no mesmoestado até que é tirado dele por alguma causa e que o corpo que recebe oimpulso incorpora o movimento do corpo impulsor. Estes são os fatos. Quandodenominamos este processo de vis inertiae, apenas destacamos estes fatossem a pretensão de ter uma ideia do poder de inércia, do mesmo modo que, quandofalamos da gravidade, entendemos certos efeitos sem compreendermos esta forçaativa. Sir Isaac Newton nunca teve a intenção de despojar as causas segundas detoda a sua força ou energia, embora alguns de seus seguidores tenham tentado fundar esta teoria sob suaautoridade. Pelo contrário, o grande filósofo recorreu a um fluidoetéreo ativo para explicar sua atração universal; assim mesmo foi tão cautelosoe modesto que admitiu que era apenas mera hipótese e que não devia apoiá-la semrecorrer a experimentos complementares. Devo confessar que algo extraordinárioocorre com o destino das opiniões. Descartes sugeriu esta doutrina da universale única eficácia de Deus sem insistir nela. Malebranche e outros cartesianosfizeram dela o fundamento de sua filosofia. Sem dúvida, esta doutrina não temautoridade na Inglaterra. Locke, Clarke e Cudworth não lhe prestaram nenhumaatenção e sempre supuseram que a matéria tem força real, embora subordinada ederivada. De que modo ela chegou a ter tanta importância entre os metafísicosmodernos? (Hume).
Segunda parte

Mas apressemos-nos a concluir esta argumentação, que já se tem feitodemasiado extensa. Temos procurado em vão uma ideia de poder ou de conexãonecessária em todas as fontes de onde pudesse originar. Parece que em casosisolados da atividade dos corpos não podemos jamais, pelo exame maisescrupuloso, descobrir outra coisa a não ser um evento acompanhando outro, semque sejamos capazes de apreender a força ou o poder que faz agir a causa, oualguma conexão entre ela e seu suposto efeito. A mesma dificuldade ocorrequando se consideram as atividades do espírito sobre o corpo, nas quais notamosque o movimento do último segue a vontade do primeiro, mas não somos capazes devislumbrar, ou conceder o laço que liga o movimento e a vontade, ou a energiapela qual o espírito produz o seu efeito. A autoridade da vontade sobre suaspróprias faculdades e ideias não é nem um pouco mais compreensível. De modoque, resumindo, não aparece, em toda a natureza, um único exemplo de conexãopassível de nossa concepção. Todos os eventos parecem inteiramente soltos eseparados. Um evento segue outro, porém jamais podemos observar um laço entreeles. Parecem estar em conjunção, mas jamais em conexão. E comonão podemos jamais formar ideia de uma coisa que nunca se revelou aos nossossentidos externos ou sentido interno, a conclusão necessária parece ser que nãotemos, definitivamente, ideia de conexão ou de poder, e que estes termos nadasignificam quando utilizados nos raciocínios filosóficos ou na vida diária.

Entretanto, resta ainda um método para evitar esta conclusão, e umafonte que ainda não examinamos. Quando um objeto ou evento natural se revela,não há sagacidade ou penetração que nos permita descobrir, ou mesmo conjeturar,sem o auxílio da experiência, qual evento resultará dele ou de levar-nos aantever além do objeto presente imediatamente à memória e aos sentidos. Mesmodepois de averiguarmos que num caso ou experimento um evento específicoacompanha outro, não julgamos lícito formular uma regra geral ou predizer o queocorrerá em situações análogas, pois seria temeridade imperdoável julgar detodo o curso da natureza partindo de um único experimento, por mais exato eseguro que fosse. Mas quando determinada espécie de eventos se mostra sempre eem todas as situações conjuntada a outra, não sentimos escrúpulos de predizer um ao surgir o outro, utilizando-nos, pois, doúnico tipo de raciocínio que pode assegurar-nos sobre as questões defato e de existência. Denominamos, então, um dos objetos causa e o outro efeito. Supomos que há alguma conexão entre eles; algum poder em umdeles pelo qual infalivelmente produz o outro e atua com a máxima certeza e amais forte necessidade.

Parece, pois, que a ideia de uma conexão necessária entre os eventossurge de vários casos semelhantes em que ocorre a conjunção constante desteseventos; já que nenhum destes casos pode nos suscitar esta ideia, embora fossemexaminados sob todos os ângulos e posições possíveis. No entanto, apesar de nãohaver em determinado número de casos algo a diferenciá-lo de um caso singular —suposto exatamente semelhante aos outros — destacamos apenas que, depois darepetição de casos semelhantes, o espírito é impelido pelo hábito, devido àaparição de um evento, a aguardar aquele que usualmente o acompanha e emacreditar em sua existência. Portanto, esta conexão que sentimos noespírito, esta transição costumeira da imaginação de um objeto para o seuacompanhante usual, é o sentimento ou a impressão que origina a ideia de poderou de conexão necessária. Não há nada a mais na ocorrência. Considerai oassunto de todos os ângulos, jamais encontrareis outra origem desta ideia. Eisa única diferença entre um caso singular, do qual jamais podemos inferir aideia de conexão, e vários casos semelhantes originando esta ideia. Uma pessoaque observa pela primeira vez, por exemplo, o movimento comunicado pelo impulsoquando duas bolas se chocam não poderia afirmar que os eventos estavam em conexão,apenas poderia asseverar que entre eles havia conjunção. Observando emseguida vários exemplos de natureza semelhante, poderia então concluirafirmando que os fatos estão em conexão. Que tipo de alteração ocorreuoriginando esta nova ideia de conexão? Nenhuma, exceto que agora ela sente queestes eventos estão em conexão em sua imaginação, podendo facilmenteantever a existência de um pelo aparecimento do outro. Afirmando, portanto, queum objeto está em conexão com outro, apenas queremos dizer que estes objetostêm adquirido uma conexão em nosso pensamento e provocam a inferência atravésda qual se chega a comprovar a existência de outro: conclusão um tantoextraordinária, porém baseada em número suficiente de evidências. Estaevidência não será enfraquecida tanto pela desconfiança total em relação aoentendimento como pelas dúvidas céticas levantadas contra toda conclusão nova eextraordinária. Nenhuma conclusão agrada mais ao ceticismo do que a que revelaa debilidade e estreiteza da esfera racional e das capacidades humanas.

Que exemplo é mais poderoso do que o presentepara mostrar a surpreendente ignorância e debilidade do entendimento? De fato, porque, se háalguma relação entre os objetos que visamos a apreender com perfeição, é aquelade causa e efeito. Nela se fundamentam todos os nossos raciocínios sobre asquestões de fato ou de existência. Apenas por meio desta relação podemos teralguma segurança sobre os objetos distanciados do atual testemunho de nossamemória e dos sentidos. Esclarecer-nos como controlar e regular os eventosfuturos através de suas causas é a única e imediata utilidade de todas asciências. Portanto, nossos pensamentos e inquirições convergem em todo momentopara esta relação, embora as ideias que formamos a seu respeito sejam tãoimperfeitas que é impossível definir com exatidão a causa, a não ser aqueladerivada de algo que lhe é exterior e alheio. Objetos semelhantes sempre estãoconjuntados a objetos semelhantes. Disto temos experiência. De acordo com estaexperiência, portanto, podemos definir uma causa como um objeto seguido poroutro, de tal forma que todos os objetos semelhantes ao primeiro são seguidosde objetos semelhantes ao segundo. Ou, em outras palavras: se o primeiroobjeto não houvesse existido, o segundo nunca haveria existido. A apariçãode uma causa sempre faz convergir o espírito, por uma transição costumeira, àideia do efeito. Disto também temos experiência. Podemos, pois, de acordo comesta experiência, formular uma outra definição de causa e denominá-la umobjeto seguido por outro e cuja aparição faz convergir o pensamento sempre paraaquele outro. [1] Embora estas duas definições sejam formuladas de circunstâncias alheias à causa, não podemos remediareste inconveniente ou elaborar definição mais perfeita que possa indicarna causa a circunstância que lhe dá uma conexão com seu efeito. Não temosnenhuma noção desta conexão, nem mesmo nenhuma ideia distinta da naturezadaquilo que desejamos saber, quando nos esforçamos em concebê-la. Dizemos, porexemplo, que a vibração desta corda é a causa deste som particular. Mas, o que queremos dizer com esta afirmação? Ou queremosdizer que esta vibração é seguida deste som e que todas asvibrações semelhantes têm sido acompanhadas de sons semelhantes, ou que estavibração é seguida deste som, e que, pela aparição de uma, o espírito seantecipa aos sentidos e forma imediatamente a ideia da outra. Podemosconsiderar a relação de causa e efeito em quaisquer destas duas maneiras; masalém dessas não temos ideia dela. [2]

Recapitulemos, portanto, os raciocínios desta seção: toda ideia écopiada de uma impressão ou de uma sensação precedentes; se não podemoslocalizar a impressão, podemos assegurar-nos de que não há ideia. Em todos oscasos isolados da atividade dos corpos ou espíritos, não há nada que produzauma impressão, nem, por conseguinte, que possa sugerir uma ideia de poder ou deconexão necessária. Mas quando aparecem vários casos uniformes, e o mesmo objetoé sempre seguido pelo mesmo evento, então começamos a admitir a noção de causae de conexão. Nós sentimos então um novo sentimento, ou nova impressão,ou seja, uma conexão costumeira no pensamento ou na imaginação entre um objetoe o seu acompanhante habitual; e este sentimento é a origem da ideia queprocuramos. [3] Com efeito, como esta ideia nasce de vários casos semelhantes,e não de um caso isolado, ela deve nascer da circunstância que faz diferirvários casos de cada caso individual. Ora, esta conexão ou transição costumeirada imaginação é a única circunstância que os faz diferir. Em todos os outrosaspectos eles são semelhantes. O primeiro caso que vimos do movimentocomunicado pelo choque de duas bolas de bilhar — para retomar este exemplo evidente— é exatamente semelhante e não importa que caso que pode, no presente, seapresentar a nós; excetuando apenas que, a princípio, não podíamos inferir umevento do outro, o que somos capazes de fazer agora, depois de tão extensasérie de experiências uniformes. Não sei se o leitor apreenderá facilmente esteraciocínio. Temeria tomá-lo mais obscuro e complicado se multiplicasse aspalavras e o considerasse sob vários aspectos. Em todos os raciocíniosabstratos há um ponto de vista que, se afortunadamente o alcançamos, nosilustra mais acerca do assunto que mediante toda a eloquência do mundo. Devemosaspirar a este ponto de vista e reservar os floreios da retórica paraoportunidade mais adequada.

  1. É provável que as duas definições de causa sejam alternativasbaseadas em “distintos pontos de vista acerca de um mesmo objeto” (Tratado,I, iii, XIV, p. 170), ou seja, podemos entender a relação de causa e efeitocomo “relação filosófica e como relação natural; ou como comparação deideias, ou como associação entre elas [isto é, ideias] ” (Idem).Julgamos que a primeira definição de causa pode ser classificada como umarelação filosófica: trata-se de uma conjunção constante entre eventos, ouclasses de eventos, inteiramente separados de qualquer processo associativo.Enquanto isso, a segunda definição é uma relação natural: fundamenta-se emrelações de ideias unidas pelos princípios associativos do entendimento humano. (vejam-se de Flew, ob. cit., p.120, e de Robinson, “Hume’s Two Definitions of Cause”, pp. 143-4, in Hume, ACollection of critical Essays, ed. Chappel, 1966) [N. do T.]
  2. Segundo estas explicações e definições, a ideia de poder étão relativa como a de causa: ambas dizem respeito a um efeito ou a um outroevento unido constantemente ao primeiro. Quando consideramos a circunstância desconhecida de um objeto, que fixa e determina o grau e a quantidade de seu efeito,denominamo-la seu poder. E é do consenso geral entre os filósofos que o efeitoé a medida do poder. Mas se eles tivessem uma ideia de poder, tal como é e emsi mesmo, por que não poderiam medi-lo por si mesmo? Discutir para saber se aforça de um corpo em movimento é proporcional à sua velocidade ou ao quadradode sua velocidade não conduziria a nada se apenas se comparassem os efeitos emtempos iguais ou desiguais, mas, sim, mediante medida e comparação diretas.

    A frequência com que se usam termos como “força”, “poder”, “energia”etc., em todos os momentos da vida diária e em filosofia, não é uma prova queconhecemos em quaisquer dos casos o princípio de conexão entre a causa e oefeito ou que podemos dar uma explicação conclusiva da produção de uma coisapela outra. Estes termos — tais como são geralmente empregados — têm sentido muito vago e suas ideias são bastante incertase confusas. Nenhum ser animado pode mover corpos externos sem osentimento do nisus ou de um esforço, e todo ser animado tem um sentimento ousensação de uma batida ou do choque de um corpo externo em movimento. Estassensações, meramente animais e das quais jamais podemos inferir algo a priori, podem ser transferidas por nós a objetos inanimados e supô-losdotados de tais sensações, quer quando recebem ou comunicam o movimento.Com referência às energias que se exercem sem que nós lhes anexemos a ideia decomunicação de um movimento, consideramos apenas a conjunção constante doseventos que experienciamos; como sentimos uma conexão costumeira entreas ideias, transferimos este sentimento aos objetos, pois não há nada maisusual do que aplicar aos corpos externos toda sensação interna por elesocasionada (Hume).
  3. Esta passagem enquadra-se harmoniosamente com a análise dainferência causal e a origem da crença, como também indica que a novaimpressão, fonte da ideia de conexão necessária, é ocasionada pelo mesmo tipo deassociação habitual. [N. do T.]

Seção VIII

Da liberdade e da necessidade [1]

Primeira parte

Seria razoável esperar que acerca das questões que têm sido examinadase discutidas cuidadosamente desde os primórdios da ciência e da filosofiahouvesse, ao menos, acordo entre os disputantes sobre o significado de todos ostermos e, transcorridos dois mil anos de inquirições, houvessem passado daspalavras para o objetivo verdadeiro e real da controvérsia. Pois não seria maisfácil definir com exatidão os termos empregados no raciocínio e não consideraras definições um mero reflexo de palavras, mas objeto de exame e investigações futuras? Mas se considerarmos o assunto mais deperto, seremos obrigados a tirar uma conclusão oposta, fundada nestaúnica circunstância: visto que uma controvérsia perdura e continua ainda semdecisão, deve-se presumir que há alguma ambiguidade conceitual e que osadversários atribuem ideias diferentes para os termos empregados nacontrovérsia. Com efeito, supondo-se que as faculdades espirituais sãonaturalmente semelhantes em todos os indivíduos de outro modo nada seria maisinfrutífero do que raciocinar e discutir juntos — seria impossível, se oshomens atribuíssem as mesmas ideias para os seus termos, que continuassem portanto tempo a formular opiniões diferentes sobre o mesmo objeto, especialmentese comunicam seus pareceres e cada uma das facções busca argumentos em todaparte a fim de obter a vitória sobre seus antagonistas. Certamente, se oshomens enveredam por problemas inteiramente afastados da capacidade humana,tais como os referentes à origem do mundo, à organização do sistema intelectualou ao reino dos espíritos, podem longa e infrutiferamente discutir sem atingiruma solução conclusiva. Mas, se o problema diz respeito a qualquer objeto davida diária e da experiência, pensar-se-ia que nada poderia manter o debateindecidido por tanto tempo, exceto algumas expressões ambíguas, que mantêmainda os adversários à distância, impedindo-os de se porem em íntimo contato.

Esta tem sido a situação da tão longamente debatida questão daliberdade e da necessidade. E se não estiver muito equivocado, veremos quetodos os homens, tanto eruditos como ignorantes, sempre têm sustentado idênticaopinião acerca do assunto a ponto de fazer crer que algumas definiçõesinteligíveis teriam imediatamente posto fim a toda controvérsia.

Reconheço que esta questão tem sido bastante agitada por todas aspartes e que tem arrastado os filósofos a tal labirinto de sofismas obscurosque não espanta se um leitor amante da tranquilidade queira fazer-se de surdosobre ela, já que não espera do debate instrução ou entretenimento. Contudo, otipo de argumentação proposto aqui poderá, talvez, servir para renovar suacuriosidade e, como apresenta inovação, promete, pelo menos, uma soluçãoparcial da controvérsia sem perturbar em demasia sua tranquilidade comraciocínios complicados e obscuros.

Pretendo mostrar, portanto, que todos os homens sempre têm estadoconcordes com as doutrinas da necessidade e da liberdade — segundo qualquersignificado razoável que se possa atribuir a estes termos — e que até agoratoda a controvérsia tem girado em torno de meras palavras. [2]

Toda a gente reconhece que a matéria, em todas as suas funções, se achaanimada por uma força necessária, e que todo efeito natural está determinadocom exatidão pela energia de sua causa, de forma que nenhum outro efeitopoderia resultar dela em tais condições particulares. O grau e a direção decada movimento estão prescritos pelas leis da natureza com tal exatidão queseria tão difícil fazer surgir um grau ou direção diferente ao que se produz emrealidade como fazer nascer uma criatura viva do choque de dois corpos.Portanto, se quisermos conceber uma ideia justa e exata da necessidade,devemos examinar a origem dessa ideia quando a aplicarmos às ações corporais.

Parece evidente que jamais teríamos chegado à menor ideia denecessidade ou de conexão entre os objetos naturais se todas as cenas danatureza estivessem continuamente mudando, de modo que não houvesse doiseventos semelhantes e se cada objeto fosse completamente novo, sem nenhumasimilitude com qualquer coisa que foi antes vista. Poderíamos dizer, em talsuposição, que um objeto ou evento resulta de outro e não que um foi produzidopelo outro. A relação de causa e efeito seria completamente desconhecida doshomens. E, por conseguinte, terminariam as inferências e os raciocínios sobreas operações naturais; e a memória e os sentidos seriam as únicas vias deacesso do espírito na apreensão de uma existência real. Portanto, nossa ideiade necessidade e de causa surge inteiramente da uniformidade verificada nasoperações da natureza, na qual os objetos semelhantes estão constantementeconjuntados e o espírito é determinado pelo costume a inferir um peloaparecimento do outro. Estas duas circunstâncias compreendem toda a necessidadeque atribuímos à matéria. Além da conjunção constante de objetossemelhantes e da consequente inferência de um para o outro, não temosnenhuma ideia de qualquer necessidade ou conexão. [3]

Parece, portanto, que todos os homens têm sempre admitido — sem nenhumadúvida ou hesitação — que estas duas circunstâncias ocorrem em suas açõesvoluntárias e nas operações do espírito; conclui-se daqui que todos os homenssempre têm estado de acordo com a doutrina da necessidade e que, até opresente, têm discutido simplesmente por não se terem entendido entre si.

Podemos certamente satisfazer-nos acerca da primeira circunstância,isto é, da conjunção constante e regular dos eventos similares, com asseguintes considerações. Toda a gente reconhece que há grande uniformidade nasações humanas em todas as nações e em todas as épocas, e que a natureza humanasempre permanece igual em seus princípios e em suas operações. [4] Os mesmosmotivos produzem sempre as mesmas ações; os mesmos eventos resultam das mesmascausas. A ambição, a avareza, o amor-próprio, a vaidade, a amizade, agenerosidade e o espírito público, paixões misturadas em vários graus edistribuídas pela sociedade têm sido, desde o começo do mundo, e ainda são, afonte de todas as ações e empreendimentos que se têm sempre observado entre oshomens. Quereis conhecer os sentimentos, as inclinações e o modo de viver dosgregos e dos romanos? Estudai bem o temperamento e as ações dos franceses e dosingleses: não estareis muito equivocado se transferirdes aos primeiros a maioria das observações que fizestes sobre os segundos. A humanidade é bastanteparecida, em todos os tempos e lugares, e a história nada nos informa de novoou estranho a este respeito. Seu principal papel restringe-se em descobrir osprincípios universais e constantes da natureza humana, mostrando-nos os homensem variadas circunstâncias e situações e suprindo-nos de materiais, dos quaispodemos formar nossas observações e ficarmos familiarizados com as fontesregulares da ação e da conduta humana. Os relatos de guerras, intrigas,partidos políticos e revoluções são outras tantas coleções de experimentos, por meio dos quais o político ou ofilósofo moral fixa os princípios de sua ciência, do mesmo modo que omédico ou o filósofo da natureza se familiariza com a natureza das plantas, dosminerais e de outros objetos externos, pelas experiências que fazem sobre eles.A terra, a água e os outros elementos examinados por Aristóteles e Hipócratessão tão parecidos com aqueles que no presente estão sob nossa observação, comoos homens descritos por Políbio e Tácito são semelhantes aos homens quegovernam atualmente o mundo.

Se um viajante, ao regressar de um país longínquo, nos descrevesse aexistência de homens totalmente diferentesdaqueles que temos conhecido, desprovidos totalmente de avareza, deambição ou de espírito vingativo e reconhecendo apenas o prazer da amizade, dagenerosidade e do espírito público, descobriríamos imediatamente a falsidadedo relato e lhe demonstraríamos que mente, com a mesma certeza como se houvesseacumulado sua narrativa com contos de centauros e dragões, milagres eprodígios. E se quisermos desacreditar alguma falsificação histórica, nãodevemos usar argumentos mais adequados do que os que provam que as ações atribuídasa uma pessoa são diretamente contrárias à ordem natural das coisas, e quenenhum motivo humano, em tais circunstâncias, jamais poderia tê-la induzido atal conduta. Devemos suspeitar da veracidade de Quinto Cúrcio, quando descrevea coragem sobrenatural de Alexandre, pela qual ele foi levado a atacar sozinhomultidões, e quando descreve sua força e suaatividade sobrenaturais, com as quais pôde resistir-lhes. Deste modo, admitimosfacilmente a uniformidade nos motivos e ações humanas, como também nasoperações do corpo.

Daqui, igualmente, deriva a influência benéfica da experiênciaadquirida por uma longa vida, pela variedade de ocupações e convivência,instruindo-nos acerca dos princípios da natureza humana e regrando tanto nossaconduta futura como nossa especulação. Por meio deste guia, elevamo-nos aoconhecimento das inclinações e motivos humanos, partindo de suas ações, de suasmanifestações e mesmo de seus gestos; e de novo descemos para a interpretaçãode suas ações graças ao nosso conhecimento de seus motivos e inclinações. Asobservações gerais armazenadas durante o transcurso da experiência dão-nos oelo condutor da natureza humana, e nos ensinam a desfiar todas as suascomplicações. Nem os pretextos e nem as aparências voltam a enganar-nos.Supõe-se que as declarações feitas em público são especiosos disfarces de umacausa. E embora se conceda à virtude e à honra de seu próprio peso eautoridade, este perfeito desinteresse, que é com tanta frequência proclamado,jamais se espera de multidões e partidos políticos, raramente de seuscondutores e apenas às vezes de indivíduos de qualquer posição ou categoria.Mas, se não houvesse uniformidade nas ações humanas, e se todo experimento quepudéssemos fazer deste gênero fosse irregular e anômalo, seria impossívelcoletar algumas observações gerais sobre a humanidade e nenhuma experiência,por mais que a reflexão a houvesseassimilado, serviria para algum fim. Porque o velho agricultor é mais hábil em sua profissão do que o jovem principiante, apenas porque há uma certauniformidade na ação do sol, da chuva e da terra na produção de legumes, eporque a experiência ensina ao que pratica há muito tempo as regras quegovernam e dirigem estas operações.

Não devemos, portanto, esperar que esta uniformidade das ações humanasse estenda de tal maneira que todos os homens, nas mesmas circunstâncias,sempre agirão exatamente da mesma maneira, sem fazer nenhuma concessão àdiversidade dos caracteres, dos preconceitos e das opiniões. Semelhanteuniformidade, em todos os aspectos, não se encontra em nenhuma parte danatureza. Pelo contrário, ao observar a variedade de condutas em diferenteshomens, tornamo-nos aptos para formar uma grande variedade de máximas que, semdúvida, ainda supõem um grau de uniformidade e regularidade. [5]

Os costumes dos homens são diferentes em épocas e países diferentes?Daqui aprendemos a grande força do costume e da educação, os quais modelam oespírito humano desde sua infância e lhe formam o caráter de modo estável. Ocomportamento e a conduta de um sexo são muito diferentes dos do outro? Destemodo é que chegamos a conhecer os diferentes caracteres que a natureza temimprimido nos sexos e que ela mantém com regularidade e constância. As ações deuma mesma pessoa são muito diversas nos diferentes períodos de sua vida, desdesua infância até sua velhice? Isto dá lugar a várias considerações geraisacerca da mudança gradual de nossos sentimentos e inclinações, e das diferentesmáximas que prevalecem nas diferentes idades das criaturas humanas. Mesmo oscaracteres peculiares de cada indivíduo têm uma uniformidade em sua ação; deoutro modo, nosso conhecimento das pessoas e nossa observação de sua condutajamais nos poderiam ensinar acerca de suas disposições ou servir para dirigirnosso comportamento diante delas.

Admito que seja possível encontrar ações que parecem não ter conexãoregular com quaisquer motivos conhecidos, e que são exceções a todas as regrasde conduta que se estabeleceram para o governo dos homens. Mas se desejássemossaber que juízo devemos formar das ações tão irregulares e extraordinárias,poderíamos considerar as opiniões que nutrimos comumente com respeito a eventosirregulares, que aparecem na ordem natural das coisas e nas operações dosobjetos externos. Todas as causas não estão conjuntadas aos efeitos usuais comigual uniformidade. Um artesão que somente manipula matéria inerte podefracassar em seu intento, tanto como o político que dirige a conduta de seressensatos e inteligentes.

O homem comum, contentando-se apenas com a aparência das coisas,atribui a incerteza dos eventos a uma incerteza das causas, decorrendo dasúltimas as frequentes falhas em sua influência habitual, embora não encontremobstáculos impedindo sua ação. Mas os filósofos, verificando que na maioria dosfenômenos naturais há uma enorme variedade de fontes e princípios ocultos emrazão de sua pequenez ou de seu afastamento, consideram que, pelo menos, é possível que a oposição dos eventos nãoproceda de uma contingência da causa, mas da operação desconhecida decausas contrárias. Esta possibilidade se converte em certeza quando observamposteriormente, depois de cuidadoso exame, que uma contrariedade de efeitossempre denuncia uma contrariedade de causas, e procede de sua mútua oposição.Um camponês, não encontrando melhor explicação para a parada de um relógio, dizque geralmente não funciona bem. Contudo, um artesão percebe facilmente queigual força da mola ou do pêndulo exerce sempre a mesma influência sobre asengrenagens, não produzindo seu efeito habitual, devido talvez a um grão depoeira que detém todo o movimento. Observando vários casos paralelos, osfilósofos estabelecem como um princípio que a conexão entre todas as causas eefeitos é igualmente necessária, e que sua aparente incerteza em certos casosdecorre da desconhecida oposição de causas contrárias.

Assim, por exemplo, quando o corpo humano, manifestando os sintomasusuais de saúde ou de doença, desaponta nossa expectativa; quando osmedicamentos não atuam com seus poderes habituais; quando eventos irregularesresultam de uma causa determinada, o filósofo e o médico não se surpreendem comisto, nem são jamais tentados a negar — em sua totalidade — a necessidade e auniformidade daqueles princípios que regulam a organização corporal. Entendem que o corpo humano é uma máquina extremamente complicada; que várias forçasdesconhecidas nele ocultas se acham afastadas de nossa compreensão; que devemossempre considerá-lo bastante incerto em seus movimentos; e que, portanto, oseventos irregulares revelados exteriormente não podem constituir prova de queas leis naturais não se processam com a máxima regularidade em suas funções emovimentos internos.

O filósofo, se é coerente, deve estender o mesmo raciocínio às ações evolições dos seres inteligentes, visando assim mostrar que as decisões humanasmais irregulares e inesperadas se explicam com frequência quando se conhecemtodas as circunstâncias do caráter e da situação humanas. Uma pessoa comdisposições amáveis pode responder de maneiras impertinentes, mas porque elaestá com dor de dentes ou ainda não jantou. Um homem de modos grosseiros poderevelar vivacidade incomum ao seu comportamento porque recebeu de repente umagrande fortuna. Mesmo considerando-se que um ato, como às vezes ocorre, nãopode ser explicado por quem o praticou ou pelos circundantes, reconhecemos que,em geral, os caracteres humanos são até certo ponto inconstantes e irregulares.De certo modo, é este o caráter constante da natureza humana, embora se aplicando mais particularmente às pessoas destituídas de regras estáveis em sua conduta, mas que atuam numa sequência contínua de capricho e de inconstância. Apesar destas aparentes irregularidades, os princípios e motivos internos devem atuar de modo uniforme, da mesma maneira que se supõe que os ventos, a chuva, as nuvens e as outras variações do tempo são governados por princípios estáveis, embora a sagacidade e a investigação humana não os possam facilmente desvendar.

Desta maneira, parece que não apenas a conjunção entre os motivos e os atos voluntários é tão regular e uniforme (de modo análogo à relação de causa e efeito em qualquer aspecto da natureza), mas, também, que esta conjunção regular tem sido reconhecida universalmente e jamais tem sido tema de debate, quer pela filosofia quer na vida diária. Ora, como derivam da experiência passada todas as experiências sobre o futuro e como concluímos que os objetos que sempre encontramos conjuntados sempre estarão conjuntados, pode, pois, parecer supérfluo provar que esta experimentada uniformidade das ações humanas é a fonte de onde tiramos inferências que a elas se referem. [6] Mas, a fim de mostrar maior número de aspectos dos argumentos, insistiremos também, embora sumariamente, neste último tópico.

Em todas as sociedades, pode-se verificar que a mútua dependência entre os homens é tão grande que raramente uma ação humana é inteiramente completa em si mesma ou se realiza sem alguma referência às ações dos demais, constituindo assim no requisito necessário para que possa responder por completo à intenção de quem a realiza. O artesão paupérrimo, que trabalha sozinho, espera pelo menos a proteção do magistrado assegurando-lhe o gozo do fruto de seu trabalho. Também espera que, quando leva suas mercadorias ao mercado e as oferece a um preço razoável, encontrará compradores e terá poder graças ao dinheiro que obteve para comprar dos outros as mercadorias que são necessárias para a sua subsistência. À medida que os homens estendem suas relações e tornam mais complexas suas comunicações com outros homens, sempre compreendem em seus planos de vida uma maior variedade de atos voluntários que esperam, por motivos justos, que colaborem com sua própria ação. Em todas estas conclusões tiram suas regras da experiência passada, do mesmo modo que em seus raciocínios sobre objetos externos; acreditam firmemente que tanto os homens como os elementos devem continuar em suas operações tal como foram sempre encontrados. Um fabricante conta ao mesmo tempo com o trabalho de seus empregados para a execução de qualquer obra como com a maquinaria empregada e ficaria igualmente surpreso se se decepcionasse em suas expectativas. Numa palavra, a inferência e o raciocínio experimental referentes aos atos de outrem incorporam-se tanto na vida humana, que nenhum homem, enquanto está desperto, deixa de utilizá-los por um momento sequer. Não temos razão, portanto, para afirmar que toda a humanidade sempre tem concordado com a doutrina da necessidade tal como a definição e a explicação dadas mais acima?

Os filósofos não têm jamais mantido, a este respeito, opinião diferente daquela da plebe. Porque, sem mencionar que quase todas as ações de sua existência supõem esta opinião, há apenas alguns setores do saber especulativo aos quais ela não é essencial. O que seria da história se não tivéssemos confiança na veracidade do historiador, de acordo com a experiência que temos adquirido dos homens? Como a política poderia ser uma ciência, se as leis e as formas de governo não tivessem influência uniforme sobre a sociedade? Onde estaria o fundamento da moral, se cada caráter particular não tivesse um determinado poder de produzir sentimentos particulares e se estes sentimentos não influenciassem nossas ações de maneira constante? E quais poderiam ser nossas pretensões quando aplicamos nossa crítica [7] a um poeta ou a um autor elegante, se não pudéssemos decidir se a conduta e os sentimentos de seus personagens são ou não são naturais, em tais caracteres e em tais circunstâncias? Parece quase impossível, portanto, que nos ponhamos a fazer ciência ou atuar de alguma maneira sem reconhecer a doutrina da necessidade, e esta inferência que vai dos motivos aos atos voluntários, dos caracteres às condutas.

E, certamente, quando consideramos quão exatamente se entrelaçam a evidência natural e a evidência moral, formando uma única corrente de argumentos, não teremos escrúpulos em admitir que ambas são da mesma natureza e que derivam dos mesmos princípios. Um prisioneiro desprovido de dinheiro e influência descobre a impossibilidade de sua fuga, quer considerando a obstinação do carcereiro, quer verificando as paredes e grades que o cercam; e, em todos os seus esforços para conseguir libertar-se, opta antes trabalhar sobre a pedra e o ferro dos últimos do que sobre a natureza inflexível dos primeiros. O mesmo prisioneiro, ao ser conduzido para o cadafalso, prevê sua morte com tanta certeza devido à constância e fidelidade dos guardas como à operação do machado ou da roda. Seu espírito percorre uma certa série de ideias: a negativa dos soldados em consentirem em sua fuga, a ação do carrasco, a separação de sua cabeça de seu corpo, a sangria, movimentos convulsivos e a morte. Há aqui um encadeamento complexo de causas naturais e de atos voluntários, mas o espírito não sente nenhuma diferença ao passar de um elo a outro. Não se sente também menos seguro do evento futuro, como se este estivesse ligado aos objetos presentes à memória e aos sentidos por uma série de causas, aglutinadas entre si pelo que nos agrada denominar de necessidade física. A experiência da mesma união tem o mesmo efeito sobre o espírito, quer os objetos unidos sejam motivos, volição e ações, quer sejam uma figura e um movimento. Podemos mudar o nome das coisas, porém sua natureza e sua ação sobre o entendimento não mudam jamais.

Se um homem, que sei que é honesto e rico e com o qual mantenho íntima amizade, vem à minha casa onde estou rodeado por meus criados, estou bem seguro que não me apunhalará antes de sair a fim de roubar meu tinteiro de prata e deste evento suspeito tanto como de que venha abaixo a casa, que é nova e solidamente construída e alicerçada. Mas ele poderia ser acometido de uma súbita e desconhecida loucura. E do mesmo modo pode ocorrer um repentino terremoto que sacuda minha casa e a faça cair sobre minha cabeça. Substituirei, pois, a hipótese. Direi que tenho certeza que ele não colocará sua mão no fogo deixando-a nele até que se consuma. Este evento, posso prevê-lo com a mesma segurança, penso eu, como prevejo que, se ele se jogar pela janela e não encontrar nenhum obstáculo, não permanecerá um momento sequer suspenso no ar. Não existe nenhuma forma de loucura desconhecida que possa conferir a menor possibilidade ao primeiro evento, tão contrário a todos os princípios conhecidos da natureza humana. Um homem que ao meio-dia deixa sua bolsa cheia de ouro na calçada de Charing Cross pode esperar que ela voará como uma pena ou que uma hora depois estará intacta. Mais da metade dos raciocínios humanos contém inferências de natureza semelhante, acompanhadas de um maior ou menor grau de certeza proporcional à nossa experiência da conduta habitual dos homens em tais situações particulares. [8]

Tenho frequentemente considerado qual poderia ser a razão pela qual toda a humanidade, embora tenha sempre e sem hesitação reconhecido a doutrina da necessidade em toda sua ação prática e em todos os seus raciocínios [9], manifesta-se, contudo, relutante em reconhecê-la em palavras, tendo antes mostrado, em toda época, uma tendência a professar opinião contrária. O fato, penso eu, pode ser explicado da seguinte maneira. Se examinamos as ações dos corpos e a produção dos efeitos a partir de suas causas, veremos que nenhuma de nossas faculdades pode levar-nos mais longe no conhecimento desta relação que a simples constatação de uma conjunção constante entre objetos particulares, e de uma tendência do espírito em passar, por uma transição costumeira, do aparecimento de um para a crença no outro. Mas, embora esta conclusão acerca da ignorância humana seja o resultado do mais cuidadoso exame sobre o assunto, os homens ainda mantêm uma forte tendência em acreditar que penetraremos mais profundamente nos poderes da natureza e que perceberemos qualquer coisa semelhante a uma conexão necessária entre a causa e o efeito. Quando dirigem de novo suas reflexões para as operações de seus próprios espíritos e não sentem tal conexão entre o motivo e a ação, são então levados a supor que há uma diferença entre os efeitos resultantes da força material e aqueles que nascem do pensamento e da inteligência. Mas desde que estamos convencidos de que nada sabemos a mais sobre toda espécie de causalidade do que unicamente a conjunção constante de objetos e a consequente inferência do espírito de um a outro, e admitindo-se que toda gente concorda que estas duas circunstâncias intervêm nos atos voluntários, podemos mais facilmente reconhecer que a mesma necessidade é comum a todas as causas. E embora este raciocínio possa contradizer os sistemas de muitos filósofos, atribuindo a necessidade às determinações da vontade, veremos, depois de refletir, que eles discordam somente em palavras e não em seu sentimento real. A necessidade, no sentido que a entendemos aqui, nunca tem sido rejeitada, nem pode ser rejeitada, penso eu, por um filósofo. Pode-se apenas pretender, talvez, que o espírito deve perceber, nas operações materiais, uma conexão adicional entre a causa e o efeito; e que esta conexão não intervém nas ações voluntárias dos seres inteligentes. Ora, se isto ocorre assim ou não, somente a investigação pode revelar; é, portanto, dever destes filósofos de justificarem sua afirmativa, definindo ou descrevendo esta necessidade e no-la mostrando nas operações das causas materiais.

Parece, certamente, que se começa pelo lado errado sobre a questão da liberdade e da necessidade quando nela se penetra examinando as faculdades da alma, a influência do entendimento e as operações da vontade. Dever-se-ia, primeiramente, discutir um problema mais simples, a saber, as ações do corpo e da matéria bruta, e verificar se pode formar alguma ideia da causalidade e da necessidade, além de uma conjunção constante de objetos e a subsequente inferência do espírito de um para o outro. Se estas circunstâncias formam, com efeito, toda a necessidade que concebemos na matéria, e se estas circunstâncias intervêm também, por reconhecimento universal, nas operações do espírito, a discussão está terminada; pelo menos, deve-se reconhecer que ela é, de agora em diante, puramente verbal. Mas, contanto que suponhamos temerariamente que temos uma ideia adicional da necessidade e da causalidade nas operações dos objetos externos, ao mesmo tempo em que nada a mais podemos encontrar nas ações voluntárias do espírito, não há possibilidade de conduzir a questão para uma solução determinada enquanto procedemos sobre uma hipótese tão crônica. O único método adequado para esclarecer-nos consiste em subir mais alto e, examinando a estreiteza do campo da ciência que se aplica às causas materiais, convencer-nos de que tudo que apreendemos delas se restringe à conjunção constante e à inferência acima mencionadas. Podemos, talvez, notar que é com relutância que somos induzidos a fixar limites tão estreitos ao entendimento humano; mas a seguir não encontraremos obstáculos ao aplicar esta doutrina aos atos da vontade. Pois, como é evidente que estas ações estão em conjunção regular com os motivos, as circunstâncias e os caracteres, e como sempre tiramos inferências de uns aos outros, somos obrigados a reconhecer em palavras aquela necessidade que já temos reconhecido em todas as deliberações de nossa vida e em todos os passos de nossa conduta e de nossas ações. [10]

Mas para realizar nosso projeto de reconciliação relativo à questão da liberdade e da necessidade — a mais controvertida questão da metafísica, a mais litigiosa das ciências — não precisamos de muitas palavras para provar que todos os homens sempre têm concordado a respeito da doutrina da liberdade, assim como com a da necessidade, e que toda discussão a este respeito também tem sido, até agora, puramente verbal. Pois o que se entende por liberdade quando se aplica a palavra às ações voluntárias? Não podemos certamente dizer que estes atos têm tão pouca conexão com os motivos, as inclinações e as circunstâncias que um não deriva do outro com um certo grau de uniformidade e que um não proporciona nenhuma inferência pela qual podemos concluir a existência do outro. Pois estes são fatos patentes e reconhecidos. Por liberdade, então, podemos apenas entender um poder de agir ou de não agir segundo as determinações da vontade; [11] isto é, se escolhermos permanecer em repouso, podemos; mas, se escolhermos mover-nos, também podemos. Ora, reconhece-se universalmente que esta liberdade incondicional encontra-se em todo homem que não esteja prisioneiro ou acorrentado. Logo, aqui não há assunto para discussão.

Acerca de qualquer definição que possamos dar de liberdade, devemos cuidadosamente observar duas circunstâncias indispensáveis: primeira, a definição deve estar de acordo com a evidência do fato; segunda, a definição deve concordar com ela mesma. Se observarmos estas circunstâncias e se tornarmos nossa definição inteligível, estou persuadido de que todos os homens terão uma só opinião a respeito deste assunto.

Admite-se universalmente que nada existe sem uma causa de sua existência e que a palavra “acaso”, se examinada com cuidado, é puramente negativa e não designa nenhuma força real que exista em qualquer lugar na natureza. Mas se se pretende que algumas causas são necessárias enquanto outras não o são, vemos então a vantagem das definições. Se alguém definisse uma causa, sem compreender, como elemento da definição, a conexão necessária com o seu efeito, e se mostrasse distintamente a origem da ideia expressa pela definição, desistiria prontamente de toda controvérsia. Mas, se se aceita a explicação anterior do assunto, isto deve ser absolutamente impraticável. Se os objetos não tivessem entre si uma conjunção regular, nunca formaríamos qualquer noção de causa e de efeito; esta conjunção regular produz a inferência no entendimento, que é a única conexão da qual podemos ter alguma compreensão. Quem pretender definir a causa, excluindo estas circunstâncias, será obrigado a empregar termos ininteligíveis ou dar sinônimos do termo que se tenta esforçar por definir. [12] Se se admite a definição acima citada, a liberdade, oposta à necessidade e não à restrição, é a mesma coisa que o acaso e a respeito do qual toda a gente está de acordo que não existe.

  1. Os dois níveis explicativos da causalidade (veja-se nota 50, seção VII) são circunscritos e elucidados pelo princípio mais geral da necessidade. Julgamo-la assim pelo fato de iluminar e fundamentar tanto a causalidade como todas as disciplinas compreendidas pela ciência da natureza humana. É deste modo que a causalidade se instala como princípio explicativo dos fenômenos humanos. A uniformidade ínsita nos fenômenos naturais (base de toda inferência causal) é retomada e situada na raiz dos fenômenos humanos, com o fim de descortinar a ideia de necessidade e de justificar a inferência causal na ciência do homem. É com justeza, portanto, que Hume inseriu, após a explicitação da ideia de conexão necessária, a seção intitulada “Da liberdade e da necessidade”: deu continuidade lógica aos argumentos baseados no raciocínio causal. Hume inicia pelo estudo da ideia de “necessidade”, pois dela irradia, além da causalidade e da ciência moral, o esclarecimento da ideia de “liberdade”. [N. do T.]
  2. Do mesmo modo que na sétima seção (nota 39), Hume recorre ao método exposto na segunda seção: busca da impressão originária da ideia de necessidade. [N. do T.]
  3. O cerne da pesquisa humana consiste, de um lado, em mostrar que a mesma uniformidade se observa tanto nas “ações voluntárias e nas operações do espírito” como nas “operações dos corpos” e, de outro lado, em consequência desta constatação, podemos levantar inferências a respeito de umas como de outras. [N. do T.]
  4. O dogma da uniformidade da natureza (quer física, quer humana), era o “fato central e dominante da história intelectual da Europa durante duzentos anos — do fim do século XVI ao fim do século XVII” (A. O. Levejoy, “Deism and Classicism”, in Essays on the History of Ideas, Baltimore, 1948, p. 81). Hume adota este dogma e o emprega como uma das ideias centrais de sua filosofia. [N. do T.]
  5. Não é cabível, no entanto, usar indiscriminadamente o critério da uniformidade das ações humanas e supor, no entender de Hume, que todos os homens, em situações semelhantes, sempre agirão da mesma maneira, sem levar em conta as diferenças individuais, devidas ao ambiente, à educação e ao caráter peculiar a cada homem. [N. do T.]
  6. Nas edições de K a M lê-se: “a forma de todas as inferências que formamos a seu respeito”.
  7. Hume se refere talvez ao que se entende atualmente por estética. [N. do T.]
  8. Este parágrafo foi inserido apenas na última edição revista por Hume e publicada em 1777 (edição O). [N. do T.]
  9. Dos argumentos atados por Hume, depreendemos uma proposição, segundo Flew, geral e fundamental. Trata-se de aceitar como evidente que o método experimental, o único em verdade válido nas questões de fato e de existência real, deve basear-se em regularidades, ou uniformidades, discerníveis nos fatos naturais, e quer aplicado aos homens, quer a outros objetos quaisquer, devem resultar inferências bem-sucedidas. Por este motivo, Hume procurou mostrar que não apenas na esfera humana, como em outros objetos quaisquer, há suficiente regularidade para originar a inferência causal (Flew, ob. cit., pp. 146-7). [N. do T.]
  10. O predomínio da doutrina da liberdade pode ser explicado por outra causa, ou seja, uma falsa sensação ou aparente experiência de liberdade ou indiferença que temos ou que podemos ter em muitos de nossos atos. A necessidade de uma ação da matéria ou do espírito não é, propriamente falando, uma qualidade no agente, mas em qualquer ser pensante e inteligente que pode considerar a ação, e ela consiste principalmente nas determinações de seus pensamentos para inferir a existência desta ação a partir de alguns objetos precedentes. De modo que a liberdade, quando oposta à necessidade, não é senão a ausência desta determinação e a presença de certo abandono ou indiferença que sentimos ao passar ou não passar da ideia de um objeto à de outro que o sucede. Podemos, assim, observar que, mesmo ao refletir sobre os atos humanos, raramente sentimos esse abandono ou indiferença, mas somos geralmente capazes de inferi-los de seus motivos e das disposições de quem os realiza; sem dúvida, ao realizar estes mesmos atos, notamos frequentemente algo parecido a isto. E, como é fácil confundir todos os objetos semelhantes, isto tem sido usado como prova demonstrativa e mesmo intuitiva da liberdade humana. Sentimos que nossos atos estão sujeitos à nossa vontade na maioria dos casos e imaginamos que sentimos a vontade como não subordinada a nenhuma coisa porque, quando por afirmação contrária somos provocados a tratar de fazê-lo, sentimos que ela se move facilmente em todas as direções e produz uma imagem de si mesma (ou uma veleidade, como tem sido denominada nas escolas), embora sem decidir para que lado ela se dirige. Esta imagem ou débil movimento nesse momento poderia (estamos persuadidos disto) haver chegado a ser a própria coisa, porque, se isto fosse negado, veríamos, numa segunda tentativa, que agora pode chegar a sê-lo. Não consideramos que o fantástico desejo de mostrar a liberdade é aqui o motivo de nossas ações. Parece certo que, qualquer que seja a maneira pela qual sentimos em nós a liberdade, um espectador pode geralmente inferir nossos atos de nossos motivos e do nosso caráter, e mesmo quando não pode conclui geralmente que poderia se conhecesse perfeitamente todas as circunstâncias de nossa situação e temperamento e as fontes mais secretas de nossa disposição. Esta é, portanto, a verdadeira essência da necessidade, segundo a doutrina anterior (Hume).
  11. O homem como “agente” deve considerar-se inteiramente livre para realizar, ou não, qualquer ação. Na condição de “espectador”, que observa e reflete tanto sobre suas ações como as de outrem, o homem conclui que elas importam em tal uniformidade que é levado a enquadrá-las como efeitos necessários de causas conhecidas. É com vistas à última caracterização que Hume tem a intenção de conciliar as doutrinas da “liberdade e da necessidade”. Reafirma, assim, que a definição de “causa” implica a “conexão necessária” com seu efeito, como elemento essencial, ou ainda, segundo o Tratado, a “necessidade constitui um aspecto essencial da causalidade” (II, ii, III, p. 407). A partir desta formulação, infere que se “se admite a definição de causa acima citada, a liberdade, oposta à necessidade e não à restrição, é a mesma coisa que o acaso e a respeito do qual toda a gente está de acordo que não existe”. Excluindo o fator “acaso” da doutrina da liberdade, Hume está prescrevendo as mesmas regras da necessidade causal para elucidar a liberdade humana. Instaura, desta maneira, a liberdade no seio da necessidade e pressupõe que apenas assim os atos humanos devem ser julgados sob o prisma da responsabilidade moral. [N. do T.]
  12. Assim, se uma causa fosse definida como o que produz algo, é fácil observar que produzir é sinônimo de causar. Do mesmo modo, se se definisse uma causa como aquilo por meio do qual algo existe, esta definição está sujeita à mesma objeção. O que se entende pelos termos por meio da qual? Se se houvesse dito que a causa é aquilo depois do qual algo existe constantemente, teríamos entendido os termos. Porque isto é, em verdade, tudo o que sabemos acerca do assunto. E esta constância constitui a verdadeira essência da necessidade, já que não temos outra ideia dela (Hume).
Segunda parte

Não há método mais comum de raciocinar — e não obstante nenhum mais censurável — do que refutar as hipóteses nas discussões filosóficas sob pretexto de conterem perigosas consequências para a religião e a moral. Quando uma opinião conduz ao absurdo, é certamente falsa, mas não é evidente que uma opinião seja falsa porque suas consequências são perigosas. Devem-se evitar inteiramente tais lugares-comuns, pois eles em nada auxiliam na descoberta da verdade, servindo apenas para tornar odiosa a pessoa de um adversário. Faço esta observação de modo geral, sem pretender tirar qualquer vantagem dela. Submeto-me francamente a um exame deste gênero, e ousarei afirmar que as duas doutrinas, da necessidade e da liberdade, tais como foram explicadas acima, não são apenas compatíveis com a moral, mas são absolutamente essenciais para apoiá-la.

A necessidade pode definir-se de duas maneiras, de acordo com duas definições de causa, da qual ela constitui uma parte essencial. Consiste, ou na conjunção constante de objetos semelhantes, ou na inferência que faz o entendimento de um objeto a outro. Ora, a necessidade, nestes dois sentidos — que, certamente, em essência são a mesma coisa — é reconhecida por toda a gente, embora tacitamente, nas escolas, no púlpito e na vida diária, ela pertença à vontade humana; jamais alguém pretendeu negar que podemos tirar inferências das ações humanas, e que estas inferências se baseiam sobre a experiência da união de atos semelhantes com motivos, inclinações e situações semelhantes. Alguém pode, talvez, discordar apenas num aspecto, qual seja, recusar nomear necessidade a esta qualidade dos atos humanos; todavia, compreendendo-se seu significado, a denominação, creio eu, não pode ocasionar nenhum mal; ou então, sustenta que é possível desvendar alguma coisa a mais nas operações da matéria. Mas isto, devemos confessar, não pode trazer nenhuma consequência para a moral e a religião, qualquer que seja sua importância na filosofia natural ou metafísica. Podemos enganar-nos aqui afirmando que não há ideia de uma outra necessidade ou conexão nas ações dos corpos; mas certamente não atribuímos nada aos atos do espírito senão o que cada um admite e deve prontamente admitir. Não mudamos em nenhum pormenor o sistema ortodoxo recebido acerca da vontade, mudamo-lo apenas nas ocorrências relativas aos objetos e às causas materiais. Portanto, nada pode ser mais inocente do que esta doutrina.

Como todas as leis se baseiam em recompensas e castigos, admite-se como principio fundamental que estes motivos têm uma influência regular e uniforme sobre o espírito, e que tanto produzem boas ações como impedem as más. Podemos dar a esta influência o nome que mais nos agrada, mas, como está usualmente conjuntada com a ação, devemos considerá-la uma causa e olhá-la como um exemplo da necessidade que queríamos estabelecer aqui.

O único objeto próprio do ódio ou da vingança é uma pessoa ou criatura dotada de pensamento e de consciência; e quando atos injuriosos ou criminais excitam esta paixão, referem-se à pessoa ou estão em conexão com ela. As ações são, por sua própria natureza, temporais e perecíveis e se não procedem de alguma causaque reside no caráter ou disposição da pessoa que as realizou não podem redundar em sua honra, se são boas, nem em sua infância, se são más. Admitamos agora que as próprias ações podem ser condenáveis e contrárias a todas as regras da moral e da religião, mas que a pessoa não é responsável por elas. Como as ações não procedem de algo que seja durável e constante, e que não deixam atrás de si nada desta natureza, é impossível que por causa delas a pessoa possa tornar-se objeto de castigo ou de vingança. Assim, de acordo com o princípio que nega a necessidade e, por conseguinte, as causas, um homem é tão puro e imaculado depois de ter cometido o mais horrendo crime como no primeiro momento de seu nascimento, já que seu caráter não se relaciona com suas ações, pois elas não derivam dele, e a perversidade de uma não serve para provar a depravação do outro.

Não se acusam os homens por ações que tenham desempenhado, casualmente ou sem querer, quaisquer que possam ser suas consequências. Por quê? Simplesmente porque os princípios destas ações são apenas momentâneos e terminam unicamente nelas. Os homens são menos culpados pelas ações que desempenham apressadamente e sem premeditação que por aquelas que realizam depois de deliberarem. Por quê? Somente porque um temperamento precipitado, embora dotado de uma causa ou princípio constante no espírito, atua apenas por intervalos e não corrompe todo o caráter. Por outro lado, o arrependimento purifica todos os crimes, se acompanhado de uma reforma da vida e dos costumes. Como explicar isto? Apenas declarando que as ações tornam alguém criminoso quando elas constituem provas da existência de princípios criminais, em seu espírito; quando, por uma alteração destes princípios, deixam de ser provas concludentes, igualmente deixam de ser criminais. Mas, excetuando a doutrina da necessidade, elas nunca foram provas concludentes e, por conseguinte, nunca foram criminais.

Será igualmente fácil provar, usando os mesmos argumentos, que a liberdade, segundo a definição acima mencionada e com a qual todos os homens concordam, é também essencial à moralidade e que nenhuma ação humana na qual não se encontra presente é suscetível de qualidades morais, ou possa ser objeto de aprovação ou desaprovação. Pois, como as ações são os objetos de nosso sentimento moral, unicamente na medida em que são indícios do caráter interno, de paixões e de afeições, é impossível que elas possam ocasionar o elogio ou a crítica, se elas não procedem destes princípios e se elas derivam inteiramente de uma intervenção exterior.

Não tenho a pretensão de ter dissipado ou removido todas as objeções sobre a teoria da necessidade e da liberdade. Prevejo outras objeções que procedem de argumentos que não foram tratados aqui. Pode-se dizer que, por exemplo, se as ações voluntárias estivessem sujeitas às mesmas leis da necessidade que as operações da matéria, haveria uma cadeia contínua de causas necessárias preordenadas e predeterminadas, decorrendo da causa original de tudo para alcançar a vontade particular de cada criatura. Porquanto em nenhum lugar do universo há contingência, nem indiferença e nem liberdade. Enquanto agimos, algo age, por sua vez, sobre nós. O Autor último de todas as nossas vontades é o Criador do mundo, quem, no início, deu o impulso a esta imensa máquina e colocou todos os seres nesta posição particular, de onde deve resultar, por uma necessidade inevitável, todo evento posterior. Portanto, as ações humanas, ou não podem ser em nada moralmente depravadas, porquanto elas procedem de uma tão boa causa; ou se são depravadas devem envolver nosso Criador na mesma culpa, visto que é reconhecido como sua última Causa e Autor. Pois, do mesmo modo que um homem que faz explodir uma bomba é responsável por todas as consequências, quer seja comprida ou curta a mecha que ele empregou, assim, uma vez que se tenha fixado uma cadeia contínua de causas necessárias, este Ser, seja finito ou infinito, que produz a primeira causa, é igualmente o Autor de toda a cadeia, e deve igualmente suportar a censura e receber o elogio que lhe correspondem. Nossas ideias morais, claras e inalteráveis, estabelecem esta regra, sobre razões indiscutíveis, quando examinamos as consequências de uma ação humana; e estas razões devem ter ainda maior força quando se aplicam às volições e intenções de um Ser infinitamente sábio e potente. Pode-se alegar ignorância ou impotência em favor de uma criatura tão limitada como o homem, mas estas imperfeições não são inerentes ao nosso Criador. Ele previu, ordenou e planejou todas as ações humanas, que nós, temerariamente, denominamos criminais. Portanto, devemos concluir, ou elas não são criminais, ou Deus, e não o homem, é responsável por elas. Mas tanto uma como outra afirmação é absurda e ímpia; por conseguinte a doutrina da qual elas são deduzidas não pode sem dúvida ser verdadeira, porque está exposta às mesmas objeções. Uma consequência absurda, se é necessária, demonstra que a doutrina original é absurda, do mesmo modo que as ações criminais tornam criminosa a causa original, se a conexão entre elas é necessária e inevitável.

Esta objeção compreende duas partes que examinaremos separadamente. Primeira, se se puder remontar das ações humanas até Deus por um encadeamento necessário, elas nunca podem ser criminais, devido à infinita perfeição do Ser do qual elas procedem e que não pode querer nada que não seja completamente bom e louvável. Segunda, se estas ações são criminais, devemos contestar o atributo de perfeição que conferimos a Deus e reconhecê-lo como o autor último da culpabilidade e baixeza moral de todas as suas criaturas.

A resposta à primeira objeção parece evidente e convincente. Há numerosos filósofos que, depois de examinarem atentamente todos os fenômenos da natureza, concluem que o Todo, considerado como um sistema, está ordenado com perfeita benevolência em todos os períodos de sua existência; e que no final resultará a máxima felicidade possível para todos os seres criados, sem nenhuma mistura de mal ou de miséria positiva ou absoluta. Todo mal físico, dizem eles, constitui uma parte essencial deste benevolente sistema, e não poderia ser suprimido, nem sequer pelo próprio Deus, considerado um agente sábio, sem dar entrada a um mal maior ou sem excluir um maior bem que resultar dele. Desta teoria, alguns filósofos, e dentre eles os antigos Estoicos, derivaram um tema de consolo para todas as aflições, pois ensinavam a seus discípulos que os males que sofriam eram, na realidade, bens para o universo; e que desde um ponto de vista mais amplo, compreendendo todo o sistema da natureza, todo evento tornar-se-ia objeto de alegria e exaltação. Mas, embora este tema seja plausível e sublime, logo se viu na prática que era débil e ineficaz. Certamente, irritareis mais do que tranquilizareis um homem atormentado pelas dores da gota, fazendo-lhe sermões sobre a retidão destas leis gerais que produziram os humores malignos no seu corpo e os levaram através de canais adequados até aos tendões e aos nervos onde agora provocam estes agudos tormentos. Estas generalizações podem agradar, por um momento, a imaginação especulativa de um homem que se acha tranquilo e seguro, mas elas não podem impor-se com constância em seu espírito, mesmo quando não esteja perturbado pelas emoções da dor e da paixão, e muito menos podem manter sua posição quando se vê atacado por tão poderosos antagonistas. As tendências humanas consideram seu objeto mais de perto e com maior naturalidade; e segundo uma organização mais adequada à debilidade dos espíritos humanos, referindo-a apenas aos seres que nos envolvem, deixam-se influenciar pelos eventos que se manifestam como bons ou maus aos sistemas pessoais.

Com o mal moral ocorre o mesmo que com o mal físico. Não se pode supor razoavelmente que estas remotas considerações, de tão pouca eficácia com respeito a um, terão uma ação mais poderosa acerca do outro. O espírito humano está naturalmente formado de maneira a ter um sentimento de aprovação ou de censura quando da aparição de certos caracteres, de certas disposições e ações; não há emoções mais essenciais à sua estrutura e à sua constituição. Os personagens que atraem nossa aprovação são principalmente aqueles que contribuem para a paz e a segurança da sociedade humana; os personagens que provocam censura são principalmente aqueles que tendem ao prejuízo e agitações públicas; pode-se razoavelmente presumir que os sentimentos morais nascem, seja mediatamente seja imediatamente, de uma reflexão sobre estes interesses opostos. Que importa que as meditações filosóficas elaborem opinião ou conjetura contrária, asseverando que tudo está de acordo com o Todo, e que os caracteres que perturbam a sociedade são, em sua maior parte, tão benéficos e adequados à intenção primitiva da natureza como aquelas que contribuem mais diretamente para a sua felicidade e bem-estar? São capazes, estas remotas e inseguras especulações, de equilibrarem os sentimentos que surgem da observação natural e imediata dos objetos? Um homem que é roubado de uma considerável soma de dinheiro diminui em algo seu aborrecimento por meio destas sublimes reflexões? Por que estas sublimes reflexões poderiam considerar-se incompatíveis com seu ressentimento moral contra o delito? Ou, por que não se poderia conciliar o reconhecimento de uma distinção real entre o vício e a virtude com todos os sistemas da filosofia especulativa, assim como o de uma distinção real entre a beleza e a fealdade pessoais? Estas duas distinções baseiam-se nos sentimentos naturais do espírito humano; e estes sentimentos não podem ser controlados ou alterados por nenhuma teoria filosófica, nem por nenhuma especulação.

A segunda objeção não é passível de resposta tão fácil e satisfatória, já que não é possível explicar distintamente como Deus, sendo causa mediata de todas as ações humanas, não é também autor do pecado e da depravação moral. Estes são mistérios que a mera razão natural, sem outros recursos, não pode tratar adequadamente, e qualquer que seja o sistema que ela adote, ver-se-á envolvida em dificuldades insolúveis, e mesmo em contradições, em cada passo que dá ao investigar estes temas. Até agora, reconciliar a indiferença e a contingência das ações humanas com a presciência, ou defender os decretos absolutos excluindo de Deus a autoria do pecado, é uma tarefa que tem superado todo o poder da filosofia. Afortunada aquela filosofia que, consciente de sua temeridade ao espreitar estes mistérios sublimes, deixa uma cena tão cheia de obscuridades e perplexidades e volta com modéstia adequada para o seu verdadeiro domínio — o exame da vida cotidiana — onde encontrará suficientes dificuldades ao empreender suas investigações, sem lançar-se num oceano tão ilimitado de dúvidas, de incertezas e de contradições.

Seção IX

Da razão dos animais

Todos os nossos raciocínios a propósito das questões de fato se fundam numa espécie de analogia que nos faz esperar de uma causa os mesmos eventos que temos visto resultar de causas semelhantes. Se as causas são inteiramente semelhantes, a analogia é perfeita e a inferência, tirada delas, é considerada segura e conclusiva; nenhum homem que vê um pedaço de ferro jamais duvidará que tem peso e coesão entre as partes, tal como tem ocorrido em todos os outros casos que caíram sob sua observação. Mas, se os objetos não possuem uma semelhança tão rigorosa, a analogia é menos perfeita e a inferência é menos conclusiva, embora conserve alguma força em proporção ao grau de semelhança. As observações anatômicas feitas sobre um ser animado estendem-se, por esta espécie de raciocínio, a todos os seres animados. Certamente, quando, por exemplo, se prova claramente que a circulação do sangue se processa numa criatura, como a rã ou um peixe, forma-se uma forte presunção de que o mesmo princípio se encontra em todas as outras criaturas. Estas observações analógicas podem ser levadas mais longe, até mesmo à ciência de que atualmente estamos tratando; e qualquer teoria que nos sirva para explicar as operações do entendimento, ou a origem e a conexão das paixões humanas, adquirirá maior autoridade se verificarmos que esta mesma teoria é necessária para explicar o mesmo fenômeno em todos os outros seres animados. Submeteremos a esta prova a hipótese que na exposição precedente nos permitiu tentar explicar todos os raciocínios experimentais; esperamos que este novo enfoque servirá para confirmar todas as observações anteriores.

Em primeiro lugar, parece evidente que os animais, como os homens, apreendem muitas coisas da experiência e inferem que os mesmos eventos resultarão sempre das mesmas causas. Mediante este princípio, familiarizam-se com as propriedades mais evidentes dos objetos externos, e gradualmente, a partir de seu nascimento, acumulam conhecimentos sobre a natureza do fogo, da água, da terra, das pedras, das altitudes, das profundidades etc., e daquilo que resulta de sua ação. Aqui se distingue claramente a ignorância e a inexperiência do jovem frente à astúcia e à sagacidade dos velhos que têm aprendido, por uma longa observação, a evitar o que os fere e a perseguir o que lhes proporciona bem-estar e prazer. Um cavalo habituado ao campo familiariza-se com a altura apropriada que pode saltar e nunca tentará superar aquela que ultrapassa suas forças e habilidades. Um velho galgo confiará a parte mais fatigante da caça aos mais jovens e se colocará em posição apropriada para abocar a lebre quando esta de repente se voltar; as conjeturas que faz neste caso não têm outro fundamento senão sua observação e experiência.

Isto é ainda mais evidente se se considerarem os efeitos da adestração e da educação sobre os animais, aos quais mediante a aplicação adequada de castigos e recompensas, se pode ensinar a efetuar qualquer classe de atividade, inclusive as mais contrárias aos seus instintos e inclinações naturais. Não é a experiência que faz com que um cão tema a dor, quando o ameaçais e levantais o látego para enxotá-lo? Não é também a experiência que o faz responder por seu nome e a inferir, de um som arbitrário, que o designais e não a alguns de seus companheiros, e que quereis chamá-lo, quando emitis este som de uma certa maneira, com certa tonalidade e inflexão?

Em todos estes casos, podemos constatar que o animal infere um fato que ultrapassa aquilo que impressiona imediatamente seus sentidos, e que esta experiência está completamente fundada na experiência passada, visto que a criatura espera do objeto presente os mesmos resultados que, em sua observação, sempre tem visto derivar de objetos semelhantes.

Em segundo lugar, é impossível que esta inferência do animal possa fundar-se em algum processo de argumento ou do raciocínio pelo qual conclui que eventos iguais devem seguir a objetos iguais, e que a ordem natural será sempre regular em suas operações. Porque, se na realidade há alguns argumentos desta natureza, são certamente demasiado abstrusos para a observação de entendimentos tão imperfeitos, já que, para descobri-los e observá-los, se necessita do máximo cuidado, atenção e temperamento de um filósofo. Portanto, os animais não são guiados pelo raciocínio nestas inferências; nem as crianças, nem a generalidade dos homens em suas ações e conclusões ordinárias; nem os próprios filósofos, que, em todos os momentos ativos de sua vida, são, em sua maioria, parecidos com o vulgo e deixam-se governar pelas mesmas máximas. A natureza deve ter fornecido alguns outros princípios de aplicação e de uso mais rápido e mais geral, visto que uma operação de tão grande importância na vida, como é a inferência de efeitos a partir de suas causas, não pode ser confiada a um processo inseguro do raciocínio e da argumentação. Se o fato é duvidoso com respeito aos homens, parece que não admite dúvida em relação aos seres irracionais; e uma vez que a conclusão está firmemente estabelecida para uns, temos uma forte presunção, segundo todas as regras da analogia, de que deveria admitir-se universalmente sem nenhuma exceção ou reserva. Pois unicamente o costume induz os animais a inferir, a partir de todo objeto que impressiona seus sentidos, seu acompanhante usual, e leva sua imaginação a conceber um pelo aparecimento do outro desta maneira particular que denominamos crença. Nenhuma outra explicação pode ser dada desta operação, quer nas classes superiores quer nas classes inferiores dos seres sensíveis, que tombam sob nossa observação e conhecimento. [1]

Mas, embora os animais extraiam da observação grande parte de seus conhecimentos, há também outras partes decorrentes do poder original da natureza, superando em muito a porção de capacidade que têm em ocasiões ordinárias e que eles aperfeiçoam, pouco ou nada, mediante grande prática e experiência. E isso que denominamos de instintos, e os admiramos como algo mui extraordinário e inexplicável por todas as investigações do entendimento humano. Mas nossa admiração, talvez, cessará ou diminuirá, quando considerarmos que o próprio raciocínio experimental, que possuímos em comum com os animais, e do qual depende toda a conduta da vida, nada é senão uma espécie de instinto ou de poder mecânico, agindo em nós de um modo desconhecido de nós mesmos; e que em suas principais operações não está dirigido por nenhuma das relações ou comparações de ideias, que são os objetos próprios de nossas faculdades intelectuais. Embora o instinto seja diferente, é, sem dúvida, um instinto que ensina o homem a evitar o fogo; do mesmo modo que ensina a um pássaro, com tanto rigor, a arte da incubação e toda a organização e ordem de seus cuidados educativos.

  1. Visto que todos os nossos raciocínios acerca dos fatosou causas derivam unicamente do costume, é lícito indagar como os homens ultrapassam pelo raciocínio os animais e como um homem é superado por outro? Além disso, por que tal costume não tem influência uniforme sobre todos os homens?

    Tentaremos aqui explicar sumariamente a grande diferença entre os entendimentos humanos; depois disto será fácil compreender a causa da diferença entre os homens e os animais:
    a) Ao termos vivido por algum tempo e nos acostumado com a uniformidade da natureza, adquirimos um hábito geral pelo qual transferimos sempre o conhecido ao desconhecido e concebemos que o último se parece com o primeiro. Por meio deste princípio geral e habitual, consideramos que um raciocínio pode basear-se em um único experimento e esperamos um evento similar com algum grau de certeza, se o experimento foi feito com exatidão e livre de toda circunstância estranha. Consideramos, portanto, de grande importância observar as consequências das coisas, e como uma pessoa pode superar em muito a outra em atenção, memória e observação, o que produzirá uma grande diferença em seus raciocínios.
    b) Se um efeito é produto de uma complicação de causas, um espírito pode ser mais amplo que outro e estar mais bem capacitado para abarcar todo o sistema de objetos e inferir acertadamente suas consequências.
    c) Um homem é capaz de manipular uma cadeia de consequências mais longa do que outro [homem] .
    d) Poucos homens podem pensar por longo tempo sem misturar as ideias e confundir umas com as outras. Esta debilidade aparece em vários graus.
    e) A circunstância da qual depende o efeito está geralmente envolta em outras circunstâncias que lhe são estranhas e extrínsecas. Sua separação frequentemente requer grande atenção, rigor e sutileza.
    f) A formação de princípios gerais a partir de observações particulares é uma operação muito delicada, e não há nada mais usual, devido à precipitação e à limitação espiritual que não considera todos os ângulos [da questão], que cometer erros a este respeito.
    g) Quando se raciocina através de analogias, quem tem mais experiência ou mais presteza para sugerir analogias raciocinará melhor.
    h) As tendências devidas aos preconceitos, educação, paixão, partidos políticos etc. têm mais influência sobre alguns espíritos do que sobre outros.
    i) Depois de ter adquirido confiança no testemunho humano, os livros e os diálogos ampliam a esfera da experiência e do pensamento em um homem mais que em outro.
    Seria fácil descobrir outros fatores que produzem diferenças entre os entendimentos humanos (Hume).

Seção X

Dos milagres [1]

Primeira parte

Há, nos escritos do Dr. Tillotson [2] um argumento contra a presença real, que é tão conciso, elegante e poderoso, como pode supor-se de um argumento contra uma doutrina tão pouco digna de séria refutação. Admite-se universalmente, diz o sábio prelado, que a autoridade da Escritura ou da tradição se baseia unicamente no depoimento dos apóstolos, que foram as testemunhas oculares dos milagres de nosso Salvador, pelos quais provou sua missão divina. Portanto, nossa evidência em favor da verdade da religião cristã é menor do que a evidência da verdade de nossos sentidos, porque mesmo nos primeiros autores de nossa religião não era maior; e é evidente que ela deve diminuir passando deles para os seus discípulos; ninguém pode pois depositar, em relação aos seus testemunhos, a mesma confiança que tem em relação ao objeto imediato de seus sentidos. Mas uma evidência mais fraca nunca pode destruir uma mais forte; portanto, se a doutrina da presença real estivesse revelada na Escritura tão claramente como se queira, seria diretamente contrário às regras do raciocínio exato dar nosso assentimento. Contradiz os sentidos, visto que tanto a Escritura como a tradição, sobre as quais se supõe que está edificada, não são tão evidentes como os sentidos, se elas são consideradas meramente como evidências externas e não como dirigidas ao coração de cada um por obra imediata do Espírito Santo.

Nada é tão convincente como um argumento decisivo deste gênero que, pelo menos, deve reduzir ao silêncio o fanatismo e a superstição mais arrogantes e livrar-nos de suas impertinentes solicitações. Congratulo-me por ter descoberto um argumento de natureza análoga que, se é legítimo, servirá de obstáculo eterno, junto aos sábios e doutos, a toda espécie de ilusão supersticiosa e, por conseguinte, será de utilidade enquanto existir o mundo. Porque presumo que em todos os tempos da história sagrada e profana [3] encontrar-se-ão relatos de prodígios e de milagres.

Embora a experiência seja o nosso único guia no raciocínio sobre as questões de fato, deve-se reconhecer que este guia não é totalmente infalível e que, em alguns casos, pode conduzir-nos a erros. Uma pessoa que esperasse em nosso clima melhor tempo durante uma semana de junho do que uma de dezembro, raciocinaria corretamente de acordo com a experiência; todavia é também verdade que ela pode ver-se equivocada acerca do evento. E, não obstante, podemos observar que, em tal caso, não teria nenhum motivo para queixar-se da experiência, visto que ela nos informa, comumente e por antecipação, da incerteza, mediante a oposição de eventos que poderíamos apreender através de uma observação diligente. Todos os efeitos não resultam com a mesma segurança das supostas causas. Alguns eventos se encontram em todos os países e em todas as épocas em conjunção constante; outros, contudo, têm sido mais variáveis e às vezes têm decepcionado nossas expectativas; de modo que, em nossos raciocínios acerca das questões de fato, há todos os graus imagináveis de certeza, desde a mais alta certeza até as formas mais inferiores da certeza moral.

Um homem sábio [4], portanto, torna sua crença proporcional à evidência. Nas conclusões que se baseiam numa experiência infalível, espera o evento com o máximo grau de segurança e considera a experiência passada uma provacompleta da existência futura deste evento. Em outros casos, procede com mais precaução; pesa as experiências contrárias; considera qual dos lados está apoiado por maior número de experiências; é para este lado que se inclina, com dúvida e hesitação; e quando finalmente estabelece seu juízo, a evidência não ultrapassa o que denominamos propriamente de probabilidade. Toda probabilidade, portanto, supõe uma oposição de experiências e de observações, na qual um dos lados sobrepuja o outro e produz um grau de evidência proporcional à superioridade. Cem casos ou experiências de um lado e cinquenta do outro fornecem uma expectativa duvidosa de qualquer evento; contudo, cem experiências uniformes, com apenas uma que é contraditória, engendram racionalmente um grau bastante alto de segurança. Em todos os casos, devemos contrabalançar as experiências opostas, se são opostas, e subtrair os números menores dos maiores a fim de conhecer a força exata da evidência superior.

Aplicando estes princípios a um caso particular, constatamos que não há espécie de raciocínio mais comum, mais útil e mesmo mais necessário à vida humana que o derivado do depoimento humano, dos relatos das testemunhas oculares e dos expectadores. Negar-se-ia, talvez, que esta espécie de raciocínio se funda na relação de causa e efeito. Não discutirei sobre a terminologia. Será suficiente notar, contudo, que nossa segurança em qualquer argumento deste gênero não deriva de outro princípio senão da constatação da veracidade do testemunho humano e da conformidade usual dos fatos com os relatos das testemunhas. Como um princípio geral diz que em nenhum objeto se pode descobrir uma conexão, e que todas as inferências que podemos tirar de um para o outro se baseiam unicamente em nossa experiência de sua conjunção constante e regular, é evidente que não devemos fazer uma exceção deste princípio em favor do testemunho humano, cuja conexão com qualquer evento em si mesmo parece mui pouco necessária como qualquer outra. [5] Se a memória não fosse até certo grau tenaz, se os homens não tivessem geralmente inclinação para a verdade e princípio de probidade, se não fossem sensíveis à vergonha quando se descobrem suas mentiras; se a experiência, digo eu, não revelasse que essas qualidades são inerentes à natureza humana, não depositaríamos jamais a menor confiança no testemunho humano. Um homem que delira ou que é conhecido por sua falsidade e sua vilania não tem nenhuma espécie de autoridade para nós.

Como o depoimento que deriva das testemunhas e do testemunho humano se funda sobre a experiência passada, varia com a experiência e se considera ou uma provaou uma probabilidade, conforme se tem verificado constante ou variável a conjunção entre um gênero particular do relato e um gênero do objeto. Devem-se, portanto, levar em consideração numerosas circunstâncias em todos os julgamentos deste gênero; e a última regra que nos permite decidir em todas as discussões que podem nascer a respeito deste tema deriva sempre da experiência e da observação. Se esta experiência não é inteiramente uniforme em um dos dois lados, gerará uma inevitável contradição em nossos juízos, cujos argumentos apresentam a mesma oposição e destruição mútua como em qualquer outro gênero de evidência. Frequentemente duvidamos dos relatos de outrem. Contrabalançamos as circunstâncias opostas originárias de alguma dúvida ou incerteza; e quando descobrimos uma superioridade a favor de um lado, inclinamo-nos para ele, porém com segurança diminuída em proporção à força de seu antagonista. [6]

Esta contradição da evidência no caso presente pode derivar de diferentes causas: da oposição de testemunhos contrários, do caráter ou do número de testemunhas, da maneira como eles produzem seus testemunhos, ou da união de todas essas circunstâncias. Suspeitamos de uma questão de fato quando as testemunhas se contradizem entre si, quando são poucas e de caráter duvidoso, quando têm algum interesse pessoal naquilo que afirmam, quando enunciam seu testemunho com hesitação ou, pelo contrário, com afirmações mui violentas. Há muitos outros aspectos do mesmo gênero que podem diminuir ou destruir a força de qualquer argumento derivado do testemunho humano.

Suponha, por exemplo, que o fato que o testemunho tenta estabelecer tem de algo extraordinário e de maravilhoso; neste caso, a evidência que resulta do testemunho admite uma diminuição maior ou menor em proporção ao fato que é mais ou menos invulgar. A razão que nos leva a dar algum crédito às testemunhas e aos historiadores não deriva de nenhuma conexão que percebemos a priori entre o testemunho e a realidade, mas do fato de estarmos acostumados a encontrar uma conformidade entre eles. Contudo, quando o fato testificado é tal que raramente caiu sob nossa observação, produz-se então um conflito entre duas experiências opostas, em que uma destrói a outra em proporção de sua força, e a experiência superior apenas pode agir sobre o espírito com a força que lhe resta. E precisamente este mesmo princípio da experiência que nos fornece certo grau de segurança sobre o depoimento das testemunhas, e que nos dá também, neste caso, outro grau de segurança contra o fato que tentam estabelecer; e desta contradição surge necessariamente um contrapeso e uma destruição recíproca da crença e da autoridade.

Não acreditaria numa tal história mesmo se Catão ma contasse, era um dito proverbial em Roma, inclusive durante a vida deste filósofo patriota. [7] Admitia-se, pois, que a incredibilidade de um fato poderia invalidar tão grande autoridade.

O príncipe hindu que inicialmente se recusou a acreditar nos relatos sobre os efeitos da escarcha raciocinou corretamente, pois, como é natural, necessitar-se-ão testemunhos poderosos para lograr seu assentimento acerca de fatos que surgiram de um estado da natureza, com os quais ele não estava familiarizado, e que tinham tão pouca analogia com os eventos dos quais tinha tido uma experiência constante e uniforme. Embora estes fatos não fossem contrários à sua experiência, tampouco estavam de acordo com ela. [8]

Mas, para aumentar a probabilidade contra o depoimento das testemunhas, suponhamos que o fato que afirmam, em vez de ser apenas maravilhoso, é realmente miraculoso, e suponhamos também que o depoimento considerado à parte e em si mesmo equivale a uma prova completa; neste caso, temos prova contra prova, e a mais forte delas deve prevalecer, mas com uma diminuição de sua força em proporção à de sua antagonista.

Um milagre é uma violação das leis da natureza; e como uma experiência constante e inalterável estabeleceu estas leis, a prova contra o milagre, devido à própria natureza do fato, é tão completa como qualquer argumento da natureza que se possa imaginar. Por que é mais do que provável que todos os homens devem morrer; que o chumbo não pode por si mesmo permanecer suspenso no ar; que o fogo consome a madeira e que, por sua vez, a água o extingue; a não ser que estes eventos estão de acordo com as leis da natureza, e que é preciso uma violação destas leis, ou em outras palavras, um milagre, para impedi-los? Nada é considerado um milagre se ocorre no curso normal da natureza. Não é um milagre que um homem, aparentemente de boa saúde, morra subitamente, pois verifica-se que tal gênero de morte, embora mais incomum que qualquer outro, ocorre frequentemente. Mas é um milagre que um morto possa ressuscitar, porque isto nunca foi observado em nenhuma época e em nenhum país. Portanto, deve haver uma experiência uniforme contra todo evento miraculoso, senão o evento não mereceria esta denominação. E, como uma experiência uniforme equivale a uma prova, há aqui uma provadireta e completa, tirada da natureza fática contra a existência de um milagre; uma tal prova não pode ser destruída nem o milagre fazer-se crível senão por meio de uma prova oposta que lhe seja superior. [9]

A consequência clara — e é uma máxima geral digna de nossa atenção — é que não há testemunho suficiente para fundamentar um milagre, a menos que o testemunho seja tal que sua falsidade seria ainda mais miraculosa que o fato que pretende estabelecer; e mesmo neste caso há mútua destruição de argumentos, e o argumento mais forte nos dá apenas uma segurança proporcional ao grau da força depois da dedução da força inferior. Quando alguém me diz que viu um morto ressuscitar, considero imediatamente comigo mesmo: é mais provável que essa pessoa procure enganar-me ou esteja equivocada, do que o fato que relata possa realmente ter ocorrido. Peso um milagre contra o outro e, de acordo com a superioridade que descubro, pronuncio minha decisão e rejeito sempre o milagre maior. Se a falsidade de seu testemunho fosse ainda mais miraculosa que o evento que relata, agora e somente agora, pode pretender orientar minha crença e minha opinião.

  1. Da interessante entrevista que Hume concedeu a James Boswell, em 7 de julho de 1776, é conhecida a célebre passagem do primeiro: “nunca mais nutri qualquer crença pela Religião desde que comecei a ler Locke e Clarke” (Boswell, “An Account ol my last interview with David Rume”, cit. por N. K. Smith, Dialogues Concerning Natural Religion, de Hume, Liberal Arts, 1947, p. 76). Hume pretende, talvez, mostrar sua intenção de criticar a base racional da teologia natural, defendida tanto por Locke e Clarke como por outros metafísicos do século XVIII, e aceita quase universalmente pelos pensadores da Ilustração. De modo geral, podemos dizer que os argumentos da teologia natural abrangem dois momentos: a) com base no “argumento do desígnio” (seção XI), a teologia natural defende a tese de que tanto a existência como todos os atributos de Deus podem ser conhecidos pela razão natural e b) esta visão da religião da natureza pode ser suplementada pela revelação, cuja validade é garantida pela ocorrência de milagres, que, por seu turno, são apoiados por abundante evidência histórica (seção X). As seções X e XI constituem, de acordo com Stephen, partes de um único argumento, que julgamos ter sido elaborado por Hume para mostrar a inviabilidade dos momentos (a e b) da teologia natural. (Stephen, L. English Thought ín the Eighteenth Century Londres, 1902, vol. I, p. 310). [N. do T.]
  2. John Tillotson (1630-1694), influente teólogo e arcebispo de Canterbury a partir de 1691, apresenta o argumento que Hume sumariza, no Discourse against Transubstantion, publicado em 1684, da seguinte maneira: “Todo homem tem tão grande evidência de que a transubstanciação é falsa como tem de que a religião cristã é verdadeira. Suponde que a transubstanciação fizesse parte da doutrina cristã, deveria então ter a mesma confirmação com o todo, isto é, milagres. Mas, dentre todas as doutrinas do mundo, ela é peculiarmente incapaz de ser provada por um milagre. Pois, se um milagre fosse elaborado para prová-la, a própria segurança que leva alguém a aceitar a verdade do milagre o leva a considerar a falsidade da doutrina, isto é, através da clara evidência dos sentidos. Para que um milagre possa provar que o que ele vê no sacramento não é o pão, mas o corpo de Cristo, ele tem apenas o testemunho do sentido; e este mesmo testemunho aparece para provar que o que ele vê no sacramento não é o corpo de Cristo, mas o pão”. (Tillotson, vol. II, p. 448; citado por Flew, ob. cit., p. 172). [N. do T.]
  3. Nas edições K e L lê-se: “em toda história profana”.
  4. O “argumento” constituirá poderosa barreira, se utilizado pelos “sábios e doutos”, contra todo tipo de narrativas sobre fenômenos sobrenaturais. Aludindo de modo explícito aos “sábios e doutos”, Hume está implicitamente colocando seu argumento fora do alcance do homem comum. É que o último considera qualquer uniformidade da natureza, embora temporal e acidental, como válida, já que sua principal característica é a credulidade: “nenhuma fraqueza da natureza humana — escreve Hume — é mais notável e mais universal do que a que denominamos credulidade” (Tratado, I, iii, p. 112). O sábio, pelo contrário, tem plena consciência de que apenas as sequências invariáveis podem ser encaradas como causais e como os fundamentos da crença; por esse motivo ele inicia suas buscas com certa dosagem de ceticismo. Daí que, 1) o sábio admite que sua expectativa acerca de eventos futuros será inteiramente comprovada, apenas quando baseada em “experiência infalível”, e 2) nas situações em que perdura certo grau de probabilidade, isto é, a expectativa é confirmada por alguma, mas não por toda evidência experimental, o sábio deve contrabalançar as experiências opostas e tender para a que se mostrar favorecida por maior número de “experimentos e observações”. [N. do T.]
  5. Nas edições de K a M lê-se: A imaginação humana não acompanha naturalmente sua memória.
  6. A estrutura metodológica exposta resumidamente na nota 69, desta seção, é transferida por Hume para estudar o “raciocínio” baseado no depoimento do “ testemunho Humano”: núcleo transmissor de todos os eventos cotidianos, históricos, maravilhosos e milagrosos. [N. do T.]
  7. Plutarco em Vita Catonis (Hume).
  8. Certamente, nenhum hindu poderia ter experiência do congelamento da água em climas frios, visto que a natureza se apresenta de maneira inteiramente desconhecida para ele, é-lhe, portanto, impossível afirmar a priori o que resultará do fenômeno. É preciso fazer um novo experimento, embora sua consequência seja sempre incerta. Às vezes pode-se conjeturar mediante analogia o que ocorrerá; porém, trata-se ainda de mera conjetura. Deve-se admitir que, no presente exemplo de congelamento, o evento se produz contrariamente às regras da analogia, de tal modo que um hindu não poderia esperá-lo. A ação do frio sobre a água não se processa gradativamente segundo os diferentes graus de frio; ao contrário, quando a água atinge o ponto de congelamento, passa num instante do estado líquido para o sólido. Tal fenômeno pode, todavia, denominar-se extraordinário, e se requer forte testemunho para fazê-lo crível aos povos de clima quente. Apesar disso, não é considerado miraculosoe nem contrário à experiência uniforme do curso da natureza em que todas as circunstâncias são idênticas. Os habitantes de Sumatra sempre têm observado o fluir das águas em seu próprio clima e consideram o congelamento de seus rios como algo prodigioso. Porquanto jamais viram a água em Moscou durante o inverno e não podem, por conseguinte, afirmar razoavelmente quais seriam suas consequências (Hume).
  9. Às vezes, um evento pode não parecer, em si mesmo, contrário às leis da natureza, e sem dúvida, se fosse real, em razão de algumas circunstâncias, poderia denominar-se um milagre, porque, de fato, é contrário a estas leis. Assim, se uma pessoa que pretendesse ter autoridade divina ordenasse a um enfermo que se curasse, a um homem sadio que morresse, às nuvens que derramassem água, aos ventos que ventassem, em uma palavra, se ordenasse vários eventos naturais que obedecessem de imediato à sua ordem: estes, sim, poderiam ser corretamente considerados milagres, porque neste caso são realmente contrários às leis da natureza. Porque, se persiste alguma suspeita de que o evento e a ordem emitida concordaram por acidente, não há nenhum milagre nem transgressão das leis naturais. Mas se se exclui esta suspeita há evidentemente um milagre e uma transgressão destas leis, porque nada pode ser mais contrário à natureza que o fato de que a voz ou ordem de um homem tenha semelhante influência. Um milagre pode definir-se estritamente deste modo: é a transgressão de uma lei da natureza pela volição particular da Divindade ou pela interposição de algum agente invisível. Um milagre pode ser cognoscível ou não pelos homens. Isto não altera sua natureza e essência. Que uma casa ou um navio se elevem no ar é um visível milagre. Que se levante uma pena é um milagre igualmente real, se bem que não tão notável para nós quando não há vento, embora se necessite tão pouca força para sua realização (Hume).
Segunda parte

No raciocínio precedente supusemos que o testemunho sobre o qual se baseia o milagre pode talvez equivaler a uma prova completa e que a falsidade deste testemunho seria um verdadeiro prodígio. Mas é fácil mostrar que temos sido muito generosos em nossa concessão e que jamais houve um evento miraculoso estabelecido [1] sobre uma evidência tão completa.

Porque, em primeiro lugar, não se pode encontrar em toda a história nenhum milagre testificado por número suficiente de homens de tão indubitável bom senso, educação e instrução que nos assegurassem contra todo logro de sua parte; de tão indubitável integridade que os pusesse fora de qualquer suspeita de querer enganar os outros; de tal crédito e de tal reputação aos olhos dos homens que perderiam muito se fossem descobertos em alguma falsidade; e, ao mesmo tempo, testificando fatos realizados de um modo tão público e numa parte do mundo tão famosa que seria inevitável a descoberta da falsidade; todas essas circunstâncias são necessárias para fornecer-nos completa segurança no testemunho humano.

Em segundo lugar, podemos observar na natureza humana um princípio que, se examinado com rigor, diminuirá extremamente a segurança que poderíamos ter acerca de algum gênero de prodígio, devido ao testemunho humano. O princípio que geralmente nos orienta em nossos raciocínios estipula que os objetos dos quais não temos nenhuma experiência se assemelham àqueles de que temos experiência; que o que temos visto e é o mais usual é sempre o mais provável; e que, se houver oposição de argumentos, devemos dar preferência aos que se fundam sobre maior número de experiências passadas. Porquanto, procedendo segundo esta regra, rejeitamos rapidamente um fato raro e inacreditável em escala ordinária; ao avançar mais, contudo, o espírito nem sempre respeita a mesma regra; admitindo apressadamente, ao contrário, algo que se afirma completamente absurdo e miraculoso, em virtude da mesma circunstância que deveria destruir toda a sua autoridade. A paixão da surpresae da admiraçãoresultantes dos milagres é uma emoção agradável que produz uma tendência sensível para que acreditemos nos eventos dos quais derivam. Isto vai tão longe que mesmo aqueles que não podem usufruir imediatamente deste prazer, nem podem acreditar nos eventos miraculosos que lhes comunicam, sentem indubitavelmente prazer em participar de uma satisfação de segunda mão ou por ricochete, e sentem orgulho e deleite a seguir em excitar a admiração dos outros.

Com que avidez se recebem os relatos miraculosos dos viajantes, suas descrições de monstros marinhos e terrestres, suas narrações de aventuras maravilhosas, de homens e costumes estranhos? Entretanto, se o espírito religioso se liga ao amor do maravilhoso, acaba-se todo o bom senso, e o testemunho humano, nestas circunstâncias, perde todas as suas pretensões de autoridade. O beato pode ser um entusiasta e imagina que vê coisas que são irreais; pode estar ciente de que sua narrativa é falsa e assim mesmo persiste nela com as melhores intenções do mundo, a fim de promover uma causa tão sagrada. Ou mesmo, se esta ilusão não ocorre, a vaidade excitada por uma tentação tão forte atua nele mais poderosamente do que nos outros homens em outras circunstâncias; ademais, o interesse pessoal age com igual força. Seus ouvintes podem não ter, e geralmente não têm, argumentos suficientes para debater seu testemunho; renunciam por princípio a todo senso crítico em relação aos assuntos misteriosos e sublimes; ou, se tivessem grande desejo em empregá-lo, a paixão e uma imaginação ardentes perturbariam a regularidade de suas operações. Sua credulidade aumenta sua imprudência e sua imprudência subjuga sua credulidade.

A eloquência, no seu mais alto grau, sobrepuja a razão e a reflexão; mas como ela se dirige inteiramente à fantasia ou aos afetos, cativa os ouvintes condescendentes e subjuga seu entendimento. Felizmente, é raro que alcance esta culminância. Mas o que um Cícero ou um Demóstenes raramente podiam realizar sobre um auditório romano ou ateniense, qualquer capuchinho, qualquer predicador itinerante ou sedentário pode desempenhar em maior grau sobre a maioria dos homens, atingindo semelhantes paixões grosseiras e vulgares.

Os numerosos exemplos de milagres forjados, de profecias e de eventos sobrenaturais que, em todas as épocas, têm sido revelados por testemunhas que se opõem ou que se retratam a si mesmos por seu absurdo, são provas suficientes da forte tendência humana para o extraordinário e o maravilhoso e deveriam razoavelmente engendrar suspeitas contra todos os relatos deste gênero. Pois esta é nossa maneira natural de pensar, inclusive em relação aos eventos mais comuns e mais críveis. Não há, por exemplo, gênero de relato que surja tão facilmente e se propague tão depressa, especialmente no campo e nas aldeias de província, como aqueles que se referem aos casamentos; de tal modo que, se duas pessoas jovens de igual condição social são vistas um par de vezes juntas, toda a vizinhança pensa imediatamente em uni-las. O prazer de contar uma novidade tão interessante, de propagá-la e de ser o primeiro a informá-la, invade a inteligência. E isto é tão conhecido que nenhuma pessoa de bom senso presta atenção a tais relatos, até que os veja confirmados por alguma maior evidência. A maioria dos homens não é levada, devido às paixões e outras causas mais fortes, a crer e a transmitir, com a máxima veemência e segurança, todos os milagres religiosos? [2]

Em terceiro lugar, o fato de que os relatos sobrenaturais proliferam principalmente entre as nações ignorantes e bárbaras constitui forte suspeita contra eles; e se um povo civilizado tem admitido alguns destes relatos, decorre do fato de tê-los recebido de ancestrais ignorantes e bárbaros, que os transmitiram com a sanção e a autoridade invioláveis que sempre acompanham as opiniões recebidas. Quando examinamos as primeiras histórias de todas as nações, sentimo-nos inclinados a imaginar-nos transportados a um novo mundo, onde toda a trama da natureza está desarticulada e todos os elementos efetuam suas operações de uma maneira diferente que fazem na atualidade. As batalhas, as revoluções, a peste, a fome e a morte não são nunca efeitos de causas naturais que experimentamos. Prodígios, presságios, oráculos e punições divinas ocultam completamente os poucos eventos naturais que se misturam a eles. Mas, como o seu número diminui a cada página, à medida que nos aproximamos das épocas das luzes, rapidamente compreendemos que não há nada de misterioso ou de sobrenatural no assunto, mas que tudo decorre da tendência natural dos homens para o maravilhoso, e que, embora esta inclinação às vezes possa ser refreada pelo bom senso e pela instrução, não pode ser jamais extirpada da natureza humana.

É estranho, tende a dizer um leitor judicioso, depois de ler atentamente estes historiadores maravilhosos, que tais eventos prodigiosos não ocorram jamais em nossos dias! Mas creio eu que não há nada de estranho que os homens mintam em todas as épocas. Deveis, certamente, ter encontrado muitos exemplos desta debilidade. Haveis, vós mesmos, ouvido muitos destes relatos maravilhosos que, desprezados por todas as pessoas sábias e sensatas, têm sido finalmente abandonados até pelo homem comum. Podeis estar seguros de que estas famosas mentiras, que se têm difundido e florescido até alcançarem uma altura tão monstruosa, tiveram origens análogas; mas, como foram semeadas num solo mais propício, cresceram até se tomarem prodígios quase tão grandes como os que aqueles narram.

Teve aguda sagacidade o falso profeta [3] Alexandre — atualmente esquecido, embora outrora fosse tão famoso — de estrear suas imposturas na Paflagôma, onde, como nos diz Luciano, o povo era extremamente ignorante e simplório e propenso para absorver mesmo a mais grosseira impostura. Pois as pessoas que habitam regiões distantes e sem possibilidade de se informarem melhor, são também induzidas por esta fraqueza a crer que o assunto é o menos digno de investigação. Recebem assim as histórias acrescidas de cem pormenores. Enquanto os tolos propagam rapidamente a impostura, os sábios e os doutos contentam-se geralmente em mofar-se de seu absurdo, sem se informarem dos fatos particulares, que permitiriam refutá-las claramente. E, assim, o impostor acima mencionado estava capacitado para proceder, começando por seus ignorantes paflagônios e atraindo sectários até mesmo entre os filósofos gregos e os homens da mais eminente e distinta posição em Roma; além disso, conseguiu atrair a atenção do sábio imperador Marco Aurélio, a ponto de fazer-lhe confiar no êxito de uma expedição militar sobre suas profecias enganadoras.

São tão grandes as vantagens de lançar uma impostura entre um povo ignorante que, mesmo quando a fraude é muito grosseira para se impor à generalidade dos homens — embora raramente isto ocorra —, tem mais possibilidade de triunfar em países longínquos do que se seu primeiro teatro tivesse sido numa cidade renomada por suas artes e conhecimentos. Os mais ignorantes e os mais bárbaros destes bárbaros levam o relato para o estrangeiro. Nenhum de seus compatriotas tem extensas vinculações no exterior, reputação ou autoridade suficiente para desmentir e destruir o logro. A inclinação dos homens para o maravilhoso tem plena oportunidade de revelar-se. E, assim, uma história completamente desacreditada no lugar onde nasceu passará por certa a mil milhas de distância. Mas, se Alexandre tivesse fixado residência em Atenas, os filósofos deste célebre centro de saber teriam imediatamente difundido, por todo o Império Romano, sua opinião sobre o assunto; e sua opinião, apoiada por tamanha autoridade demonstrada com todas as forças da razão e da eloquência, teria aberto por completo os olhos dos homens. É verdade que Luciano, ao passar por acaso por Paflagônia, teve oportunidade de realizar estes bons ofícios. Porém, por mais que se deseje, nem sempre ocorre que todo Alexandre se encontre com um Luciano disposto a revelar e desmascarar suas imposturas. [4]

Como quarta razão [5] diminuindo a autoridade dos prodígios, posso acrescentar que não há testemunho favorável a nenhum prodígio, mesmo em relação àqueles que não foram expressamente desmascarados, que não seja contradito por um número infinito de testemunhas, de modo que não apenas o milagre destrói o crédito do testemunho, mas o testemunho destrói-se a si mesmo. Para tornar isto mais compreensível, consideremos que em questões religiosas tudo o que é diferente é contraditório, e que é impossível que as religiões da antiga Roma, da Turquia, do Sião e da China estejam todas estabelecidas em base sólida. Portanto, todo milagre que se pretende que tenha ocorrido em quaisquer dessas religiões — e todas estão repletas de milagres — tem como finalidade direta estabelecer o sistema particular ao qual ele se refere, de modo que tem a mesma força para destruir, embora indiretamente, qualquer outro sistema. Destruindo um sistema, destrói-se igualmente o crédito naqueles milagres sobre os quais estava fundado o sistema, de modo que todos os prodígios de diferentes religiões devem considerar-se como fatos contraditórios, e as evidências destes prodígios, quer fracas quer fortes, como opostas umas às outras. De acordo com este método de raciocínio, quando cremos em algum milagre de Maomé ou de seus sucessores, temos como garantia o testemunho de alguns árabes bárbaros. E, por outro lado, devemos considerar a autoridade de Tito Lívio, de Plutarco, de Tácito e, numa palavra, o testemunho de todos os autores gregos, chineses e católicos romanos que relataram algum específico milagre de sua religião, e devemos considerar seu testemunho, digo eu, do mesmo modo como se houvessem mencionado o milagre maometano, e que o houvessem contradito em termos claros, com a mesma certeza conferida aos milagres que relatam. Este argumento pode parecer demasiado sutil e refinado, mas em realidade não difere do modo de raciocinar de um juiz que supõe que o crédito de duas testemunhas, acusando de um crime a uma outra pessoa, é destruído pelo depoimento contrário de duas testemunhas que afirmam haver visto esta mesma pessoa a duzentas léguas de distância no momento exato em que o crime, diz-se, foi cometido.

Um dos milagres, o mais bem testificado em toda a história profana, é aquele que Tácito conta de Vespasiano, que curou a um cego em Alexandria por meio de sua saliva e a um coxo apenas tocando-lhe com o seu pé. Estes homens, obedecendo a uma ordem do deus Serapis, recorreram ao imperador para essas curas milagrosas. A descrição deste evento pode ser lida neste grande historiador [6], onde cada pormenor parece valorizar o testemunho, e poderia ser desenvolvida à vontade, com toda a força de argumento e eloquência, se alguém se preocupasse atualmente em reforçar a evidência desta superstição desacreditada e idolátrica. A gravidade, a solidez, a idade e a probabilidade de tão grande imperador, que, durante o transcurso de sua vida, conversou familiarmente com seus amigos e cortesãos e não afetou jamais estes ares extraordinários de divindade que assumiam Alexandre e Demétrio. O historiador era escritor da época, célebre por sua franqueza e veracidade e, além disso, dotado talvez do maior e do mais penetrante gênio de toda a Antiguidade, e tão isento de qualquer tendência para a credulidade, sendo, ao contrário, acusado de ateísmo e profanidade; as personagens a cuja autoridade se referia o milagre eram de caráter indiscutível para o julgamento e a veracidade, como muito bem o podemos presumir; havia testemunhas oculares do fato, confirmando seu testemunho mesmo depois que a família dos Flávios foi despojada do império e não podia mais recompensar uma mentira. Utrum que, qui interfuere, nunc quo que memorant, postquam nulium mendacio pretium. [7] E se acrescentarmos o aspecto público dos fatos, como relata a história, parecerá que não se pode supor evidência mais poderosa a favor de uma falsidade tão grosseira e tão palpável.

Há também uma história memorável, contada pelo cardeal de Retz, merecedora de nossa consideração. Quando este político intrigante se refugiou na Espanha para escapar à perseguição de seus inimigos, passando por Saragoça, capital de Aragão, mostraram-lhe na catedral um homem que durante sete anos havia servido de porteiro e que era bem conhecido na cidade por todos os devotos da igreja local. Ele foi visto, por muito tempo, desprovido de uma de suas pernas; contudo, havia recuperado este membro pela fricção de óleo santo sobre o coto; e o cardeal nos assegura que o viu com as duas pernas. Este milagre foi confirmado por todos os cânones da Igreja; todos os habitantes da cidade foram chamados para confirmar o fato; e o cardeal verificou que todos criam, com ardente devoção, inteiramente no milagre. Aqui também o narrador foi contemporâneo do suposto prodígio; era de caráter incrédulo, libertino e também possuidor de grande talento; o milagre era de natureza tão singular que dificilmente poderia admitir contrafação, e as testemunhas muito numerosas, e quase todas espectadoras do fato ao qual deram o seu testemunho. E o que aumenta poderosamente a força dos testemunhos e pode duplicar nossa surpresa nesta conjuntura diz respeito ao fato de que o próprio cardeal, narrando o evento, parece não aferir-lhe nenhum crédito e, por conseguinte, não se pode suspeitar de sua participação nesta fraude sagrada. Considerava justamente que não era necessário, para rejeitar um fato desta natureza, refutar o testemunho com exatidão e revelar sua falsidade através de todas as circunstâncias de velhacaria e credulidade que o produziram. Sabia que, se isto era em geral completamente impossível, por mais perto que se estivesse no tempo e no espaço, era extremamente difícil para quem estivesse imediatamente presente, devido ao fanatismo, à ignorância, à astúcia e à patifaria dos homens. Portanto, concluía, como bom raciocinador, que semelhante testificação levava sua falsidade em sua própria face, e que um milagre apoiado pelo testemunho dos homens era mais propriamente objeto de escárnio que de argumentação.

Certamente, não houve jamais maior número de milagres atribuídos a uma só pessoa do que aqueles, diz-se, que foram realizados recentemente na França sobre o túmulo do abade Paris, o célebre jansenista, cuja santidade serviu para ludibriar por muito tempo o povo. A cura das doenças, a restituição da audição aos surdos e da visão aos cegos, eram, no consenso geral, os efeitos habituais deste santo sepulcro. Mas, o que é mais extraordinário, numerosos milagres foram verificados imediatamente no mesmo lugar, ante juizes de integridade indiscutível, certificados por testemunhas de boa reputação e distinção, numa época instruída e no local de maior destaque atualmente no mundo. Além disso, um relatório dos milagres foi publicado e difundido por toda parte; e os jesuítas, embora formassem uma elite instruída, apoiados pelo magistrado cível e inimigos inveterados das opiniões em favor das quais, diz-se, os milagres tinham sido realizados, jamais foram capazes de refutá-los ou desmascará-los claramente. [8] Onde encontraremos tal número de circunstâncias concordantes na corroboração de um fato? O que podemos opor a semelhante nuvem de testemunhas senão a absoluta impossibilidade da natureza miraculosa dos eventos que relatam? E isto, certamente, aos olhos de todas as pessoas razoáveis, por si só será considerado como uma refutação suficiente.

Será correto concluir, verificando-se que o testemunho humano em certos casos é dotado de força e autoridade extremas, ao relatar, por exemplo, a batalha de Filipos ou de Farsália, que toda classe de testemunho, portanto, deve estar dotada em todos os casos de igual força e autoridade? Suponde que uma das facções, a de César e a de Pompeu, houvesse reivindicado a vitória destas batalhas e que os historiadores de cada partido houvessem atribuído uniformemente as vantagens para o seu próprio lado; como poderiam os homens, a esta distância, decidir entre eles? O contraste é igualmente grande entre os milagres narrados por Heródoto ou Plutarco, e os transmitidos por Mariana, Beda ou qualquer outro historiador monástico.

O sábio concede fé bastante acadêmica a toda narrativa favorável à paixão de quem a relata, quer exaltando seu país, sua família ou a si mesmo, quer, de outro modo, conformando-a com suas inclinações e tendências naturais. Há maior tentação do que assemelhar-se a um missionário, a um profeta, ou a um embaixador do céu? Quem não afrontaria múltiplos perigos e dificuldades para alcançar um caráter tão sublime? Ou se, auxiliada pela vaidade ou por uma ardente imaginação, uma pessoa começa a converter-se a si mesma e penetra seriamente no mundo ilusório, quem terá escrúpulo de utilizar-se de piedosas fraudes, a fim de sustentar causa tão sagrada e meritória?

A menor centelha aqui pode transformar-se na maior chama, já que os materiais estão sempre preparados para se inflamar. Avidum genus auricularum [9] a população alucinada recebe sofregamente, sem exame, tudo o que adula a superstição e promove o maravilhoso.

Quantas histórias desta natureza têm sido, em todas as épocas, descobertas e desmascaradas em seu nascedouro? Quantas mais têm sido famosas por algum tempo e depois tombado no esquecimento e na indiferença? Portanto, quando tais relatos se divulgam, a solução do fenômeno é óbvia: julgamos em conformidade com a observação e a experiência e os explicamos mediante os princípios conhecidos e naturais da credulidade e da ilusão. Contudo, antes de recorrermos a uma solução tão natural, suporemos uma miraculosa violação das mais bem fundamentadas leis naturais?

Não tenho necessidade de mencionar os obstáculos para desmascarar a falsidade de uma história privada ou mesmo pública, na localidade em que, diz-se, ocorreu; e os obstáculos são ainda maiores quando o teatro do evento se acha distanciado de nós, mesmo em se tratando de uma pequena distância. Mesmo no tribunal de justiça, com toda a autoridade, a exatidão e o julgamento que se podem empregar, os juizes encontram-se frequentemente embaraçados para distinguir entre a verdade e a falsidade nas questões mais recentes. Mas se, para resolver o impasse, se confia nos métodos comuns da altercação, debates e boatos, jamais se chega a qualquer conclusão, especialmente se paixões humanas interferem numa ou noutra parte.

Nos primeiros momentos das novas religiões, os sábios e os doutos geralmente estimam que o assunto não é muito importante para merecer sua atenção ou sua consideração. E quando posteriormente querem de boa vontade revelar a farsa, a fim de esclarecer a multidão iludida, o momento oportuno já passou, e os documentos e as testemunhas que poderiam esclarecer o assunto perderam-se para sempre.

Não resta nenhum outro meio para desmascarar a fraude, senão aqueles que podem ser tirados do próprio testemunho dos narradores; e estes, embora sejam sempre suficientes às pessoas judiciosas e instruídas, são geralmente muito sutis para que o homem comum os compreenda.

Em resumo, portanto, parece que jamais qualquer espécie de testemunho a favor de um milagre tem chegado a ser provável, e muitos menos uma prova; e que, mesmo supondo que chegasse a ser uma prova, seria oposta, por outra prova, derivada da própria natureza do fato que tentaria estabelecer. Porquanto apenas a experiência confere autoridade ao testemunho humano, e é ainda a experiência que nos assegura a respeito das leis da natureza. Portanto, quando estas duas espécies de experiências são contrárias, resta-nos o recurso de subtrair uma da outra e aceitar uma opinião, tendendo para um dos dois lados, com a segurança originada do resto. Mas, de acordo com o princípio aqui explicado, este resto, concernente a todas as religiões populares, equivale a uma completa anulação; e, portanto, podemos estabelecer como princípio que nenhum testemunho humano é dotado de suficiente força para provar um milagre e torná-lo a base justa de um determinado sistema religioso.

Peço que se considerem as ressalvas que faço aqui, quando afirmo que nenhum milagre jamais pode ser provado, de modo que seja o fundamento de um sistema religioso. Assevero, por outro lado, que seria possível haver milagres ou violações do curso ordinário da natureza, levando-nos a admitir uma prova derivada do testemunho humano; embora, talvez, seja impossível deparar com semelhante milagre em todos os anais da história. Isto posto, suponde que a totalidade dos autores, abrangendo todos os idiomas, concordassem que a partir de primeiro de janeiro de 1600 houve total obscuridade sobre toda a Terra durante oito dias; que a transmissão deste evento extraordinário seja ainda forte e viva entre os homens; que todos os viajantes regressando de países estrangeiros nos tragam relatos da mesma tradição sem a menor variação ou contradição; desta maneira, é evidente que os filósofos contemporâneos deveriam, em vez de duvidar, considerar o fato como evidente e buscar as causas que poderiam engendrá-lo. Em verdade, a decadência, a corrupção e a dissolução da natureza são eventos supostos prováveis por tantas analogias que qualquer fenômeno tendendo para esta última catástrofe se incorpora ao testemunho humano, especialmente quando este testemunho se acha difundido com bastante uniformidade.

Suponde agora que todos os historiadores que estudam a Inglaterra concordassem com que em primeiro de janeiro de 1600 a rainha Elizabeth morreu; que ela foi vista antes e depois de sua morte pelos médicos e por toda a Corte, aliás, como é de praxe entre as pessoas de sua estirpe; que o Parlamento reconheceu e proclamou seu sucessor; e que, depois de ter estado sepultada durante um mês, apareceu de novo, voltou a ocupar o trono e governou a Inglaterra por mais três anos. Devo confessar: ficaria surpreso pela confluência de tantas circunstâncias bizarras, mas não teria a menor inclinação para crer num acontecimento tão miraculoso. Não duvidaria de sua pretensa morte e de outras circunstâncias públicas que a seguiram; afirmaria apenas que esta morte foi simulada, que não foi e nem possivelmente poderia ser real. Em vão vós me alegareis a dificuldade e quase impossibilidade de ludibriar a opinião mundial em assunto de tal importância; a sabedoria e o sólido julgamento desta célebre rainha; a escassa ou nenhuma vantagem que se poderia obter de um artifício tão pobre; todos estes fatores poderiam surpreender-me; todavia, replicarei: a velhacaria e a leviandade humanas são fenômenos tão normais, que prefiro acreditar que os eventos mais extraordinários tenham aí sua origem, a admitir uma violação tão marcante das leis da natureza.

Mas, se este milagre fosse atribuído a um novo sistema religioso, é preciso considerar que os homens, em todas as épocas, têm sido ludibriados por ridículas histórias deste gênero, que precisamente esta circunstância seria uma prova completa da impostura, e suficiente para levar todos os homens de bom senso, não apenas a rejeitar o fato, mas mesmo a rejeitá-lo sem mais exame. Embora o Ser ao qual o milagre é atribuído seja, neste caso, Onipotente, o fato não se torna, por esta razão, nem um pouco mais provável, visto que nos é impossível apreender os atributos e os atos de um tal Ser, senão através da experiência que temos de suas produções no curso ordinário da natureza. Isto nos subjuga às observações passadas e nos obriga a comparar os exemplos de violação da verdade graças aos testemunhos humanos com os da violação das leis da natureza devido aos milagres, a fim de julgarmos qual das duas é mais plausível e mais provável. Como as violações da verdade são mais comuns nos testemunhos concernentes a qualquer outra espécie de fatos, isto deve diminuir bastante a autoridade do primeiro tipo de testemunho e deve nos levar a formular a resolução geral de não lhes prestar nenhuma atenção, mesmo quando protegidos pelos mais plausíveis pretextos.

Lord Bacon parece ter admitido os mesmos princípios de raciocínio. “Devemos”, diz ele, “fazer uma coleção ou história particular de todos os monstros, de todos os nascimentos e produções prodigiosas; e, numa palavra, de todas as coisas novas, raras e extraordinárias da natureza. Mas isto deve ser feito com o mais severo exame, para não nos afastarmos da verdade. Sobretudo, deve ser considerado suspeito todo relato que depende em algum grau da religião, como os prodígios de Tito Lívio; e, do mesmo modo, toda coisa que se encontra nos escritores de magia natural, de alquimia, ou em outros autores, que parecem ter tido um apetite insaciável para a falsidade e a fábula”. [10]

O método de raciocínio apresentado aqui me agrada bastante, pois, penso eu, poderá servir para confundir os amigos perigosos ou os inimigos disfarçados da religião cristã, que se têm proposto defendê-la mediante os princípios da razão humana. Nossa santíssima religião funda-se na , e não na razão; e um método seguro para fazê-la perigar consiste em submetê-la a uma prova para a qual não está de maneira nenhuma preparada para resistir. Visando a esclarecer esta atitude, examinaremos os milagres descritos nas Escrituras, restringindo-nos — devido à extensão do assunto — aos contidos no Pentateuco; e os examinaremos, de acordo com os princípios destes pretensos cristãos, não como a palavra ou o testemunho de Deus mesmo, porém como realizações humanas de um simples escritor ou historiador. Frisemos de início que o livro nos foi legado por um povo bárbaro e ignorante, escrito numa época em que era ainda mais bárbaro e, segundo toda probabilidade, redigido posteriormente aos fatos relatados, desprovidos assim de qualquer testemunho concordante; assemelhando, ademais, aos relatos fabulosos que cada nação faz de sua origem. As páginas deste livro estão repletas de prodígios e milagres. Descreve-nos o mundo e a natureza humana completamente diferentes do atual; nossa queda deste mundo; a extensão da vida humana atingindo quase mil anos; a destruição do mundo pelo dilúvio; a escolha arbitrária de um povo eleito pelo céu que é, aliás, o mesmo povo descrito pelos seus compatriotas; sua libertação da escravidão mediante os mais surpreendentes e imagináveis prodígios. Desejaria que alguém colocasse sua mão sobre o coração e, depois de séria consideração, declarasse se julga que a falsidade de tal livro, apoiada por semelhante testemunho, seria mais extraordinária e mais miraculosa que todos os milagres que relata; porque isto é, sem dúvida, necessário para que seja aceito, de acordo com as regras da probabilidade estabelecidas anteriormente.

O que temos tido sobre milagres pode ser aplicado, sem qualquer modificação, às profecias; e, na verdade, todas as profecias são verdadeiros milagres e é apenas como tais que se pode admiti-las como provas de uma revelação. Se não estivesse acima da capacidade da natureza humana predizer eventos futuros, seria absurdo usar qualquer profecia como argumento em favor de uma missão ou autoridade divina procedentes do céu. De modo que, finalmente, podemos concluir que a religião cristã não apenas foi acompanhada de milagres em seus primeiros momentos, mas mesmo em nossos dias nenhum homem racional pode nela acreditar sem um milagre. A mera razão é suficiente para convencer-nos da sua veracidade; quem quer que, movido pela fé, lhe dá o seu assentimento, está consciente de um milagre contínuo em sua própria pessoa, que subverte todos os princípios de seu entendimento e o determina a crer nas coisas mais opostas ao costume e à experiência. [11]

  1. Nas edições K a L lê-se: “em qualquer história”.
  2. As edições de K e N apresentam este parágrafo como nota.
  3. Nas edições de K a N lê-se astucioso impostor.
  4. Sem dúvida, pode-se objetar aqui que procedo temerariamente e formo minhas opiniões a propósito de Alexandre apenas pelo relato do assunto feito por Luciano, seu declarado inimigo. Certamente, seria desejável que tivessem sido conservados alguns dos relatos publicados por seus discípulos e cúmplices. A opinião e o contraste que existem sobre o caráter e a conduta de um mesmo homem, quando descritos por um amigo ou inimigo, são tão grandes, mesmo na vida cotidiana e muito mais ainda nestas questões religiosas, como entre dois homens de fama mundial, por exemplo, Alexandre e São Paulo. Veja-se uma carta a Gilbert West, Esq., acerca da “Conversão e apostolado de São Paulo” (Hume).
  5. Parece-nos que os argumentos de Hume contra a viabilidade dos milagres mostraram: 1) que é entre as nações ignorantes e bárbaras que a ocorrência de milagres é mais comum e abundante, 2) que as paixões da surpresae da admiraçãosão tendências universais da natureza humana e quando ligadas ao sentimento religioso impelem os homens a uma conduta descontrolada, 3) que cada milagre tem a finalidade específica de estabelecer um sistema religioso e, como em religião tudo o que é diferente é contraditório, os milagres de uma religião são evidências contra os milagres das outras, e 4) que o milagre importa na violentação do curso normal da natureza e, como apenas a experiência confere autoridade ao testemunho humano e segurança acerca das leis da natureza, nenhum testemunho humano se nivela a uma prova, ou atinge o grau de provável. [N. do T.]
  6. Na edição L Hume anota: Hist., livro 4, cap. 8. Na edição N ele anota: Hist., livro 5, cap. 8. Em verdade, a passagem ocorre em Histórias, livro IV, cap. 81. Suetônio apresenta quase o mesmo relato na Vida de Vespasiano (Hume).
  7. “Aqueles que estavam presentes continuam a mencionar os dois episódios, quando já deixou de ser compensatório propagar uma mentira.” [Trad. por Anoar Aiex] .
  8. Este livro foi escrito por M. Montgeron, conselheiro ou juiz no Parlamento de Paris, homem de importância e reputação, que também foi um mártir de sua causa e que está — diz-se — em alguma prisão devido ao seu livro. Há outra obra em três volumes, denominada Recueil des miracles de l’abbé Pâris, que revela vários destes milagres e é precedida por um prefácio muito bem escrito. Sem dúvida, em todo o livro se faz uma ridícula comparação entre os milagres de nosso Salvador e os do abade, na qual se afirma que a evidência dos últimos é igual à dos primeiros: como se o testemunho dos homens pudesse ser comparado com o do próprio Deus, que guiou a pena destes inspirados escritores. Em verdade, se estes escritores fossem apenas considerados como testemunhos humanos, o autor francês é bastante moderado em sua comparação, visto que poderia pretender, com alguma aparente razão, que os milagres jansenistas superam os outros em evidência e autoridade. Os relatos que seguem foram tirados de documentos autênticos, que aparecem no livro já mencionado.

    Muitos dos milagres do abade Paris foram comprovados imediatamente por testemunho ante a oficialidade ou corte episcopal de Paris, sob o controle do cardeal Noailles, cuja reputação de integridade e talento jamais foi posta em dúvida. Inclusive por seus inimigos.

    Seu sucessor no arcebispado era inimigo dos jansenistas e por esta razão foi promovido para a diocese pela Corte. Apesar de vinte e dois reitores ou curés de Paris, com grande seriedade, terem-no pressionado para examinar estes milagres que, afirmavam, são conhecidos de todos e indiscutivelmente certos, o cardeal sabiamente se absteve de examiná-los.

    O partido molinista havia tentado desacreditar estes milagres num caso: o de Mademoiselie Le Franc. Mas, além de que seus procedimentos foram, em vários pontos, os mais irregulares, especialmente por citar apenas alguns dos testemunhos jansenistas, aos quais subornaram — além disso, digo, imediatamente se viram pressionados por uma nuvem de novos testemunhos (mais ou menos cento e vinte), em sua maioria pessoas de crédito e destaque de Paris que juraram pela procedência do milagre. E isto foi acompanhado por uma solenidade e séria apelação ao Parlamento. Mas o Parlamento foi proibido de imiscuir-se neste assunto. Finalmente se observou que, quando os homens estão inflamados pelo ardor e entusiasmo, não há grau de testemunho humano tão poderoso que nãopossa ser obtido a favor do maior absurdo. E aqueles que fossem tão ingênuos que examinassem o assunto por este meio e buscassem defeitos particulares no testemunho, podem estar quase certos que serão enganados. Devia ser uma pobre impostura, certamente, que não podia prevalecer nesta disputa.

    Todos os que estiveram na França naquela época ouviram falar na reputação de M. Heraut, o Lieutenant de Police, cujo zelo, perspicácia, atividade e elevada inteligência ocasionaram grande admiração. Este magistrado, que pela natureza de seu posto é quase absoluto, estava investido de plenos poderes a fim de suprimir ou desacreditar esses milagres e frequentemente detinha e examinava os testemunhos e as pessoas que tinham relação com os milagres, mas jamais pôde chegar a uma conclusão satisfatória contra eles.

    No episódio de Mademoiseile Thibaut, enviou o célebre De Sylva para que a examinasse. Sua informação é muito curiosa. O médico declara que é impossível que ela tenha estado tão enferma como afirmam os testemunhos, porque, se tivesse estado, não teria podido melhorar tão depressa e gozar de tão perfeita saúde. Como homem de bom senso, raciocinou segundo as causas naturais, mas o partido que lhe opunha afirmou que tudo era miraculoso e que o informe do médico era a melhor prova disso.

    Os molinistas se encontravam num triste dilema. Não se atreviam a afirmar a completa insuficiência do testemunho humano como prova dos milagres. E, de outro lado, eram obrigados a reconhecer que esses milagres tinham sido realizados pelo Diabo e por feiticeiras, embora lhes dissessem que os judeus da Antiguidade já haviam recorrido a este recurso.

    Nenhum jansenista teve dificuldade para explicar a cessação dos milagres quando o cemitério foi fechado por decreto real. O que produzia estes efeitos extraordinários era o mero contato com o túmulo [do abade] e, como ninguém podia aproximar-se do túmulo, não se podiam esperar mais tais efeitos. É verdade que Deus poderia derrubar os muros a qualquer momento, mas Ele é dono de suas próprias graças e obras e não nos cabe explicá-las. Ele não derrubou os muros de todas as cidades, como os de Jericó, ao som das trombetas, nem abriu a prisão dos apóstolos, como fez com a de São Paulo?

    Nada mais nem menos que o duque de Chatillon, duque e par da França, da mais ilustre família e estirpe, dá o testemunho de uma milagrosa cura realizada num de seus servos, que havia vivido vários anos em sua casa com uma palpável e visível enfermidade.

    Concluirei observando que nenhum clero é mais célebre pelo rigor da vida e dos costumes que o clero secular da França, particularmente os reitores ou curés de Paris que testemunham estas imposturas.

    A instrução, o engenho e probidade destes cavalheiros e a autoridade das freiras de Port-Royal os fizeram famosos em toda a Europa. Sem dúvida, todos testemunham o milagre que se produziu na sobrinha do célebre Pascal, cujo talento e vida devota são bem conhecidos. O famoso Racine relata este milagre em sua celebrada História de Port-Royal e o defende com todas as provas fornecidas por uma multidão de freiras, sacerdotes, médicos e homens do mundo, todos de indubitável reputação. Alguns homens de letras, especialmente o bispo de Tournay, creram que este milagre era tão seguro que o usaram para refutar os ateus e os livre-pensadores. A rainha da França, que tinha grandes prevenções contra Port-Royal, enviou seu próprio médico para examinar o milagre, e o médico voltou completamente convertido. Em uma palavra, a cura sobrenatural era tão incontestável que, durante algum tempo, salvou o mosteiro da ruína a que estava ameaçado pelos jesuítas. Se houvesse sido um logro, seguramente teria sido descoberto por tão sagazes e poderosos adversários, e deveriam apressar a ruína de quem o forjou. Nossos teólogos, que podem construir um castelo maravilhoso com materiais tão desprezíveis, que prodigioso edifício poderiam levantar com estas e muitas outras circunstâncias que não mencionei! Quantas vezes teriam ressoado em nossos ouvidos os nomes de Pascal, de Racine, de Arnaud e de Nicole? Mas, se são sábios, seria melhor que adotassem o milagre como mil vezes mais valioso que todo o resto da coleção. Além disso, pode servir-lhes muito mais para sua finalidade. Porque esse milagre se realizou realmente pelo contato de um autêntico espinho sagrado dos sagrados espinhos que compunham a sagrada coroa, a qual etc. (Hume).
  9. Lucrécio (Hume).
  10. Novum Organum, Lib. II, aph. 29 (Hume).
  11. A ironia que perpassa nesta passagem tem levantado as mais violentas críticas contra Hume. Em grande parte é citada para exemplificar a maneira zombeteira e irresponsável com que ele discute os mais sagrados tópicos. Smith procura, no entanto, justificar a atitude de Hume, interpretando o texto citado em sua perspectiva histórica. Mostra que, na época da Ilustração, as igrejas Reformadas entendiam que a fé, ou mesmo um estudo compreensivo das Escrituras, era impossível sem o auxilio da graça, conferida pela Divindade, e que a fé operava nos homens de modo puramente miraculoso. Foi deste modelo que Hume decalcou, segundo Smith, a sua conclusão. (N. K. Smith, em sua definitiva edição dos Dialogues Concerning Natural Religion, de Hume, Liberal Arts, 1947, p. 47.) [N. do T.]

Seção XI

Da providência particular do estado futuro [1]

Há pouco tempo, conversando com um amigo que preza os paradoxos céticos, foram aventados numerosos princípios com os quais não posso de nenhuma maneira concordar; todavia, como esses princípios são curiosos e possuem certas relações com a cadeia de raciocínios desenvolvida ao longo desta investigação, os transcreverei de memória, tão precisamente quanto possível, para submetê-los ao julgamento do leitor.

Nossa conversa iniciou-se ao mostrar minha admiração pela singular sorte da filosofia que — necessitando de irrestrita liberdade acima de todos outros privilégios e sobretudo florescendo graças à livre oposição de opiniões e argumentos — nasceu numa época e num pais de liberdade e tolerância, e jamais foi oprimida, mesmo em seus mais extravagantes princípios, por quaisquer credos, ideias religiosas vigentes ou leis penais. Pois, excetuando o desterro de Protágoras e a morte de Sócrates — este último evento se deveu, em parte, a outros motivos — raramente divisamos na Antiguidade exemplos desta inveja intolerante que tanto infesta a presente época. Epicuro viveu em Atenas até uma idade avançada, inteiramente em paz e tranquilidade; os epicureus [2] eram até admitidos para receberem investidura sacerdotal e oficiarem no altar os ritos mais sagrados da religião vigente. E o estímulo público [3] de pensões e salários era igualmente dispensado, pelo mais sábio de todos os imperadores romanos [4], aos mestres de todas as seitas filosóficas. Concebemos facilmente que tal gênero de tratamento conferido à filosofia nascente era necessário, se ponderarmos que mesmo atualmente, quando podemos supô-la mais forte e robusta, tolera com muita dificuldade a inclemência das estações e os ventos ásperos da calúnia e da perseguição que sopram sobre ela.

Admirais — disse meu amigo — como a singular boa sorte da filosofia parece resultar da ordem natural das coisas e ser inevitável em toda época e nação. Este obstinado fanatismo, que deplorais como tão fatal à filosofia, é na realidade seu descendente, o qual, depois de aliar-se à superstição e apartar-se completamente do interesse materno, transformou-se em seu mais inveterado inimigo e perseguidor. Os dogmas especulativos religiosos, presentemente motivos de encarniçados debates, não podiam, indubitavelmente, ser admitidos ou concebidos nos períodos iniciais do mundo, em que o ser humano — totalmente ignorante — formava uma ideia da religião mais adequada à sua débil compreensão, construindo assim seus dogmas sagrados mais em função de sua crença tradicional do que de sua argumentação ou discussão. Portanto, tendo passado o primeiro alarme engendrado pelos novos paradoxos e princípios filosóficos, parece que estes mestres passaram a viver, mesmo na Antiguidade, em boa harmonia com a superstição existente, comprazendo-se em dividir a humanidade em duas partes: de um lado, os doutos e sábios e, de outro lado, o homem comum e o ignorante.

Parece todavia — disse eu — que excluís completamente a política desta cogitação e não supondes jamais que um sábio magistrado pode com razão sentir-se zeloso de certas doutrinas filosóficas, como a de Epicuro, por exemplo, que, negando a existência de Deus e, por conseguinte, a providência e o estado futuro, parece afrouxar de modo considerável os laços de moralidade e é por esta razão, supõe-se, perniciosa à paz da sociedade civil.

Eu sei — retorquiu ele — que de fato estas perseguições nunca procederam, em época alguma, da serena razão ou da constatação das perniciosas consequências da filosofia, porém nascem inteiramente da paixão e do preconceito. Mas o que sucederia se eu fosse mais longe e afirmasse que, se Epicuro tivesse sido acusado diante de seu povo por um dos sicofantas ou delatores daqueles tempos, teria podido facilmente defender sua causa e provar que seus princípios filosóficos eram tão saudáveis como o de seus adversários, os quais se esforçavam com tal zelo para expô-lo ao ódio e à intolerância populares?

Desejo — respondi — que utilizeis vossa eloquência sobre um tema tão extraordinário e façais um discurso a favor de Epicuro que possa satisfazer, não à populaça de Atenas, se quereis admitir que nessa antiga e ilustrada cidade ela existia, mas ao setor mais filosófico do auditório, pois, como se supõe, seria capaz de compreender vossos argumentos.

O assunto não seria difícil nestas condições, replicou ele; e se vós quiserdes suporei por ora que sou Epicuro e faríeis as vezes do povo ateniense e contra vós pronunciarei uma tal arenga que encherá toda a urna de feijões brancos e não restará um único feijão preto para satisfazer a malícia de meus adversários.

Muito bem; peço-vos que procedais segundo estas conjeturas.

Aqui estou, ó atenienses! para justificar em vossa assembleia o que tenho sustentado em minha escola, pois encontro-me acusado por adversários furiosos em lugar de inquiridores que raciocinam com calma e desapaixonadamente. Vossas deliberações, que, de direito, devem orientar-se para as questões do bem público e para o interesse da comunidade, estão desviadas para as indagações da filosofia especulativa; e estas magníficas investigações, talvez estéreis, tomam o lugar de vossas ocupações mais familiares, apesar de mais úteis. Mas, na medida em que isto depender de mim, opor-me-ei a este abuso. Não discutiremos aqui acerca da origem e governo dos mundos. Apenas indagaremos em que medida tais questões dizem respeito ao interesse público. E, se puder persuadir-vos que elas são inteiramente indiferentes à paz da sociedade e à segurança do governo, espero que imediatamente nos enviareis de volta às nossas escolas, onde examinaremos com calma a questão mais sublime, mas ao mesmo tempo mais especulativa de toda a filosofia.

Os filósofos religiosos, descontentes com a tradição de vossos ancestrais e com a doutrina de vossos padres — com as quais aquiesço de boa vontade — são atraídos por imprudente curiosidade, quando tentam verificar em que medida podem estabelecer a religião sobre princípios racionais; estimulando assim, em vez de satisfazer, as dúvidas originadas naturalmente de uma investigação diligente e penetrante. Pintam, em magnificentes cores, a ordem, a beleza e a sábia organização do universo, indagam, a seguir, se espetáculo tão glorioso da inteligência poderia derivar do concurso fortuito de átomos ou se o acaso poderia produzir o que o maior gênio jamais conseguiu admirar suficientemente. Não examinarei a exatidão deste argumento. Concordarei que é tão sólido como meus adversários e acusadores possam desejar. Contudo, será suficiente que eu possa provar, partindo exatamente deste raciocínio, que a questão é inteiramente especulativa e que, quando em minhas investigações filosóficas nego a providência e o estado futuro, não solapo as bases da sociedade, porém formulo princípios que meus próprios adversários, segundo suas próprias doutrinas e se raciocinam consequentemente, devem reconhecer como sólidos e satisfatórios.

Portanto, vós que sois meus acusadores haveis reconhecido que o principal ou o único argumento em favor da existência de Deus — e jamais a coloquei em dúvida — é derivado da ordem da natureza, na qual aparecem tais marcas de inteligência e de desígnio [5] que considerais uma extravagância indicar como sua causa, quer o acaso, quer uma força material cega e descontrolada. Admitis que este é um argumento que vai dos efeitos às causas. Da ordem da obra inferis o que deve haver estado projetado e preconcebido no obreiro. Se não podeis vislumbrar este aspecto, concedeis que vossa conclusão é falha; e não pretendeis formular uma conclusão que extravase os fenômenos naturais que a justifiquem. Estas são vossas concessões. Espero que assinalareis as consequências.

Quando inferimos alguma causa particular a partir de algum efeito, devemos proporcionar uma com o outro, e não devemos jamais atribuir à causa outras qualidades senão as estritamente suficientes para produzirem o efeito. A elevação, sobre um dos pratos da balança, de um corpo de dez onças, pode servir de prova que o contrapeso ultrapassa dez onças, porém não pode jamais fornecer uma razão que ultrapassa cem onças. Se a causa, atribuída a um efeito, não é suficiente para produzi-lo, devemos rejeitar a causa ou acrescentar-lhe qualidades que a proporcionarão rigorosamente ao efeito. Mas se lhe atribuirmos outras qualidades ou afirmarmos que é capaz de produzir outros efeitos, somos desviados por conjeturas e suporemos arbitrariamente — sem base racional ou autoridade — a existência de qualidades e energias.

Idêntica regra é aplicada quando a causa visada é uma matéria inconsciente e bruta ou um ser racional e inteligente. Pois, concordando-se que a causa somente se revela pelo efeito, jamais devemos atribuir-lhe outras qualidades senão as necessárias para produzirem o efeito. Não podemos, mediante qualquer regra do raciocínio correto, remontar da causa e inferir outros efeitos dela, exceto aqueles pelos quais a apreendemos. Ninguém, ao observar apenas um quadro de Zêuxis, poderia supor que ele era também escultor e arquiteto, e era tão bom artífice em mármore e pedra como em cores. Apenas podemos certificar-nos de que o artista possuía bom gosto e talento, ao revelá-los nas obras que se apresentam à nossa visão. A causa deve ser proporcional ao efeito; e se a proporcionamos com rigor e exatidão, jamais vislumbraremos na causa qualidades designando outras coisas ou propiciando inferência sobre qualquer outro projeto ou realização. Pois as referidas qualidades devem extravasar o que é realmente necessário para produzir o efeito que examinamos.

Concedendo, portanto, que os deuses são os autores da existência ou da ordem do universo, segue-se que possuem grau necessário de poder, de inteligência e de benevolência que aparecem em seu artesanato; todavia, nada além disso jamais pode ser provado, a menos que solicitemos o auxílio do exagero e da lisonja para suprirmos os defeitos do argumento e do raciocínio. Na medida em que aparecem os traços de alguns atributos, podemos concluir que esses atributos existem. A suposição de atributos adicionais é mera hipótese, e ainda mais hipotética a suposição de que em regiões distantes do espaço ou de períodos de tempo tem havido, ou haverá, uma exibição magnífica destes atributos e um esquema de administração mais adequado a estas virtudes imaginárias. Nunca poderemos ascender do universo, o efeito, a Júpiter, a causa; e a seguir descender para inferir um novo efeito desta causa; como se os efeitos presentes, por si mesmos, não fossem inteiramente dignos dos atributos gloriosos que designamos para esta divindade. Já que o conhecimento da causa deriva unicamente do efeito, ambos devem estar exatamente ajustados entre si, e nenhum dos dois jamais pode referir-se a outra coisa ou ser o fundamento de uma nova inferência e conclusão.

Encontrais certos fenômenos na natureza. Procurais uma causa ou um autor. Imaginais que vós as haveis encontrado. Depois ficais tão fascinados desse produto de vosso cérebro, de modo que imaginais que é impossível que ele não produza algo mais grandioso e mais perfeito do que o estado atual das coisas, tão repleto de mal e desordem. Olvidais que esta inteligência e benevolência supremas são inteiramente imaginárias ou, pelo menos, sem nenhum fundamento racional, e que não tendes nenhuma base para atribuir-lhe outras qualidades senão aquelas que vedes efetivamente em exercício e reveladas em suas produções. Fazei, pois, ó filósofos! que vossos deuses estejam em conformidade com as aparências presentes da natureza e não ouseis alterar estas aparências com suposições arbitrárias para adequá-las aos atributos que vós destinais tão carinhosamente aos vossos deuses.

Quando os sacerdotes e os poetas, apoiados por vossa autoridade, ó atenienses! falam da idade de ouro ou de prata que precedeu o estado presente de vício e de miséria, escuto-os com atenção e reverência. Mas, quando os filósofos, que pretendem negligenciar a autoridade e cultivar a razão, pronunciam o mesmo discurso, reconheço que não lhes concedo a mesma dócil submissão nem a mesma devota deferência. Pergunto-lhes: quem os conduziu a regiões celestiais, quem os admitiu no concilio dos deuses, quem lhes desvendou o livro do destino para que possam afirmar, ousadamente, que suas divindades têm executado ou executarão um desígnio qualquer que ultrapassa o que efetivamente tem aparecido? Se me dizem que os filósofos têm subido por degraus [6] ou por uma ascensão gradual da razão, e tirado inferências dos efeitos às causas, reitero que eles têm auxiliado a ascensão [7] da razão com as asas da imaginação. Ao contrário, os filósofos não teriam podido modificar assim seu modo de inferir e arguir das causas aos efeitos, pois, quando presumem que uma produção mais perfeita que o mundo presente seria mais adequada a seres tão perfeitos como os deuses, esquecem que não têm outra razão para atribuir a estes seres celestiais uma perfeição ou um atributo, senão o que se pode encontrar no mundo presente.

Eis como se explica a origem de toda atividade estéril, visando justificar o aparecimento do mal na natureza e salvaguardar a honra dos deuses, embora devamos reconhecer a realidade deste mal e desta desordem que proliferam no mundo. Dizem-nos que as qualidades obstinadas e indóceis da matéria, a observância das leis gerais ou ainda alguma outra razão semelhante constituíram a única causa controladora de poder e benevolência de Júpiter, obrigando-o a criar a humanidade e a todas as criaturas sensíveis tão imperfeitas e infelizes. Parece, pois, que de antemão se admitem estes atributos em sua mais ampla acepção. E sobre esta suposição, concordo, podem-se sem dúvida admitir tais conjeturas como soluções plausíveis dos fenômenos do mal. Mas, pergunto ainda: por que tomar por certos estes atributos, por que atribuir à causa outras qualidades que aquelas que aparecem atualmente no efeito? Por que torturais vosso cérebro para justificar o curso da natureza sobre suposições que, pelo que sabeis, podem ser completamente imaginárias e das quais não se podem encontrar sinais no curso da natureza?

Portanto, as hipóteses religiosas apenas devem ser consideradas como um método particular explicativo dos fenômenos visíveis do universo; mas ninguém que raciocine corretamente jamais ousará fazer inferências, partindo de um só fato, e alterar ou agregar em qualquer aspecto os fenômenos. Se pensais que as aparências das coisas provam tais causas, então vos é permitido tirar uma inferência acerca da existência destas causas. Em tais assuntos complicados e sublimes, cada um deveria tomar a liberdade de fazer conjeturas e argumentações. Mas aqui deveis deter-vos. Se retrocedeis e, partindo das causas que haveis inferido, concluirdes que algum fato existe ou existirá no curso da natureza e que pode servir para mostrar mais pormenorizadamente atributos particulares, devo advertir-vos que vos haveis afastado do método de raciocínio ligado ao presente tema e haveis certamente acrescentado aos atributos da causa alguma coisa a mais do que aparece no efeito; de outro modo não tereis jamais podido acrescentar qualquer coisa ao efeito para fazê-lo mais digno de sua causa, a menos que vos faltasse toda retidão e bom senso.

Onde está, pois, o aspecto odioso desta doutrina que ensino em minha escola, ou melhor dizendo, que examino em meus jardins? Ou então, encontrais em toda esta questão algo dizendo respeito, em qualquer grau, à segurança da boa moral ou à paz e à ordem social?

Eu nego a providência, dizeis, e nego que um governo supremo do mundo orienta o curso dos eventos punindo com desonra e desespero aos pecadores e recompensando os virtuosos com a honra e o êxito em todos os seus empreendimentos. Mas, certamente, não nego o próprio curso dos eventos, que está aberto à investigação e ao exame de todos. Reconheço que, na ordem atual das coisas, a virtude é acompanhada de maior paz de espírito que o vício e encontra uma recepção mais favorável pela sociedade. Tenho consciência de que, segundo a experiência passada da humanidade, a amizade é a principal alegria da vida humana e a moderação, a única fonte de tranquilidade e felicidade. Não hesito jamais entre uma existência virtuosa e uma existência viciada, mas tenho consciência de que, para um espírito bem-intencionado, todas as vantagens estão do primeiro lado. Que podeis dizer a mais, admitindo todas as vossas suposições e raciocínios? Dizei-me, certamente, que esta disposição das coisas procede da inteligência e do desígnio. Mas, mesmo conhecendo sua origem, a disposição em si, da qual depende nossa felicidade ou infelicidade, isto é, nosso comportamento na vida, permanece a mesma. Tenho sempre a possibilidade, como também vós, de regular minha conduta a partir de minha experiência dos eventos passados. E se vós afirmásseis que se se admite a realidade de uma providência divina e de uma justiça distributiva suprema no universo, dever-se-ia esperar alguma recompensa mais particular do bem e a punição do mal, além do curso ordinário dos eventos; encontro aqui a mesma falácia que eu tinha antes tentado captar. Persistis em imaginar que, se aceitarmos essa existência divina, pela qual combateis tão arduamente, podeis seguramente inferir suas consequências e acrescentar algo à ordem experimentada da natureza, arguindo a partir dos atributos que designais aos vossos deuses. Não pareceis recordar-vos que todos os vossos raciocínios acerca deste tema somente podem ser tirados passando dos efeitos às causas, e que todo argumento deduzido das causas aos efeitos deve ser necessariamente um grosseiro sofisma, visto que vos é impossível conhecer algo da causa, salvo o que haveis precedentemente, não por inferência, descoberto inteiramente no efeito.

Mas o que deve pensar um filósofo acerca dos que raciocinam vãmente, os quais, em lugar de considerarem o aspecto atual das coisas como o único objeto de sua contemplação invertem todo o curso da natureza, fazendo desta vida mera passagem para outra existência; um pórtico que conduz a um edifício maior e consideravelmente diferente; um prólogo que apenas serve para introduzir a comédia e dar-lhe maior graça e dignidade? De onde, pensais, que estes filósofos podem derivar sua ideia dos deuses? Certamente, de sua própria invenção e de sua imaginação. Pois, se derivassem a ideia dos fenômenos presentes, ela não revelaria algo adicional, mas deveria estar exatamente adaptada a eles. Admitimos de bom grado que a divindade possivelmente seja dotada de atributos que jamais vimos em exercício; que é governada por princípios de ação que não podemos descobrir se são realizados. Mas trata-se ainda de pura possibilidade e hipótese. Não podemos racionalmente inferir que ela possui atributos ou princípios de ação, a não ser quando os temos visto em exercício e realizados.

Há sinais de uma justiça distributiva no mundo? Se contestais afirmativamente, concluo que já que a justiça se exerce aqui, aqui ela é realizada. Se replicais negativamente, concluo então que não tendes nenhuma razão para atribuir justiça, no sentido em que a entendemos, aos deuses. Se tomais uma posição intermediária entre a afirmativa e a negativa, dizendo que a justiça dos deuses no momento se exerce em parte, mas não em toda a sua extensão, respondo que não tendes nenhuma razão para conceder-lhe uma extensão particular, mas apenas até onde a vedes, no presente, exercer-se no presente.

Assim, ó atenienses! restrinjo a discussão a um breve debate com meus adversários. O curso da natureza está aberto tanto à minha contemplação como à deles. A série de eventos experimentais é o grande critério pelo qual todos nós regulamos nossa conduta. Não podemos recorrer a nenhuma outra coisa, nem no campo de batalha nem no senado. Não se deveria jamais ouvir falar de outra coisa na escola ou em nossas reflexões solitárias. Em vão, nosso entendimento limitado poderia romper estas barreiras muito estreitas para nossa imaginação caprichosa. Ao argumentar a partir do curso da natureza e ao inferir uma causa particular inteligente, que no princípio pôs ordem no mundo e ainda a conserva, aceitamos um princípio que é ao mesmo tempo incerto e inútil. É incerto, porque o tema está inteiramente fora do alcance da experiência humana. É inútil, porque nosso conhecimento desta causa é inteiramente derivado do curso da natureza e, por conseguinte, não podemos jamais, segundo as regras do raciocínio correto, remontar da causa para uma nova inferência ou fazer adições ao curso ordinário experimentado da natureza, para estabelecermos novos princípios de conduta e de comportamento.

Observo — disse eu, vendo que ele havia terminado sua arenga — que não desprezais o artifício dos demagogos da Antiguidade, e como haveis querido fazer-me representar o povo, vos insinuastes em meu favor, aceitando os princípios pelos quais, vós o sabeis, tenho sempre expressado uma particular inclinação. Mas, se aceitais fazer da experiência — como penso, certamente, deveis fazê-lo — o único critério de nosso juízo acerca desta, e de todas as questões de fato, não duvido que seja possível, a partir exatamente desta mesma experiência, refutar este raciocínio que haveis posto na boca de Epicuro. [8] Se haveis visto, por exemplo, um edifício terminado pela metade, rodeado de um amontoado de tijolos, de pedras e de argamassa e de todos os instrumentos de alvenaria, não podereis inferirdo efeito que se trata de uma obra devida a um plano e a uma invenção? E não podereis, a partir desta causa inferida, voltar a inferir novas adições ao efeito e concluireis que o edifício estará logo terminado e receberá todos os melhoramentos adicionais que a arte poderá conferir-lhe? Se haveis visto à beira-mar a marca de um pé humano, concluireis que um homem passou por este caminho e que ele também tinha deixado as marcas de seu outro pé, embora elas tenham sido apagadas pelo movimento da areia ou pela inundação da água. Por que recusais então admitir o mesmo método de raciocínio em relação à ordem da natureza? Considerais o mundo e a vida presentes unicamente como um edifício imperfeito, do qual podeis inferir uma inteligência superior, e arguindo a partir desta inteligência superior que não pode deixar nada imperfeito por que não podeis inferir um esquema ou plano mais acabado, que receberá sua conclusão em algum ponto distante do espaço e do tempo? Não são estes métodos de raciocínio exatamente similares? E sob que pretexto podeis, ao mesmo tempo, aceitar um e rejeitar o outro?

A infinita diferença dos temas — respondeu ele — é fundamento suficiente para esta diferença em minhas conclusões. [9] Nas obras que foram inventadas e fabricadas pelo homem, é lícito passar do efeito à causa e, voltando da causa, formar novas inferências concernentes ao efeito, averiguando as alterações que provavelmente tem sofrido ou que ainda pode sofrer. Mas qual é o fundamento deste modo de raciocinar? Evidentemente este: o homem é um ser que conhecemos pela experiência: seus motivos e seus desígnios nos são familiares; seus projetos e suas inclinações têm certa conexão e certa coerência, segundo as leis que a natureza tem estabelecido para governo de uma tal criatura. Portanto, quando vemos que uma obra procede da habilidade e do trabalho humano, e como por outro lado conhecemos a natureza deste ser animado, podemos tirar cem inferências acerca do que se pode esperar dele; estas inferências estarão todas fundadas na observação e na experiência. Mas se conhecêssemos o homem apenas por uma única obra que examinamos, ser-nos-ia impossível arguir desta maneira, pois nosso conhecimento de todas as qualidades que lhe atribuímos é, neste caso, derivado desta produção; é impossível que estas qualidades possam levar a qualquer coisa a mais, ou que elas sejam a base de uma nova inferência. A marca de um pé na areia pode apenas provar, quando se considera separadamente, que havia uma figura semelhante a ela, graças à qual ela foi produzida; mas a marca de um pé humano evidencia igualmente, partindo de nossa outra experiência, que havia provavelmente outro pé que também deixou sua impressão, embora tivesse sido apagada pelo tempo ou por outros acidentes. Aqui subimos do efeito para a causa; depois descemos da causa, inferimos modificações no efeito; mas não continuamos aqui na mesma cadeia simples de raciocínio. Compreendemos neste caso cem outras experiências e observações sobre a forma usuale os membros desta espécie de ser animado; sem as quais este método de argumentar deveria considerar-se falaz e sofístico.

O caso é diferente para os nossos raciocínios acerca das obras da natureza. Apenas conhecemos Deus por suas produções; é um Ser único no universo, que não é compreendido sob nenhuma espécie ou gênero, de cujos atributos ou qualidades experimentados podemos, por analogia, inferir em Deus um atributo ou uma qualidade. Como o universo manifesta sabedoria e bondade, podemos inferir sabedoria e bondade. Como ele mostra um grau particular destas perfeições, inferimos um grau particular delas precisamente adaptadas aos efeitos que examinamos. Mas não estamos jamais autorizados a inferir ou supor, por quaisquer regras do raciocínio correto, outros atributos ou outros graus do mesmo atributo. Ora, sem uma tal liberdade em nossas suposições, é-nos impossível argumentar a partir da causa e inferir qualquer modificação no efeito além disto que caiu imediatamente sob nossa observação. Um bem maior produzido por este Ser deve provar ainda um grau mais alto de bondade; uma distribuição mais imparcial de recompensas e castigos deve proceder de uma maior relação à justiça e à equidade. Toda suposta adição às obras da natureza acrescenta-se aos atributos do Autor da natureza; e, por conseguinte, como não está em nada apoiada por uma razão ou um argumento, não se pode jamais admiti-la, senão como pura conjetura e hipótese. [10]

A principal fonte de equívocos neste assunto e da ilimitada liberdade de conjeturar que toleramos decorre do fato de que tacitamente nos colocamos no lugar do Ser Supremo e concluímos que em todas as ocasiões observará a mesma conduta que nós mesmos, em sua situação, teríamos aceito como razoável e conveniente. Mas, além de que o curso ordinário da natureza pode convencer-nos de que quase tudo se regula por princípios e máximas muito diferentes das nossas, além disto, digo eu, deve parecer evidentemente contrário a todas as regras da analogia raciocinar a partir das intenções e projetos humanos para os de um Ser tão diferente e tão superior a um grau tão alto.

Na natureza humana há certa experimentada coerência de desígnios e de inclinações, de modo que, quando um fato nos permitiu descobrir uma intenção de um homem, pode ser frequentemente razoável, a partir desta experiência, inferir uma outra e tirar uma longa cadeia de conclusões sobre sua conduta passada ou futura. Mas este método de raciocínio não pode jamais intervir em relação a um Ser tão longínquo e tão incompreensível, que tem muito menos analogia com um outro ser do universo que o sol com uma vela de cera, e que apenas se manifesta por alguns traços pálidos ou vestígios, além dos quais não temos nenhuma autoridade para designar-lhe qualquer atributo ou qualquer perfeição. O que imaginamos ser uma perfeição superior pode ser realmente um defeito. Ou, se é no ponto mais alto uma perfeição, atribuindo-a ao Ser Supremo, em caso de não se ter realizado completamente em suas obras, parece mais adulação e panegírico do que raciocínio correto e sã filosofia. Portanto, toda filosofia do mundo e toda religião, que nada é senão uma espécie de filosofia, não serão jamais capazes de nos levar além do curso ordinário da experiência ou de nos dar regras de conduta e de ação diferentes das que nos fornecem as reflexões sobre a vida diária. Nenhum novo fato jamais pode ser inferido a partir da hipótese religiosa; nenhum evento pode ser previsto ou predito; nenhuma recompensa nem nenhum castigo podem ser esperados ou temidos, além do que já se conhece pela prática e pela observação. De modo que minha apologia de Epicuro parecerá ainda sólida e satisfatória e que os interesses políticos da sociedade não estão de nenhum modo ligados às discussões filosóficas a propósito da metafísica e religião.

Há ainda uma circunstância, repliquei, que, parece-me, haveis omitido. Embora pudesse admitir vossas premissas, devo refutar vossa conclusão. Concluístes que as doutrinas e os raciocínios religiosos não podem ter influência sobre a vida porque não devem tê-la; não considerais jamais que os homens não raciocinam da mesma maneira que vós, mas que tiram muitas consequências da crença na existência de Deus e supõem que a divindade imporá castigos ao vício e concederá recompensas à virtude, além daquilo que parece no curso ordinário da natureza. Não importa se seu raciocínio é justo ou não. Sua influência sobre a vida e sobre a conduta deve ser a mesma. E aqueles que tratam de livrá-los de tais preconceitos podem ser, pelo que eu saiba, bons raciocinadores, mas não posso considerá-los bons cidadãos e políticos, pois eles livram os homens disto que freia suas paixões e tornam mais fácil e mais segura, em certo modo, a transgressão das leis da sociedade.

Afinal, posso talvez concordar com vossa conclusão geral em favor da liberdade, ainda que sob premissas diferentes daquelas em que tentastes fundamentá-la. Penso que o Estado deve tolerar todos os princípios filosóficos, já que não há nenhum caso em que o governo tenha sofrido em seus interesses políticos devido a esta indulgência. Não há entusiasmo entre os filósofos; suas doutrinas não seduzem bastante o povo; qualquer obstáculo que se oponha aos seus raciocínios é de perigosas consequências às ciências e mesmo ao Estado, abrindo caminho às perseguições e à opressão em assuntos que interessam e tocam mais profundamente à generalidade dos homens.

Mas, em relação — continuei — ao vosso tema principal, ocorre-me um problema [11] que vos proporei sem muito empenho, a fim de evitar raciocínios de natureza muito sutil e complicada. Numa palavra: tenho dúvidas de que uma causa se torne apenas conhecida por seu efeito — o que haveis admitido ao longo deste diálogo — ou que sua natureza, sendo tão singular e particular, tenha correspondência ou semelhança com qualquer outra causa ou objeto que haja caído sob nossa observação. Pois, apenas quando duas espéciesde objetos se mostram constantemente ligadas, podemos inferir uma partindo da outra, mas se se apresentasse um efeito completamente singular que não pudesse ser incluído em nenhuma das espéciesconhecidas, não vejo como poderíamos formular qualquer conjetura ou inferência absolutamente referente a sua causa. Se a experiência, a observação e a analogia são, certamente, os únicos guias que podemos razoavelmente seguir em inferências desta natureza, tanto o efeito como a causa devem ter uma semelhança com outros efeitos e outras causas, observados em vários outros casos conjuntados uns com os outros. Deixo à vossa reflexão pessoal o cuidado de buscar as consequências deste princípio. Destacarei apenas que, tendo os adversários de Epicuro sempre considerado o universo como um efeito bastante singular e incomparável, provando assim a existência de Deus, causa não menos singular e não menos incomparável, segundo estas suposições vossos raciocínios parecem, pelo menos, merecer nossa atenção. Há, admito, alguma dificuldade para compreender como podemos sempre voltar da causa ao efeito e como, raciocinando a partir da ideia que fazemos da anterior, podemos inferir uma modificação ou uma adição na última.

  1. A edição K tinha o seguinte titulo: Das consequências práticas da religião natural. veja-se nota 1, p. 109, seção x.
  2. Luciano (Hume).
  3. Luciano (Hume).
  4. Id. e Dio (Hume). A referência diz respeito ao imperador Marco Aurélio. [N. do T.]
  5. O amigo cético de Hume, metamorfoseado em Epicuro, inicia aqui a crítica ao “argumento do desígnio”, que, como mencionamos na nota 66, da seção X, é o fundamento da teologia natural e o tema central desta seção. Butler, por exemplo, afirma que o argumento do desígnio é aceito, por princípio, como inquestionável, pois, segundo ele, “não há necessidade de raciocínios abstratos…, para convencer um entendimento sem prevenções, que um Deus que fez e governa o Mundo…, para um espírito sem prevenções, milhares de casos de desígnios unicamente provam um planejador” (Works, ed. Gladstone, Oxford, 1896, vol. II, p. 695). Embora reconheça a irrefutabilidade do “argumento do desígnio”, como essencial para estabelecer um “poder inteligente e invisível”, Hume acredita que esse argumento, por ser de base reflexiva, não desempenha nenhuma função sobre a religião nascente. O homem não começa a acreditar porque participa maravilhado da notável ordem e regularidade da natureza; pelo contrário, à medida que a ordem é mais regular e uniforme, isto é, a natureza é mais perfeita, e à medida que o homem se familiariza com a perfeita ordenação dos fenômenos naturais, diminui seu interesse pelo exame e análise da natureza. Não é, portanto, através da contemplação da uniformidade da natureza que nascem as noções básicas da religião, mas da observação dos eventos da vida e das paixões naturais de medo e esperança que impulsionam constantemente o espírito humano. (Hume, The Natural History of Religion, edição H. E. Root, Stanford University Press, 1967, pp. 24-5 e 28-9.) [N. do T.]
  6. Na edição K lê-se: “nos degraus ou escala da razão.
  7. Na edição K lê-se: “escala” em lugar de “ascensão”.
  8. Tendo percebido que o suposto Epicuro havia terminado seu longo discurso, Hume interfere em nome do ilustre auditório ateniense e apresenta uma objeção, que basicamente consiste em utilizar o raciocínio por analogia para averiguar a possível semelhança entre as obras humanas e a obra atribuída ao Ser Supremo. [N. do T.]
  9. O amigo cético de Hume refuta a possibilidade do raciocínio por analogia, pelo menos neste caso, tendo em vista a “infinita diferença” dos objetos, pois o que é evidente para as obras e atos humanos não o é em relação às obras de Deus. Ao contrário de um homem que pode ser circunscrito e explicitado pelo gênero Homem, Deus é um “Ser único no universo, que não é compreendido sob nenhuma espécie ou gênero”, e é conhecido apenas por suas obras. Evidencia-se, assim, que se trata da inferência de um caso particular e único, para justificar um efeito particular e único. Tal situação não permite, como no caso do homem e seu artesanato, maior “liberdade em nossas suposições”, já que a inferência nem é apoiada por experiências anteriores e nem pode ser comparada com outras experiências. [N. do T.]
  10. Em geral, creio que se pode estabelecer como princípio que, se uma causa somente é conhecida pelos seus efeitos particulares, deve ser impossível inferir novos efeitos a partir dessa causa, visto que as qualidades necessárias para produzir estes novos efeitos conjuntamente com os anteriores devem ser diferentes, ou superiores, ou de operação mais extensa que aqueles que simplesmente produziram o efeito, que é a única origem de nosso suposto conhecimento da causa. Portanto, jamais teremos razão para supor a existência destas qualidades. Afirmar que os novos efeitos procedem simplesmente de uma continuação da mesma energia que já é conhecida pelos primeiros efeitos não removerá a dificuldade. Porque, embora aceitando que o caso seja assim (o que raramente pode ser suposto), a própria continuação e realização de uma energia semelhante (pois é impossível que ela seja totalmente a mesma), afirmo que esta realização de uma energia semelhante, em diferentes periodos de espaço e de tempo, é uma suposição mui arbitrária, e que não pode conservar traços dos efeitos dos quais se derivou originalmente nosso conhecimento da causa. Se concordamos que a causa inferida deve ser rigorosamente proporcional, como deveria sê-lo, ao efeito conhecido, é impossível que possa possuir qualidades pelas quais podem inferir-se novos ou diferentes efeitos (Hume).
  11. Convém observar que isto que Hume denomina desinteressadamente de um “problema” representa de fato a dificuldade mais séria de todo o diálogo. E que Hume duvida que uma causa, sendo tão singular e particular, possa ser conhecida unicamente pela inspeção de seu efeito, que é igualmente singular e particular. A sua dúvida é um corolário direto e óbvio do que ficou dito anteriormente a propósito dos raciocínios a priori e experimental. O primeiro tipo de raciocínio importa em admitir que qualquer coisa concebível pode ser a causa de qualquer coisa. Enquanto o segundo tipo considera que apenas os eventos relacionados por conjunção constante, dos quais tivemos experiência direta, ou são análogos a outros eventos experienciados, oferecem base suficiente e necessária para se levantar a inferência de um pela presença do outro. Ora, as últimas condições não são preenchidas quando se trata do raciocínio modelado pelo “argumento do desígnio”, pois supomos o universo, um efeito singular e incomparável, ser a prova de Deus, uma causa não menos singular e incomparável, vimos que a inferência causal se baseia em uma “espécie de objetos”, ou seja, na conjunção repetida de múltiplos casos que são exatamente similares, ou que apresentam certo grau de analogia com os seus atributos. Portanto, quando deparamos com algo que não pertence a “nenhuma espécie”, não podemos através da experiência e da observação inferir algo que o ultrapasse; e, por causa de sua singularidade, não podemos igualmente averiguá-lo mediante o raciocínio por analogia. [N. do T.]

Seção XII

Da filosofia acadêmica ou cética

Primeira parte

Não há maior número de raciocínios filosóficos desenvolvidos sobre um assunto do que os que provam a existência de um Deus e refutam as falácias dos ateus; apesar disso, os filósofos mais religiosos persistem discutindo e averiguando se alguém pode ser tão cego a ponto de tornar-se um ateu especulativo. Como conciliaremos estas contradições? Os cavaleiros andantes que percorriam o mundo para limpá-lo de dragões e gigantes nunca abrigavam a menor dúvida sobre a existência destes monstros.

O cético— um outro inimigo da religião — provoca naturalmente a indignação de todos os teólogos e de circunspetos filósofos. É, no entanto, evidente que ninguém jamais encontrou uma criatura tão absurda ou conversou com um homem desprovido de opinião ou princípios sobre quaisquer temas referentes à ação ou à especulação. Apesar disso, é bastante natural indagar: o que se entende por cético? E até que ponto é possível estender estes princípios filosóficos de dúvida e incerteza?

Há uma espécie de ceticismo antecedentea todo estudo e filosofia, bastante recomendado por Descartes e outros, como eficaz proteção contra o erro e o juízo precipitado. Este ceticismo, prescrevendo uma dúvida universal que abrange tanto o conjunto de nossas opiniões e princípios anteriores como também nossas próprias faculdades, de cuja veracidade — dizem eles — devemos assegurar-nos mediante uma cadeia de raciocínios deduzida de um princípio primitivo que não pode ser enganador ou duvidoso. Contudo, não há semelhante princípio primitivo com prerrogativa sobre os outros princípios evidentes em si mesmos e convincentes. Ou, mesmo se houvesse, progrediríamos um só passo além deste princípio, utilizando-nos dessas mesmas faculdades em que, supõe-se, não confiamos? Portanto, se um ser humano pudesse alcançar a dúvida cartesiana — o que é simplesmente impossível — ficaria completamente incurável, e nenhum raciocínio jamais poderia conduzi-lo a uma situação de segurança e de convicção sobre algum tema. [1]

No entanto, devemos concordar que esta espécie de ceticismo, sendo mais moderada, pode ser aceita como bastante razoável, pois afigura-se como atitude prévia e indispensável ao estudo da filosofia, mantendo adequada imparcialidade em nossos juízo s e apartando nosso espírito de todos os preconceitos adquiridos pela educação e precipitação. Iniciar com princípios claros e evidentes por si mesmos, avançar com passos prudentes e seguros, repassar frequentemente nossas conclusões e examinar rigorosamente todas as suas consequências são os únicos métodos que nos podem levar a aspirar à verdade e lograr uma adequada estabilidade e certeza em nossas conclusões, embora reconhecendo que assim nossos sistemas progridem pouco e lentamente. [2]

Há outra espécie de ceticismo, consequenteà ciência e à investigação, ocorrendo quando os homens supõem haver revelado a completa falsidade de suas faculdades mentais ou sua incapacidade para enlaçar uma definição rigorosa em todos aqueles temas curiosos da especulação que geralmente os atraem. [3] Certa classe de filósofos chega inclusive a duvidar de nossos próprios sentidos, submetendo ao mesmo tipo de dúvida tanto as máximas da vida cotidiana como as conclusões e os princípios mais profundos da metafísica e da teologia. Manifestando-se tais doutrinas paradoxais — se podem ser denominadas doutrinas — em alguns filósofos e sua refutação em vários, despertam, naturalmente, nossa curiosidade e nos levam a investigar os argumentos sobre os quais estão fundadas.

Não é preciso insistir sobre os argumentos mais vulgares levantados pelos céticos em todas as épocas contra a evidência dos sentidos; tais como os que em várias ocasiões derivam da imperfeição e inexatidão de nossos órgãos: o remo que na água parece quebrado, os vários aspectos dos objetos segundo suas diferentes distâncias, as imagens duplas que surgem pressionando um olho e, em suma, várias aparências de natureza análoga. Em verdade, estes argumentos céticos apenas provam que não devemos confiar completamente nos sentidos, mas que devemos corrigir sua evidência mediante a razão e considerações derivadas de agentes intermediários — distância do objeto e disposição do órgão sensível — para torná-los, dentro de sua própria esfera, critériosadequados de verdade e falsidade. Há outros argumentos mais profundos contra os sentidos que não são passíveis de solução tão fácil.

Parece evidente que o ser humano, impelido pelo instinto ou tendência natural, confia em seus instintos e admite sempre — sem qualquer raciocínio ou mesmo antes de usar a razão — um universo exterior independente de nossa percepção, que existiria mesmo admitindo-se a nossa ausência e aniquilação, assim como a de toda criatura sensível. Inclusive o reino animal se acha regido por semelhante opinião, conservando a mesma crença nos objetos exteriores em todos os seus pensamentos, projetos e ações.

Parece também evidente que, quando o ser humano é impelido por este cego e poderoso instinto natural, supõe constantemente que as próprias imagens reveladas pelos sentidos são os objetos externos, jamais suspeitando que umas não são mais do que as representações dos outros. Deste modo, é levado a supor que esta mesa que vemos branca e sentimos sólida existe, independentemente de nossa percepção, como algo exterior ao nosso espírito que a percebe. Nossa presença não lhe confere existência, nossa ausência não a aniquila. Conservando, portanto, sua existência invariável e inteira, independente da situação dos seres inteligentes que a percebem ou a contemplam.

Contudo, esta universal e primitiva opinião, aceita por todos os homens, é destruída pela mais superficial filosofia que nos esclarece que nada pode apresentar-se no espírito a não ser uma imagem ou percepção, e que os sentidos são apenas as vias de acesso que introduzem estas imagens sem, todavia, o poder de estabelecer qualquer contato direto entre o espírito e o objeto. A mesa divisada parece diminuir quando nos afastamos dela; porém, a mesa real, existindo independente de nós, não sofre nenhuma modificação; portanto, não se tratava senão de sua imagem que estava presente no espírito. São estas as evidentes exigências da razão, pois ninguém que reflete jamais duvidou que as existências visadas quando nos referimos a esta casa e esta árv ore são simplesmente percepção do espírito, cópias fugazes ou representações de outras existências que permanecem invariáveis e independentes.

Portanto, até agora fomos obrigados pelo raciocínio a contradizer ou divergir dos primitivos instintos naturais e adotar um novo sistema sobre a evidência de nossos sentidos. Mas aqui a filosofia se encontra extremamente embaraçada querendo justificar este novo sistema e impedir as cavilações e objeções dos céticos. Visto que ela não pode mais recorrer ao infalível e irresistível instinto natural, pois isto nos levaria a um outro sistema completamente diverso e reconhecido como falível e até como errôneo. E justificar este pretenso sistema filosófico por uma cadeia de raciocínios claros e convincentes ou mesmo por qualquer argumento evidente supera o poder de toda capacidade humana.

Através de que raciocínio pode ser provado que as percepções do espírito devem ser causadas por objetos externos, completamente diferentes delas embora lhes assemelhando — se isto é possível — e que não podem nascer da energia do próprio espírito ou da sugestão provocada por algum espírito invisível e desconhecido, ou de alguma outra causa ainda mais desconhecida de nós? Em verdade, tem-se admitido que algumas destas percepções, motivadas pelos sonhos, loucuras e outras doenças não derivam de algo exterior. Nada é mais inexplicável do que o modo pelo qual um corpo agiria sobre o espírito a fim de transmitir-lhe sua própria imagem.

Constitui uma questão de fato averiguar se as percepções dos sentidos são produzidas por objetos externos que lhe são semelhantes. Como decidiremos sobre este problema?

Certamente, mediante a experiência, do mesmo modo que em outras questões de natureza análoga. Mas aqui a experiência permanece e deve permanecer completamente silenciosa. O espírito, excetuando-se as percepções, jamais tem algo que lhe é presente, e ele não pode, indubitavelmente, vislumbrar qualquer experiência de sua conexão com os objetos. Portanto, a suposição de tal conexão é desprovida de qualquer base racional.

Trata-se, certamente, de uma solução imprevista recorrer à veracidade do Ser Supremo para provar a veracidade de nossos sentidos. Se a veracidade do Ser Supremo se relacionasse com este assunto, nossos sentidos seriam completamente infalíveis em virtude da impossibilidade que Deus possa jamais nos decepcionar. Não mencionando que, uma vez que o mundo exterior é posto em dúvida, teremos muita dificuldade para fornecer argumentos comprovantes da existência deste Ser ou de alguns de seus atributos.

Portanto, a respeito deste tema sempre triunfarão os céticos mais profundos e mais filósofos quando se esforçam por inserir a dúvida universal em todos os objetos do conhecimento e da investigação humana. Observais — devem dizer — os instintos e as tendências naturais aderindo veracidade aos sentidos? Mas isto não vos persuade a acreditar que o objeto exterior é rigorosamente a percepção ou imagem sensível. Repudiais este princípio optando por uma opinião mais racional que estipula que as percepções são apenas representações de alguma coisa exterior? Apartais assim de vossas tendências naturais e sentidos mais evidentes; todavia, não tendes possibilidade de esclarecer vossa razão, que jamais pode desvendar argumento convincente derivado da experiência provando que as percepções estão ligadas com os objetos externos.

Há um outro tema cético de natureza análoga, decorrente da filosofia mais profunda, que poderia merecer nossa atenção se fosse necessário aprofundar para desvendar argumentos e raciocínios que podem servir com exiguidade a fins sérios. Tem-se admitido universalmente entre os investigadores modernos que todas as qualidades sensíveis dos objetos, tais como duro, brando, quente, frio, branco, preto etc., são meramente secundárias, e que elas não existem nos próprios objetos, sendo percepções do espírito sem nenhum arquétipo ou modelo exterior que elas representam. Se isto é admitido em relação às qualidades secundárias, deve-se também admitir acerca das pretendidas qualidades primárias da extensão e da solidez, já que estas não têm menos direito do que aquelas para merecer esta denominação. A ideia de extensão é totalmente adquirida pelos sentidos da visão e do tato; se todas as qualidades percebidas pelos sentidos estão no espírito e não no objeto, idêntica conclusão deve abranger a ideia de extensão que é completamente dependente das ideias sensíveis ou das ideias de qualidades secundárias. Nada pode livrar-nos desta conclusão, salvo a afirmação de que as ideias destas qualidades primárias são alcançadas pela abstração, opinião que, se a examinamos cuidadosamente, encontramos ininteligível e até absurda. Uma extensão que não é nem tangível nem visível não pode ser concebida; uma extensão tangível ou visível, que não é nem dura nem macia, nem preta nem branca, está igualmente acima do alcance da concepção humana. Se qualquer pessoa tentar conceber um triângulo em geral, que não seja nem isósceles nem escaleno, e que não tenha extensão específica ou proporção em seus lados, ela perceberá imediatamente o absurdo de todas as opiniões escolásticas sobre a abstração e as ideias gerais. [4]

Desta maneira, a primeira objeção filosófica contra a evidência dos sentidos ou a opinião sobre a existência exterior preceitua: se esta opinião repousa sobre um instinto natural, é contrária à razão, e se ela se refere à razão, é contrária ao instinto natural e, ao mesmo tempo, não traz consigo nenhuma evidência racional para convencer um investigador imparcial. A segunda objeção vai mais longe e revela esta opinião como contrária à razão; e é, ao menos, um principio da razão que todas as qualidades sensíveis estão no espírito e não no objeto. Despojando a matéria de todas as suas qualidades inteligíveis, tanto as primárias como as secundárias, de certo modo vós a aniquilais e preservais somente uma certa qualquer coisa desconhecida e inexplicável como causa de nossas percepções; noção tão imperfeita que nenhum cético a julgará digna de ser objetada.

  1. A crítica ao método de Descartes, especialmente do Discours de la Méthode, feita por Hume, é evidente nesta passagem. Para Hume não existem princípios evidentes e convincentes e não podemos igualmente confiar totalmente em nenhuma de nossas faculdades espirituais. A dúvida, para ele, não é provisória como a de Descartes. O progresso que o entendimento humano chega a alcançar é considerado hipotético. Toda dedução é incerta e sujeita a constantes revisões. As descobertas filosóficas devem ser, segundo Hume, circunscritas pelo probabilismo, ou melhor, todas as explicações devem ser vistas como tentativas destinadas a serem substituídas por outras. [N. do T.]
  2. Hume, no entanto, admite que o ceticismo cartesiano, sendo mais moderado, pode ser encarado como razoável. Em verdade, o que ele entende por moderado neste contexto reflete, de certa maneira, as regras do método de Descartes, como aparecem na segunda parte do Discours de la Méthode. [N. do T.]
  3. Hume dedica a segunda parte desta seção ao estudo deste ceticismo, com referência ao raciocínio abstrato e ao raciocínio moral. [N. do T.]
  4. Citamos este argumento do Dr. Berkeley. Na realidade, a maioria dos escritos deste mui engenhoso autor constituem as melhores lições de ceticismo que se podem encontrar entre os filósofos antigos e modernos, sem excetuar a Bayle. No frontispício do seu livro declara, todavia, tê-lo escrito tanto contra os céticos como contra os ateus e livre-pensadores, o que é indubitavelmente muito certo. Mas que todos os seus argumentos, embora dirigidos a outro fim, são em realidade meramente céticos, pode ser observado pelo fato de que eles não admitem resposta e não produzem convicção. Seu único efeito consiste em causar uma momentânea surpresa, irresolução e confusão, que resultam do ceticismo (Hume).
Segunda parte

Destruir a razão mediante argumentos e raciocínios lógicos pode parecer uma tentativa muito extravagante dos céticos; todavia, esta é a principal finalidade de todas as suas investigações e debates. Esforçam-se por encontrar objeções contra os nossos raciocínios abstratos, como também contra os referentes às questões de fato e de existência.

A principal objeção contra todos os raciocínios abstratosderiva das ideias de espaço e de tempo; ideias que na vida diária e para quem as considera descuidadosamente são muito claras e inteligíveis, mas quando examinadas pelas ciências profundas — elas constituem o principal objeto destas ciências — revelam princípios que parecem repletos de absurdos e contradições. Nenhum dogmasacerdotal, inventado com o propósito de domar e subjugar a rebelde razão humana, abalou tanto o bom senso como a doutrina e as consequências da infinita divisibilidade da extensão, tal como nos são mostradas pomposamente por todos os geômetras e metafísicos, com uma espécie de triunfo e de exultação. Uma quantidade real, infinitamente menor que qualquer quantidade finita, contendo quantidades infinitamente menores que ela mesma, e assim por diante ao infinito: eis uma formulação tão audaciosa e prodigiosa que é demasiado pesada para apoiar-se em alguma pretendida demonstração, porque repugna aos mais claros e naturais princípios da razão humana. [1] Mas o que torna o assunto mais extraordinário refere-se ao fato de que estas opiniões aparentemente absurdas estão apoiadas por uma cadeia de raciocínios muito claros e naturais, sendo-nos, pois, impossível aceitar as premissas sem admitir suas consequências. Nada pode ser mais convincente e satisfatório que todas as conclusões acerca das propriedades dos círculos e dos triângulos, e, uma vez que as aceitamos, como podemos negar que o ângulo formado pelo círculo e sua tangente é infinitamente menor que um ângulo retilíneo; que à medida que se aumenta o diâmetro do círculo ao infinito, este ângulo de contato se torna ainda menor, inclusive ao infinito, e que o ângulo de contato compreendido entre outras curvas e suas tangentes deve ser infinitamente menor que os formados por qualquer círculo e sua tangente, e assim por diante, ao infinito? A demonstração destes princípios parece tão irrepreensível como aquela que prova serem três ângulos de um triângulo iguais a dois retos, embora esta última noção seja natural e fácil, ao passo que a primeira está repleta de contradição e absurdo. A razão parece aqui lançada a um estado de assombro e de vacilação que, sem que ela tenha necessidade das sugestões de nenhum cético, lhe ensina a desconfiar de si mesma e do terreno em que pisa. Visualiza uma luz clara iluminando certos lugares, mas esta luz está cercada pela mais profunda escuridão. Entre as duas, a razão fica tão ofuscada e confundida que raramente pode pronunciar-se com certeza e segurança sobre algum objeto.

O absurdo destas conclusões audazes das ciências abstratas torna-se — se isto é possível — ainda mais patente em relação ao tempo do que ao espaço. Um número infinito de partes reais de tempo que se sucedem e se esgotam umas depois das outras parece uma contradição tão evidente que ninguém, cujo juízo, em vez de corrompido, se tenha aperfeiçoado pelas ciências, seria capaz de admiti-lo.

Portanto, é preciso ainda que a razão permaneça agitada e inquieta, mesmo a respeito deste ceticismo para o qual a dirigem estes aparentes absurdos e contradições. Como uma ideia clara e distinta pode conter circunstâncias que a contradizem ou que contradizem uma outra ideia clara e distinta, isto é absolutamente incompreensível, e é talvez tão absurdo como qualquer proposição que se possa formular. De maneira que nada pode ser mais cético ou mais repleto de dúvida e de hesitação que este próprio ceticismo, engendrado por algumas das conclusões paradoxais da geometria ou da ciência da quantidade. [2]

As objeções céticas à certeza moral ou aos raciocínios acerca dos fatos são populares ou filosóficas. As objeções populares derivam da franqueza do entendimento humano; das opiniões contraditórias sustentadas em diferentes épocas e nações; das variações de nossos julgamentos quando estamos doentes ou sadios, na mocidade e na velhice, na prosperidade e na adversidade; da perpétua contradição entre as opiniões e os sentimentos de cada homem particular, assim como muitos outros temas deste gênero. Não há necessidade de insistirmos por mais tempo a este respeito. Estas objeções são certamente fracas. Com efeito, na vida diária raciocinamos a todo momento sobre o fato e a existência e, certamente, não poderíamos subsistir se não empregássemos continuadamente este gênero de raciocínio, e quaisquer objeções populares que daí decorrem são necessariamente insuficientes para destruir esta evidência. A ação, o trabalho e as ocupações da vida diária são os principais destruidores do pirronismo, isto é, dos excessivos princípios céticos. Estes princípios podem florescer e triunfar nas escolas, nas quais é certamente difícil, senão impossível, refutá-los. Mas, uma vez que os céticos abandonam as sombras e se defrontam com os mais poderosos princípios de nossa natureza — decorrentes da presença dos objetos reais — que movem nossas ações e sentimentos, seus princípios desvanecem como fumaça e equiparam o mais resoluto cético ao mesmo nível dos outros mortais.

O cético estaria melhor, portanto, se permanecesse em sua própria esfera e desenvolvesse estas objeções filosóficas que nascem das pesquisas mais profundas. Parece que é aqui que ele tem amplo campo para triunfar, pois insiste, legitimamente, que toda nossa evidência a favor de um fato, distanciado do atual testemunho dos sentidos ou da memória, procede inteiramente da relação de causa e efeito; que não temos outra ideia desta relação senão a de dois objetos que têm estado frequentemente ligados; que não temos argumento para nos convencer de que os objetos experienciados por nós constantemente ligados mostrar-se-ão em outros casos igualmente ligados; e que nada nos conduz a esta inferência a não ser o costume ou um outro instinto de nossa natureza que é difícil de resistir, mas que, como os outros instintos, pode ser errôneo e enganador. Enquanto o cético persiste com estes argumentos, revela sua força, ou melhor, revela tanto sua como nossa debilidade e, ao menos no momento, parece destruir toda segurança e convicção. Poder-se-iam desenvolver extensamente estes argumentos se deles adviessem um bem e um benefício perduráveis para a sociedade.

Eis aqui, todavia, a objeção principal e mais embaraçosa contra o ceticismo extremado: nenhum bem durável pode jamais resultar dele, embora conserve toda sua força e todo o seu vigor. Necessitamos apenas perguntar a um tal cético: Qual é a sua intenção? Qual é o propósito de todas estas curiosas pesquisas? Ele fica imediatamente perplexo e não sabe o que contestar. Um coperniciano ou um ptolomaico pode, cada um argumentando a favor de seu específico sistema de astronomia, aspirar a estabelecer entre seus ouvintes constante e durável convicção. Um estoico ou um epicureu desenvolve princípios que não devem ser duráveis, mas que têm efeito sobre a conduta e os costumes. Mas um pirrônico não pode esperar que sua filosofia tenha uma influência constante sobre o espírito ou, se ela tivesse, que esta influência fosse benéfica à sociedade. Pelo contrário, deve reconhecer, se quiser admitir alguma coisa, que toda a humanidade pereceria se seus princípios prevalecessem universal e constantemente. Todo discurso e toda ação cessariam imediatamente, e os homens ficariam em total letargia, até que as necessidades da natureza, não sendo satisfeitas, pusessem fim à sua miserável existência. Em verdade, não se deve temer demasiadamente um evento tão fatal. A natureza sempre é mais forte que os princípios. [3] E, embora um pirrônico possa lançar-se a si mesmo ou a outrem em estupefação e confusão momentâneas, em virtude de seus raciocínios profundos, o primeiro e o mais banal evento da vida porá em revoada todas as suas dúvidas e escrúpulos, e o situará no mesmo nível, com referência à ação e à especulação, aos filósofos de todas as outras seitas e aos homens que nunca se preocuparam com pesquisas filosóficas. O pirrônico, ao ser despertado de seu sonho, será o primeiro a se incorporar ao riso que o ridiculariza e a admitir que todas as objeções não passavam de mero divertimento e não tinham, portanto, outra intenção senão revelar a peculiar condição do ser humano que, devendo agir, raciocinar e crer, não é capaz, pela mais diligente investigação, de se esclarecer sobre o fundamento destas operações ou de remover as objeções que se poderiam levantar contra elas.

  1. Qualquer que seja a disputa acerca dos pontos matemáticos, devemos admitir que há pontos físicos, isto é, partes da extensão que não podem ser divididas ou diminuídas, nem pela visão e nem pela imaginação. Estas imagens, portanto, que se acham presentes na fantasia ou nos sentidos, são completamente indivisíveis. Por conseguinte, os matemáticos devem admitir que são menores que qualquer parte real da extensão. Sem dúvida, nada parece mais seguro à razão que um número infinito destes pontos compondo uma extensão infinita. E deve ser ainda mais certo que um número infinito daquelas partes infinitamente pequenas que devem supor-se infinitamente divisíveis (Hume).

    Hume, em conformidade com Bayle, assumindo que a doutrina dos pontos matemáticos é indefensável, recorre à hipótese dos pontos físicos, entendendo por físicos os pontos qualitativamente caracterizados em termos visíveis e tangíveis. (Bayle, Dictionnaire historique et critique, 5ª ed., Amsterdã, 1734, verbete “Zenon”.) O conhecimento que Hume tinha da obra de Bayle pode ser constatado pelas notas que ele mantinha durante a feitura do Tratadoem que o nome de Bayle aparece mencionado cinco vezes. (Veja-se, de E. C. Mossner, “Hume’s Early Memoranda”, 1729-1740, Journal of the History of Ideas, vol. IX, n 4, outubro, 1948, pp. 492-518.) [N. do T.]
  2. Não me parece impossível evitar estas contradições e absurdos se se admite, propriamente falando, que não há ideias gerais ou abstratas, mas que todas as ideias são, na realidade, particulares, aderidas a um termo geral que evoca, em certas ocasiões, a outros particulares que se parecem, em certas circunstâncias, com a ideia presente no espírito. Assim, quando usamos o termo “cavalo”, imediatamente vem em nossa mente a ideia de um animal branco ou preto, de determinado tamanho ou forma; mas como o termo “cavalo” é geralmente aplicado a animais de outras cores, formas e tamanho, estas ideias, embora não estejam agora presentes na imaginação, são facilmente recordadas pelo nosso raciocínio e as conclusões [que fazemos] procedem da mesma maneira, isto é, como se elas realmente estivessem presentes. Se se admite isto — como parece razoável — conclui-se que todas as ideias de quantidade, acerca das quais raciocinam os matemáticos, não são mais que particulares e semelhantes às sugeridas pelos sentidos e a imaginação e, por conseguinte, não podem ser indefinidamente divisíveis. É suficiente levar isto em consideração, sem desenvolver mais o assunto, o que é decerto coerente com o fato de todos os amantes da ciência não se exporem ao ridículo e ao desprezo dos ignorantes por suas conclusões. Esta parece ser a solução mais fácil de todas estas dificuldades (Hume).
  3. Ao contrário de Bayle, que define o pirronismo como “a arte de debates sobre todas as coisas sem jamais assumir qualquer posição, a não ser a suspensão do juízo” (Bayle, ob. cit., verbete “Pyrrhon”, tomo IV, pp. 669-674), Hume não o considera como uma “arte”, mas como uma série de argumentos que implica o desenvolvimento de um certo tipo de atitude acerca de todos os problemas práticos e teóricos. O núcleo da tese pirrônica consiste em destacar que acerca de qualquer problema não há base racional para determinar que tipo de solução deve ser dada ao objeto em discussão. Quando, por exemplo, dois juízos entram em conflito, não há base racional para se optar por um dos dois. Portanto, nenhuma área prática ou teórica é possível de ser alçada ao nível do conhecimento seguro e indispensável. Hume concorda que a análise pirrônica não pode ser racionalmente refutada, mas admite que ninguém jamais acreditou ou pode acreditar nela, pois, segundo ele, a natureza destrói os argumentos céticos a tempo, e os impede de exercer qualquer considerável influência sobre o entendimento (Tratado, I, ii, IV, p. 187). A aderência de Hume ao naturalismo (em verdade, o loco de sua atitude positiva), constitui o antídoto mais adequado contra as investidas pirrônicas. Isto porque o mesmo tipo de fatores naturais que formam nossa existência biológica determina igualmente nossa existência psicológica e exige de nós que mantenhamos, por vezes, opiniões sem considerarmos sua evidência. (Vejam-se, de Popkin, “David Hume: His Pyrrhonism and His Critique of Pyrrhonism”, in Chapeil, ob. cit. p. 54; de N. K. Smith, ob. cit., passim, e “The Naturalism of Hume”, Mind, 1906.) [N. do T.]
Terceira parte

Há, na verdade, um ceticismo mais moderado ou filosofia acadêmica [1], que pode ser ao mesmo tempo durável e útil e, em parte, resultar do pirronismo ou ceticismo extremado, se o bom senso e a reflexão corrigem, até certo ponto, suas dúvidas indiferenciadas. A maioria dos homens têm tendência natural para manifestar suas opiniões de modo afirmativo e dogmático e, como visualizam os objetos sob um único aspecto e como não têm qualquer ideia de argumentos opostos, lançam-se precipitadamente aos princípios para os quais estavam inclinados e não são indulgentes com aqueles que abrigam opiniões contrárias. A dúvida ou a suspeita gera perplexidade em seu entendimento, bloqueia sua paixão e interrompe sua ação. Portanto, impacientes para escapulir de uma situação que lhes é tão desagradável, os homens supõem que unicamente aderindo às afirmações violentas e crenças obstinadas conseguirão afastar-se o bastante dela. Mas, se tais homens que raciocinam dogmaticamente pudessem ter consciência da singular fragilidade do entendimento humano, inclusive em seu estado mais perfeito e quando é mais rigoroso e prudente em suas resoluções, semelhante reflexão os inspiraria naturalmente a ter mais modéstia e reserva, diminuindo a exagerada opinião que têm de si mesmos e seus preconceitos contra os adversários. Os ignorantes devem refletir acerca da situação dos sábios que, embora usufruindo de todas as vantagens advindas do estudo e da reflexão, se mostram geralmente desconfiados de suas afirmações. E, se algum sábio tende, por seu temperamento natural, à altivez e à obstinação, uma leve tintura de pirronismo poderia abater seu orgulho e mostrar-lhe que as poucas vantagens que obteve sobre seus semelhantes são insignificantes se comparadas à confusão e à perplexidade universais inerentes à natureza humana. Em geral, há um grau de dúvida, de prudência e de modéstia que, nas investigações e nas decisões de todo gênero, deve sempre acompanhar o homem que raciocina corretamente.

Uma outra espécie de ceticismo moderado, que deve ser vantajoso aos homens e que pode resultar naturalmente das dúvidas e escrúpulos pirrônicos, consiste em limitar nossas investigações aos objetos que mais bem se adaptam à exígua capacidade do entendimento humano. A imaginaçãohumana, sublime por natureza, deleita-se com tudo que é remoto e extraordinário, e ela corre, sem controle, pelas mais longínquas regiões do tempo e do espaço, visando assim a evitar os objetos que o costume lhe tem tornado demasiado familiares. Um juízo correto observa um método contrário e, evitando todas as investigações longínquas e elevadas, limita-se à vida diária e aos objetos compreendidos pela prática e experiência cotidianas, reservando os temas mais sublimes ao embelezamento dos poetas e dos oradores, ou à arte dos sacerdotes e dos políticos. Para chegarmos a uma decisão tão salutar, nada pode ser mais útil do que nos convencer de vez da força da dúvida pirrônica e da impossibilidade de que algo pode libertar-nos dela, exceto o forte poder do instinto natural. Aqueles que têm propensão para a filosofia continuarão ainda suas pesquisas, porque refletem que, além do prazer imediato que acompanha tal ocupação, as decisões filosóficas nada mais são do que reflexões sobre a vida cotidiana, metodizadas e corrigidas. Contudo, jamais tentarão extravasar da vida cotidiana, contanto que considerem a impressão das faculdades que empregam, seu alcance reduzido e a imperfeição de suas operações. Visto que não podemos dar uma razão satisfatória por que acreditamos, depois de mil experimentos, que uma pedra cairá ou que o fogo queimará, podemos esclarecer-nos sobre qualquer resolução que podemos formular sobre a origem dos mundos e o estado da natureza desde a eternidade e para a eternidade?

Certamente, esta estreita limitação de nossas investigações é, sob todo ponto de vista, tão razoável que basta fazer o exame mais superficial dos poderes naturais do espírito humano e compará-los com seus objetos para que nos seja recomendada. Deste modo, localizaremos os respectivos objetos da ciência e da investigação.

Parece-me que os únicos objetos da ciência abstrata, ou da demonstração, são a quantidade e o número, e que todo esforço para estender este gênero mais perfeito do conhecimento além daquelas fronteiras é mero sofisma e ilusão. Como as partes componentes da quantidade e do número são inteiramente semelhantes, suas relações tornam-se complicadas e embaraçadas, e nada pode ser mais curioso, como também útil, do que demarcar com vários sinais intermediários sua igualdade ou desigualdade sob suas diferentes formas de aparição. Mas, como todas as outras ideias são claramente distintas e diferentes umas das outras, jamais podemos ir mais longe, nem com a ajuda de nosso mais rigoroso exame, do que observar esta diversidade e decidir, mediante uma reflexão evidente, que uma coisa não é outra. Ou, se há qualquer dificuldade nestas decisões, ela procede inteiramente da indeterminação dos significados das palavras que se corrige com definições adequadas. Não se pode saber se o quadrado da hipotenusa é igual ao quadrado dos dois lados, por mais rigorosamente que tenham sido definidos os termos, sem uma sequência de raciocínios e investigações. Mas, para convencer-nos a respeito da seguinte proposição — onde não há propriedade, não pode haver injustiça —, é apenas necessário definir os termos e explicar que a injustiça é uma violação da propriedade. Esta proposição é, em verdade, apenas uma definição mais imperfeita. O mesmo caso ocorre com todos os pretensos raciocínios silogísticos que se encontram em todos os ramos do saber, exceto nas ciências da quantidade e do número. Pode-se, portanto, afirmar com toda segurança, penso eu, que a quantidade e o número são os únicos objetos adequados do conhecimento e da demonstração.

Todas as outras investigações humanas dizem respeito unicamente às questões de fato e de existência; e estas não são, evidentemente, suscetíveis de demonstração. Tudo o que é pode não ser. Nenhuma negação de um fato pode implicar contradição. A inexistência de um ser, sem exceção, é uma ideia tão clara e distinta como a de sua existência. A proposição que afirma que não existe, mesmo se é falsa, não é menos concebível e inteligível que aquela que afirma que existe. O caso é diferente para as ciências propriamente ditas. Toda proposição que não é verdadeira é considerada confusa e ininteligível. A raiz cúbica de 64 é igual à metade de 10 é uma proposição falsa e jamais se poderia concebê-la distintamente. Mas que César, o anjo Gabriel ou um outro ser qualquer jamais existiram podem ser proposições falsas e, sem dúvida, perfeitamente concebíveis, e não implicam contradição.

Portanto, a existência de qualquer ser somente pode ser provada mediante argumentos derivados de sua causa ou de seu efeito, e estes argumentos se fundam inteiramente na experiência. Se raciocinamos a priori, qualquer coisa pode parecer capaz de produzir qualquer coisa.

A queda de um seixo pode, pelo que sabemos, extinguir o sol, ou a vontade de um homem controlar os planetas em suas órbitas. É unicamente a experiência que nos ensina a natureza e os limites da causa e do efeito e permite-nos inferir a existência de um objeto partindo de um outro. [2] Tal é o fundamento do raciocínio moral que constitui a maior parte do conhecimento humano e que é a fonte de todas as ações e comportamentos humanos. [3]

Os raciocínios morais referem-se tanto a fatos particulares como gerais. Todas as deliberações da vida dizem respeito aos primeiros, bem como todas as investigações da história, da cronologia, da geografia e da astronomia.

As ciências referentes aos fatos gerais são a política, a filosofia natural, a física, a química etc., nas quais se investigam as qualidades, as causas e os efeitos de toda uma espécie de objetos.

As ciências religiosas ou teológicas, enquanto visam a provar a existência de Deus e a imortalidade das almas, compõem-se em parte de raciocínios baseados em fatos particulares e, em parte, de raciocínios baseados em fatos gerais. Fundam-se sobre a razão, na medida em que se apoiam na experiência. Mas seu melhor e mais sólido fundamento é a fé e a revelação divina.

A moral e a crítica não são propriamente objetos do entendimento, porém do gosto e do sentimento. A beleza, moral ou natural, é antes sentida que propriamente percebida. Ou, se raciocinamos a seu respeito, e tentamos estabelecer sua norma, consideramos um novo fato, derivado do gosto geral dos homens, ou algum fato análogo que pode ser objeto do raciocínio e da investigação.

Quando percorremos as bibliotecas, persuadidos destes princípios, que destruição deveríamos fazer? Se examinarmos, por exemplo, um volume de teologia ou de metafísica escolástica e indagarmos:

Contém algum raciocínio abstrato acerca da quantidade ou do número? Não. Contém algum raciocínio experimental a respeito das questões de fato e de existência? Não. Portanto, lançai-o ao fogo, pois não contém senão sofismas e ilusões.

  1. Hume mostra claramente, tanto aqui como na seção V, seu desejo de ser considerado um seguidor da última Academia. [N. do T.]
  2. O ímpio princípio da filosofia antiga: ex nihilo, nihil fit, pelo qual ficava excluída a criação da matéria, deixa de ser um principio, segundo esta filosofia. Não apenas a vontade do Ser Supremo pode criar a matéria, mas, pelo que sabemos, a priori, a vontade qualquer outro ser poderia criá-la, ou qualquer outra causa que a imaginação mais caprichosa poderia designar (Hume).
  3. O ceticismo moderado consiste sobretudo em “limitar nossas investigações aos objetos que mais bem se adaptam à exígua capacidade do entendimento humano”. Hume visa, deste modo, nas últimas páginas desta Investigação, esboçar um quadro geral dos diferentes ramos do saber humano, e a ideia central que orienta seu esquema se baseia na divisão mais ampla entre o “conhecimento” e a “crença”. (Veja-se Flew, ob. cit., p. 270.) [N. do T.]