Memórias imaginárias de Lucrécio

Philipe Sollers

Tudo está calmo esta manhã no campo romano, uma calma que faz pensar no vazio além do qual se encontram os deuses. Para mim chega o momento de apreciar o conjunto de minha obra. Escrevo aqui um exame rápido, mas sem dúvida queimarei este documento. Só o poema deve permanecer. Está aqui, sob meus olhos. Depois de oito dias, continuo a repetir as primeiras e as últimas sílabas. As últimas: Multo cum sanguine saepe rixantes potius quam corpora deserentur [1]. As primeiras: Aeneadum genetrix hominum diuomque voluptas [2]. Penso que está bem claro. A volúpia, a morte, o nascimento e o fim dos corpos, o prazer que aproxima, a peste que desagrega. Tracei o círculo, eu o percorri.

Eles não saberão nada da minha vida, tomei as precauções elementares. Dirão provavelmente que eu estava louco: que me destruí. Sempre o mesmo método. Quando se escapa à sua vigilância, à sua malevolência, recorrem à grande exclusão: um monstro, eis como serão obrigados a se referir a mim. Teriam preferido o silêncio completo, o desaparecimento integral, mas o poema existe, circulará, já sabem que não poderão colocar a mão sobre todas as cópias, nosso grupo é poderoso o suficiente para escondê-las e difundi-las, será preciso que me inventem, que me refutem. Imagino aqui seu trabalho de deformação nos anos próximos e no curso das épocas. Que me importa? Além disso, já não estou na mesma cadência do tempo.

Um texto não é nada se não contém uma adesão razoável fundada sobre o entusiasmo pela verdade mais difícil e simetricamente sobre a raiva originada da mentira que convém a muitos a aos que a desfrutam. O que eu disse, eles não saberão admitir. O que eles dirão será indefinidamente contestado por minha demonstração. Sempre insisti, como nosso próprio mestre, sobre a necessidade de se reservar nossa doutrina aos mais nobres, aos mais bem testados.

Azar nosso se um dia, depois de mil perseguições, qualquer tribuno da plebe se metesse a aprovar nossas ideias, quanto mais delas se servir para dominar a cidade. Seria grande, então, o risco de um terror exercido pelo desespero e nele fundado. Pois assim como a nossa visão permite o máximo de liberdade para aquele que sabe penetrá-la e se calar, da mesma maneira poderia provocar a pior escravidão se fosse utilizada pelo poder do ressentimento medíocre e perverso ou pelo fanatismo policial.

O que nós defendemos é insuportável para a maioria. No entanto, foi correto correr o risco de revelá-lo. Mas esta revelação só alcança um a um, se assim posso dizer, ela o visa pessoalmente, você, leitor, e só você. Não somos filósofos como os outros, muito menos escritores ou poetas cuja superficialidade acrescenta ornamentos preciosos à filosofia. Não: nossa verdade está além, simultaneamente, da filosofia e da poesia. Ela é a ciência falando melodicamente ao ouvido humano. Jamais a ciência poderá dizer que estávamos errados, tal é a minha certeza. Talvez provisoriamente cometamos erros, mas eles acabarão se dissolvendo, nossa doutrina nem mesmo será afetada.

É preciso sempre voltar aos princípios: o mundo não é eterno, terá um fim, os astros não nos são superiores em nada, muito pelo contrário; os deuses são insensíveis tanto ao favorecimento quanto à cólera; o pensamento deve se expandir para além do vazio, o infinito, os átomos e o arco que os une. O maior criminoso é portanto aquele que faz apologia da religião, do modus, do nó. Assim, o que ele quer é mergulhar com você no prazer sombrio da morte imortal.

Conosco, um vampiro fácil de desmascarar, mas não sem um esforço sobre si próprio. Porque cada um de nós, formado como é da mesma mescla apaixonada, adere a esta paixão. Os nós sucederão aos nós, as ilusões às ilusões, as crenças às crenças. E invencivelmente a clara consciência da inanidade universal, livre, carregando seus turbilhões de corpos elementares, retornará sobre alguns poucos, e os arrebatará.

Quem sabe? Talvez virá uma época onde, pelo desenvolvimento sem fim da técnica, os homens poderão observar estas partículas das quais tudo é tecido. Nos acusaram de ter invocado fantasmas! Invenções de nossa imaginação sobrecarregada! E se ainda só falássemos das substâncias dos mundos! Sóis ou minerais! Mas sua raiva, é evidente, deriva sobretudo de nossa lucidez sobre o amor. Que tenhamos claramente descrito o papel e a pressão das sementes, os simulacros que se seguem, os sonhos decorrentes, as vanidades e apetites que se desdobram e devastam os destinos a partir do nada, este é o escândalo.

Mas, ainda uma vez, quem sabe? Quem poderá saber se não virá o tempo onde se poderá ver claramente o mecanismo do engendramento? A conjunção do macho e da fêmea? O princípio da fecundação? Vamos mais longe; não se pode pensar que será possível induzir aproximações, enxertos? Fabricar a vida de todas as peças a partir dos líquidos necessários? Loucura! dizem. Ou ainda: Horror! Como estão interessados em manter esse mistério onde sua vanidade se sustenta! Como amam seus charlatães, escritores, sacerdotes, filósofos! Arruinamos, até a raiz, sua pretensão delirante.

Percebemos, as provas virão, que a existência não tinha nenhuma razão fundamental, nenhuma justificação em si. Destruímos todos os nós apresentados como ligações respeitáveis. E em primeiro lugar, talvez, o incrível, o lamentável poder do espelho sobre o cérebro de nossa condição passageira. Como são grandes o orgulho e a cegueira terrestres!

Nosso orgulho é plenamente justificado. A maior humildade o garante. Olho o meu manuscrito. A disposição das palavras e letras é rigorosa. Ele fala da disposição de tudo que se pode ver, entender, tocar, sentir, falar. Uma mesma combinação regula os fenômenos físicos e o entrelaçamento das frases. Muito mais, sei que, graças ao infinito, esta constatação já teve lugar. Já me produzi, vivi, pensei tudo isso, tracei os sinais, não guardo nenhuma lembrança. A morte introduziu entre eu e eu um corte completo. Em que língua já escrevi este hino perdido? Não sei.

Em que língua, em que paisagem futura, será novamente escrito por mim que não terei a menor lembrança do que sou nesse instante? Impossível prever. Utilizará apenas os mesmos caracteres? Roma será Roma? E ainda haverá alguém para conhecer o segredo de Vênus? Nossa escola pode ser dispersa, vencida. Está inserido em uma ordem. Fiz o que devia fazer: ritmar seus conhecimentos para que eles sejam transmitidos e aprendidos de coração.

Agora o sol se põe. A sombra começa a se desvanecer sob o grande pinheiro para-sol da vila onde estou refugiado. Sei que me procuram. Sei exatamente quem, porque, como. Velha história! Vão me encontrar só. Vão folhear tudo sem encontrar o documento de que são obrigados a se apoderar a qualquer preço, antes de me matarem.

Vão me torturar talvez, os infames? Isso não é tão grave, o desfalecimento nos salva da sobre-humana dor. Acho mesmo que posso me incitar a terminar, a partir do interior, por uma espécie de interrupção da respiração que nos ensinou um dos nossos adeptos, um médico. Não, eles não conseguirão me tornar louco. Não, não vou me suicidar. É simplesmente a velha prisão humana que se fecha em si mesma para perpetuar sua impostura. Nós não somos desse mundo. Já o dissemos. Voltaremos a dizê-lo um dia.


Notas

1. De rerum natura, Livro VI, 1285-1286: [Alguns, com grande clamor, colocavam seus parentes sobre piras que tinham sido acumuladas para outros e depois chegavam-lhes as tochas], e preferiam bater-se, com grande derramamento de sangue, a abandonar aqueles corpos.

2. De rerum natura, Livro I, 1-2: Ó mãe dos Enéadas, prazer dos homens e dos deuses, [Alma Vênus | ó Vênus criadora].

Titus Lucretius Carus (Roma, ~98-55 a.C.). Da natureza das coisas é sua única obra conhecida. Lucrécio pretende ser o tradutor do pensamento do filósofo grego Epicuro de Samos (~341–270 a.C.) — discípulo de Demócrito de Abdera (séc. V a.C.) — e o intérprete de seu pensamento para uma cultura latina que pouco conhece o materialismo grego. A obra exerceu imensa influência no pensamento filosófico, sobretudo como referência para o materialismo (Spinoza, Marx e muitos outros).

  • autor: Philipe Sollers
  • fonte: Folha de São Paulo no domingo, 4 de setembro de 1983
  • Originalmente publicado no Le Monde | transcrição, Bernardo de Oliveira