O niilismo europeu

Friedrich Nietzsche

Selecionamos e reunimos aqui, seguindo uma ordem cronológica, alguns “Fragmentos Póstumos” de Nietzsche, inéditos no Brasil, extraídos das Oeuvres philosophiques completes (Éditions Gallimard, 1978), escritos en­tre os anos de 1885 a 1888 — portanto nos quatro últimos anos de sua produção intelectual — a propósito do niilismo europeu, que ele entende como sendo, em primeiro lugar, um fenômeno da modernidade que mer­gulha suas raízes na perspectiva moral do cristianismo e que se manifesta nos vários campos da cultura: na filosofia, na ciência, no pensamento polí­tico e econômico, na história e na arte.

O niilismo europeu moderno, que assumiu diversas conotações no curso da era moderna, nasce com a “morte de Deus”, com tudo o que este acon­tecimento crucial trouxe para o mundo da vida humana: uma consciência habitada pela ausência de sentido, pela indigência do conceito de totalida­de, pela visão do devir-nada, enfim, pela descrença no mundo metafísico. Já não é mais possível pensar com a perspectiva de um fim, com a noção de unidade, com a pretensão de uma verdade. Prevalece então o pathos do “em vão”, a vontade de nada, a negação da vida, o desespero.

Sobre a indicação bibliográfica: o número do volume na edição francesa vem em algarismos romanos; em seguida aparecem respectivamente: o número do caderno, o número do fragmento entre colchetes e o número da página. Sempre que os títulos dos fragmentos aparecem entre colche­tes, estes títulos foram dados por mim. (NCMS)

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XII 2[127]129 — [Niilismo e Cristianismo]

O niilismo está diante da nossa porta: de onde vem este que é o mais inquietante de todos os hóspedes?

1. Ponto de partida: é um erro ver nos “estados sociais de aflição”, ou nas “degenerações fisiológicas”, ou mesmo numa corrupção qualquer a causa do niilismo. Todas essas coisas admitem sempre interpretações total­mente diferentes. Ao contrário, é numa interpretação muito determinada, na interpretação moral-cristã, que se esconde o niilismo. Esta é a época mais honesta, mais compassiva. A angústia, a angústia espiritual, física, intelectual, é em si totalmente incapaz de produzir o niilismo, quer di­zer, a recusa radical de um valor, de um sentido, de algo desejável.

2. O declínio do cristianismo — vítima da sua própria moral [que é dele indissociável —], que se volta contra o Deus cristão [o sentido de vera­cidade, altamente desenvolvida pelo cristianismo, é assaltado pela aver­são diante da falsidade e da ambiguidade de toda a interpretação cristã do mundo e da história. Passagem por contragolpe de “Deus é a verda­de” à crença fanática de “Tudo é falso”. Budismo do ato…

3. O ceticismo em relação à moral constitui o elemento decisivo. O declínio da interpretação moral do mundo, que não encontra mais apro­vação, depois que ela tentou se refugiar num para-além: acaba no niilismo do “Nada tem sentido” [o caráter inutilizável de Uma interpretação do mundo à qual se consagrou uma força enorme — desperta a suspeita de que todas as interpretações do mundo poderiam ser falsas —]. Traço budista, nostalgia do nada. [O budismo hindu não tem atrás de si uma evolução completamente moral, esta é a razão por que não há nele, no seu niilismo, senão uma moral não-superada: existência como punição e existência como erro combinadas e, por conseguinte, o erro como punição — apreciação de valor moral]. As tentativas filosóficas para superar o “Deus moral” [Hegel panteísta]. Superação dos ideais popu­lares: o sábio. O santo. O poeta. Antagonismo de “verdadeiro” e de “belo” e “bom” — — —

4. Contra o “absurdo”, por um lado, contra os julgamentos de valor mo­rais, por outro: em que medida toda a ciência e toda a filosofia dependi­am até então de julgamentos morais? E não se ganha sobretudo, nesse mercado, a hostilidade da ciência? Ou da anticientificidade? Crítica do spinozismo. Os julgamentos de valor cristãos residuais, em todo lugar, nos sistemas socialistas e positivistas. Falta uma crítica da moral cristã.

5. As consequências niilistas da ciência da natureza atual [ao lado das suas tentativas para escapar do para-além]. Da sua atividade, resulta finalmente uma autodissolução, uma orientação contra si, uma anticientificidade. — Desde Copérnico, o homem rola do centro para um X.

6. As consequências niilistas do modo de pensamento político e econômico-político, onde todos os princípios saem progressivamente do cabotinismo: o sopro da mediocridade, da baixeza, da insinceridade etc.. O nacionalismo, o anarquismo etc.. Punição. Faltam a classe e o ho­mem salvadores, os justificadores —

7. As consequências niilistas da história e dos “historiadores práticos”, quer dizer, dos românticos. A posição da arte: ausência absoluta de origina­lidade da sua posição no mundo moderno. Seu assombramento. O pretenso olimpianismo de Goethe.

8. A arte e a preparação do niilismo. Romantismo [fim dos Nibelungen de Wagner].

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XII 5[71]211-217 — O niilismo europeu Lenzer Heide: 10 de junho de 1887

1

Quais são as vantagens que oferece a hipótese moral cristã?

1. ela conferia ao homem um valor absoluto, em oposição à sua pequenez e à sua natureza fortuita no fluxo do devir e do desaparecer
2. ela servia aos advogados de Deus, na medida em que franqueava ao mundo, apesar do sofrimento e do mal, um caráter de perfeição, — aí incluída esta “liberdade” — o mal parecia pleno de sentido
3. ela coloca no homem um saber que assenta em valores absolutos e lhe traz assim um conhecimento adequado sobre o que, precisamente, é o mais importante, ela impedia que o homem se desprezasse enquanto homem, que ele tomasse partido contra a vida, que ele desistisse do conhecimento: ela era um meio de sobrevivência: — no todo: a moral era o grande remédio contra o niilismo prático e teórico.

2

Mas, dentre as forças que a moral desenvolveu, estava a veracidade: esta se volta finalmente contra a moral, descobre a sua teleologia, a sua perspectiva interessada — e eis que a visão desta tendência inveterada para a mentira, da qual se desiste de se livrar, age justamente como um estimulante. Para o niilismo. Constatamos agora a presença em nós de necessidades implanta­das pela longa interpretação moral, e que nos aparecem também como ne­cessidades do não-verdadeiro: por outro lado, é a elas que parece estar liga­do o valor graças ao qual suportamos viver. Este antagonismo — não avaliar o que conhecemos, não mais ter o direito de avaliar as mentiras nas quais gostamos de nos embalar — desencadeia um processo de dissolução.

3

De fato, temos muita necessidade de um remédio contra o primeiro niilismo: a vida não é mais a tal ponto incerta, arriscada, absurda na nossa Europa. Uma tão monstruosa superestimação do valor do homem, do valor do mal etc., não é mais tão necessária hoje, suportamos uma redução consi­derável deste valor, podemos admitir muito absurdo e acaso: o poder al­cançado pelo homem permite hoje uma depreciação dos meios disciplinares cuja interpretação moral era a mais forte. “Deus” é uma hipótese bastante extrema.

4

Mas as posições extremas não são substituídas pelas posições modera­das, mas por novas posições extremas, porém, inversas. É por isso que se acredita na imoralidade absoluta da natureza, na ausência de finalidade e de sentido dos afetos psicologicamente necessários, logo que a crença em Deus e numa ordem essencialmente moral não é mais defensável. O niilismo aparece hoje, não porque o desprezo da existência seja maior do que foi anteriormente, mas porque nos tornamos geralmente desconfiados em relação a um “sentido” do mal, ou mesmo da existência. Uma interpreta­ção desabou; mas, pelo fato de que ela passava por ser “a interpretação”, parece que não há mais qualquer sentido na existência, que tudo é em vão.

5

Mas precisa ser ainda demonstrado que este “em vão!” é a característica do nosso niilismo atual. A desconfiança das nossas apreciações de valor anteriores culmina na questão: “todos os «valores» não seriam chamarizes graças aos quais a comédia fica rendendo, sem com isso se aproximar de um desfecho?” A duração, com um “em vão”, sem propósito ou fim, consti­tui o pensamento mais paralisante, sobretudo quando se compreende que se foi enganado, e não obstante impotente para não se deixar enganar.

6

Pensemos este pensamento na sua mais terrível forma: a existência, tal como ela é, privada de sentido e de finalidade, mas se repetindo inelutavelmente, sem acabar no nada: “o eterno retorno”.

Esta é a forma mais extrema do niilismo: o nada [a ausência de sentido] eterno!

Forma europeia do budismo: a energia do saber e da força impõe esta crença. Esta é a mais científica de todas as hipóteses possíveis. Negamos os últimos fins: se a existência tivesse um, ele deveria ter sido já alcançado.

7

Portanto, compreende-se que aqui se aspira o contrário do panteísmo: pois “Tudo que é perfeito, divino, eterno” impõe também uma crença no “eter­no retorno”. Pergunta: esta posição panteísta do “sim” a todas as coisas se tornou impossível junto com a moral? No fundo, somente o Deus moral foi superado. Há algum sentido em se imaginar um Deus “para-além do bem e do mal”? Um panteísmo seria possível nesse sentido? Excluímos do processo a representação do objetivo, dizendo apesar de tudo “sim” ao pro­cesso? — Este seria o caso se, no interior deste processo e em cada um dos seus momentos, algo fosse alcançado — e sempre a mesma coisa.

Spinoza havia chegado a esta posição do “sim”, na medida em que cada momento possui uma necessidade lógica: e, com o seu instinto fundamen­talmente lógico, ele venceu um mundo assim conformado.

8

Mas o seu caso não é um caso isolado. Todo traço de caráter fundamental que se encontra no fundo de todo acontecimento, que se exprime em todo acontecimento, deveria, se ele é sentido por um indivíduo como seu próprio traço de caráter fundamental, levar este indivíduo a aprovar vitoriosamente cada instante da existência universal. Tratar-se-ia somente de sentir em si este traço de caráter fundamental como bom, precioso, gerador de prazer.

9

Mas a moral protegeu a vida do desespero e do salto para o nada, nos homens e nas classes sociais que violentavam e oprimiam os outros ho­mens: pois é a impotência diante dos homens, não a impotência diante da natureza, que engendra a amargura mais desesperada diante da existência. A moral tratou os defensores do poder, os defensores da violência, os “senhores” em geral, como os inimigos contra os quais o «homem» co­mum devia ser protegido, quer dizer, em primeiro lugar, encorajado e confortado. A moral ensinou por conseguinte a odiar e a desprezar o mais profunda­mente possível o que constitui o traço de caráter fundamental dos dominadores: sua vontade de poder. Eliminar, negar, despedaçar esta moral: isto seria conferir ao instinto mais odioso uma qualidade afetiva e uma valorização inversas. Se o homem sofredor, o oprimido, perdesse a convicção de que ele tem o direito de desprezar a vontade de poder, ele seria encurra­lado num estado de desespero sem recurso. Este seria o caso, se este traço fosse essencial à vida, se ele revelasse que, mesmo nesta “vontade moral”, só há “vontade de poder” disfarçada, que mesmo este ódio e este despre­zo continuam sendo uma vontade de poder. O oprimido se daria conta de que ele está no mesmo plano do opressor e que ele não tem em si qualquer privilégio, qualquer precedência.

10

Ocorre antes o inverso! Não há nada na vida que tenha valor, a não ser o grau de poder — a supor justamente que a própria vida seja vontade de poder. A moral protegia os malogrados do niilismo, conferindo a cada um deles um valor infinito, um valor metafísico, e o inserindo numa ordem que não está de acordo com aquela do poder e da hierarquia mundanos: ela ensinava o devotamento, a humildade etc.. A supor que a fé nesta moral fosse aniquilada, os malogrados perderiam sua consolação — e seriam aniquilados.

11

Este aniquilamento se apresenta como um — autoaniquilamento, como uma escolha instintiva daquilo que deve destruir. Sintomas desta autodestruição dos malogrados: a autovivissecção, o envenenamento, a embria­guez, o romantismo, sobretudo a necessidade instintiva de cometer ações através das quais se faz dos poderosos seus inimigos mortais [criando eles mesmos, por assim dizer, os seus carrascos], a vontade de destruição como vontade de um instinto ainda mais profundo, o instinto de autodestruição, a vontade de nada.

12

O niilismo como sintoma daquilo que os malogrados não têm mais consolo: daquilo que eles destroem para serem destruídos, daquilo que, afastados da moral, eles não têm mais por que “se sacrificar” — daquilo que eles se colocam no terreno do princípio contrário e querem também por sua vez o poder, obrigando os poderosos a serem seus verdugos. Esta é a forma europeia do budismo, o fazer-negativo, uma em que toda a existên­cia perdeu o seu “sentido”.

13

Não é somente a “angústia” que cresce: pelo contrário! “Deus, moral, sacrifício” eram os remédios, para os níveis terrivelmente baixos do desenlace: o niilismo ativo aparece em circunstâncias relativamente bem mais favoráveis. O simples fato de que a moral seja sentida como superada pressupõe um grau apreciável de cultura intelectual; e esta, por sua vez, um relativo bem-estar. Uma certa lassidão intelectual, que o longo com­bate entre opiniões filosóficas conduziu a um ceticismo desesperado em relação à filosofia, caracteriza também o estado destes niilistas, que não têm nada de inferior. Pensemos na situação em que apareceu Buda. A dou­trina do eterno retorno teria pressupostos eruditos [como tinha na doutri­na de Buda, por exemplo, o conceito de causalidade etc.].

14

O que significa hoje “malogrado”? Seu significado é sobretudo fisiológico: mais político. O tipo de homem menos saudável na Europa [em todas as classes] constitui o terreno deste niilismo: ele sentirá a crença no eterno retorno como uma maldição, uma maldição tal que, uma vez que ela os atingiu, não se recua mais diante de qualquer ação: não se extinguir passi­vamente, mas provocar a extinção daquilo que chegou a este ponto privado de sentido e finalidade: ainda que não haja senão crispação e furor cego na revelação de que tudo existia desde a eternidade — aí compreendido este momento de niilismo e prazer de destruir. — O valor de uma tal crise é que ela purifica, concentra os elementos aparentados e os faz se corromper mutuamente, atribui aos homens de mentalidades opostas tarefas comuns — trazendo assim à luz os mais fracos, os mais incertos entre eles, ainda que ela dê assim o impulso, do ponto de vista da saúde, a uma hierarquia das forças: reconhecendo como tais os que comandam, como tais os que obe­decem. Naturalmente, fora de todas as estruturas sociais existentes.

15

Que homens se revelaram então como sendo os mais fortes? Os mais comedidos, aqueles que não somente admitem uma boa dose de acaso e de absurdo, mas a desejam, aqueles que podem pensar no homem com uma considerável redução do seu valor, sem se tornar por isso pequenos ou fracos: os mais ricos de saúde, que são capazes de enfrentar a maior parte das infelicidades e portanto não temem assim as infelicidades — os homens que estão certos do seu poder e que representam com um orgulho consciente a força alcançada pelo homem.

16

Como um homem assim pensaria no eterno retorno? —

***

XIII 9[35]27-29 — [Niilismo Ativo e Niilismo Passivo]

1. O niilismo um estado normal

Niilismo: falta a finalidade; falta a resposta ao “para que?”; o que significa niilismo? — que os valores supremos se desvalorizam.

Isto é duvidoso:

A. Niilismo enquanto sinal do poder aumentado do espírito: enquanto niilismo ativo. Pode ser um sinal de força: a força do espírito pôde crescer de tal maneira, que os alvos fixados até então [“convicções”, artigos de fé] não estavam à sua altura

— de fato, uma crença exprime geralmente a violência das condições de existência, uma submissão à autoridade das circunstâncias nas quais um ser prospera, adquire poder…

Por outro lado, um sinal de força insuficiente para poder produtiva­mente se atribuir um novo fim, um porquê, uma crença.

Ele atinge seu maximum de força relativa enquanto força violenta da destruição: enquanto niilismo ativo. Seu contrário seria o niilismo esgotado que para de atacar: sua forma mais célebre, o budismo: enquanto niilismo passivo.

O niilismo representa um patológico estado intermediário [patológica é a enorme generalização, a conclusão de uma ausência total de sentido]: seja porque as forças produtivas não são ainda bastante poderosas; seja porque a décadence hesita e os remédios não foram ainda inventados.

B. Niilismo enquanto declínio e regressão do poder do espírito: o niilismo passivo: enquanto sinal de fraqueza: a força do espírito pode estar cansada, esgotada, de maneira que os objetivos e os valores até então predominantes são agora inadequados, impróprios e não encontram mais credibilidade — na medida em que a síntese dos valores e dos fins [sobre a qual repousa o poder de uma cultura] se dissolve, ainda que os diferentes valores estejam em guerra: decomposição na medida em que tudo o que reconforta, cura, tranquiliza, atordoa, passa para o primeiro plano, sob diversos disfarces: religiosos, morais, políticos, estéticos etc.

2. Pressupostos desta hipótese

Que não há absolutamente verdade; que não há qualquer conformação absoluta das coisas, qualquer “coisa em si”

— isto mesmo é um niilismo, e, para falar a verdade, o mais extremo. Ele coloca o valor das coisas precisamente no fato de que nenhuma realidade corresponde a este valor, mas somente um sintoma de forças naqueles que instituíram os valores, uma simplificação dos fins da vida.

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XIII 9[43]31-33 — [Niilismo Extremo]

A questão do niilismo “para que?” procede do velho hábito de considerar o fim como posto, como dado, exigido do exterior — ou seja, por uma autorida­de supra-humana qualquer. A partir do momento em que se esqueceu de acre­ditar nisso, se procurou também, seguindo este velho hábito, uma outra au­toridade que pudesse falar absolutamente, comandar os fins e as tarefas. A autori­dade da consciência passa agora para o primeiro plano [quanto mais ela se liberta da teologia, mais a moral se torna imperativa]: enquanto sucedâneo compensatório da perda de uma autoridade pessoal. Ou é a autoridade da ra­zão. Ou é o instinto social [o rebanho]. Ou ainda a ciência histórica com um espírito imanente, que tem seu fim em si mesma, à qual se pode apelar. Gostar-se-ia de poder contornar a vontade, o fato de querer um fim, o risco de fixar um si-mesmo, gostar-se-ia de se desonerar de toda responsabilidade [— aceitar-se-ia o fatalismo]. Enfim: a felicidade e, com alguma tartufaria, a felicidade da maioria

fins individuais e seu conflito

fins coletivos em luta contra os fins individuais. Fazendo isso, cada um toma um partido, também os filósofos.

E se diz:
1] um fim determinado não é absolutamente necessário
2] não é absolutamente previsível.

No momento mesmo em que a força suprema da vontade fosse exigida, ela estaria no seu grau mais fraco e mais pusilânime.

Desconfiança absoluta em relação à força organizadora da vontade para a totalidade. Época em que todas as “apreciações de valor intuitivas” passam, su­cessivamente, ao primeiro plano, como se pudesse receber delas as diretrizes, das quais se fica por outro lado privado.

— “por que?” a resposta é exigida

1. pela consciência
2. pelo impulso para a felicidade
3. pelo “instinto social” [gregário]
4. pela razão [“espírito”] — somente para não se ter nada a querer, não se ter absolutamente de impor a si o “para que”
5. enfim, o fatalismo, “não há absolutamente resposta”, mas “isto leva a al­gum lugar”, “é impossível querer um porquê” com devotamento… ou revolta… Agnosticismo em relação ao fim
6. enfim [a negação enquanto porquê da vida; a vida enquanto algo que se concebe enquanto não-valor e finalmente se liquida.

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XIII 9[44]33-34 — [Origens do Niilismo]

Para a terceira digressão

Ponto de vista principal: que se abstenha de considerar a tarefa da espécie superior como se ela consistisse em dirigir a inferior [assim como, por exemplo, o faz Comte —], mas antes a inferior como base sobre a qual uma espécie superior vive para a sua tarefa própria, — sobre cuja base ela pudesse primeiramente se manter.

as condições nas quais a espécie forte e nobre se conserva [em relação a uma disciplina espiritual], são o inverso daquelas em que se encontram as “massas industriais” dos lojistas à la Spencer.

O que só é permitido às naturezas mais fortes e mais fecundas, para tornar possível a sua existência — ociosidade, aventura, incredulidade e mesmo orgia — tudo isso, colocado à disposição das naturezas medianas, as des­truiria necessariamente — o que ocorre efetivamente. Aqui, o labor assí­duo, a regra, a moderação, a firme “convicção” estão no seu devido lugar, — em suma, as virtudes gregárias: graças às quais este tipo de homem médio atinge a sua perfeição.

Origens do niilismo:

1. ausência da espécie superior, quer dizer, aquela cuja fecundidade e po­der inesgotáveis mantêm a crença no homem. [Que se pense em tudo o que se deve a Napoleão: quase todas as esperanças superi­ores deste século].

2. a espécie inferior “rebanho” “massa” “sociedade” esquece a modéstia e incha suas necessidades com valores cósmicos e metafísicos. Assim, toda a existência fica vulgarizada: de fato, na medida em que reina a massa, ela tiraniza as exceções tanto e de tal modo, que estas perdem a fé em si mesmas e se tornam niilistas.

Todas as tentativas de imaginar os tipos superiores malograram [“roman­tismo”, o artista, o filósofo, contra a tentativa de Carlyle para atribuir-lhes os supremos valores morais].

Resistência contra os tipos superiores, como resultado.

Declínio e incerteza de todos os tipos superiores: luta contra o gênio [“poesia popular” etc.]. A compaixão para com os inferiores e os sofredores, como critério de elevação da alma.

falta o filósofo, o exegeta do ato, não somente o re-inventor poético.

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XIII 10[192]202 — [Niilismo Radical]

Para o plano

O niilismo radical é a convicção do caráter absolutamente insustentável da existência, logo que «se trata» dos valores supremos que se reconhece nela, aí incluída a compreensão de que não temos o menor direito de colocar um para-além ou um em-si das coisas, que fosse “divino”, a imagem viva da moral.

Esta compreensão é uma consequência da “veracidade” levada à sua maturidade; e assim, é inclusive uma consequência da crença na moral.

Eis a antinomia: na medida em que acreditamos na moral, condenamos a existência.

A lógica do pessimismo até o último niilismo: do que se trata aí? — a noção de falta de valor, da insignificância: em que medida as avaliações morais se ocultam atrás de todas as outras avaliações.

— Resultado: as avaliações morais são condenações, a moral é o desvio da vontade de existir…

Problema: mas então, o que é a moral?

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XIII 11[99]242-245 — Crítica do niilismo

1

O niilismo enquanto estado psicológico deverá ocorrer em primeiro lugar quando tivermos buscado em todo acontecimento um sentido que não se encontra nele: de maneira que aquele que busca acabará por perder a coragem. O niilismo será então a consciência progressiva de um longo desperdício de for­ça, o tormento do “Em vão”, a insegurança, a falta de condições para de algum modo se reconciliar, para poder se tranquilizar sobre o que quer que seja — a vergonha de si mesmo por se estar entregue a uma muito longa impostura… Poderia ter havido um tal sentido: o “cumprimento” de um su­premo cânone moral em todo acontecimento; a ordem moral universal; ou o crescimento do amor e da harmonia entre os seres; ou a aproximação de um estado de nada universal — um fim é sempre um sentido. O que é comum a todas as representações deste tipo é que uma coisa qualquer deve ser alcançada pelo próprio processo: — mas eis que se compreende que o devir não atinge nada, não alcança nada… Portanto, a decepção quanto a um pretenso fim do devir é a causa do niilismo: quer ele se manifeste em relação a um fim absolutamente determinado, quer, sob a forma de uma compre­ensão generalizada, em relação à insuficiência de todas as hipóteses, finalistas até então, que dizem respeito ao conjunto da “evolução” [o homem não é mais o colaborador, menos ainda o centro do devir].

O niilismo enquanto estado psicológico ocorreu em segundo lugar quan­do se supôs uma totalidade, uma sistematização, ou seja, uma organização em todo acontecimento e subjacente a todo acontecimento: de maneira que é na representação de uma forma suprema de dominação e de organização que a alma transtornada de veneração e de admiração chega a se saciar [caso seja ela uma alma de lógico, basta a conclusão absoluta e uma dialética rigorosa para reconciliá-la com todas as coisas…]. Uma espécie de unida­de, uma forma qualquer de “monismo”: e em consequência desta crença, o homem se encontra num profundo sentimento de correlação e de de­pendência para com uma totalidade que o ultrapassa infinitamente, um modo da divindade… “O bem da totalidade exige o devotamento do indi­víduo”, (…) mas eis que não existe absolutamente semelhante totalidade! No fundo, o homem perdeu a fé no seu próprio valor, logo que nele não agia mais uma totalidade de valor infinito: o que significa dizer que foi para poder acreditar no seu próprio valor que ele concebeu esta totalidade.

O niilismo enquanto estado psicológico tem ainda uma terceira e última forma. Uma vez dadas estas duas visões, a saber, que o devir não chega a nada, que não se deve esperar que ele chegue a algum lugar e que, apesar de todo o devir, nenhuma grande unidade reina aí, uma unidade na qual o indivíduo pudesse mergulhar como numa coisa de supremo valor: não resta outra escapatória senão a de condenar completamente este mundo do devir como ilusório e inventar um outro mundo, para-além deste mundo, como sendo o mundo verdadeiro. Mas logo que o homem chega a perceber que este mundo só é construído de necessidades psicológicas e que nada absolutamente autoriza uma tal construção, se produz a última forma de niilismo, que inclui a descrença em relação a um mundo metafísico, — portanto, uma forma que proíbe a crença num mundo verdadeiro. A partir desse pon­to de vista, se concede à realidade do devir como sendo a única realidade e se proíbe qualquer caminho desviado que levaria a outros-mundos e a falsas divindades — mas não se suporta absolutamente este mundo daqui, que por outro lado não se poderia negar…

— O que se passou exatamente? O sentimento de ausência de valor veio à luz quando se compreendeu que o caráter da existência no seu conjunto não poderia ser interpretado nem pelo conceito de “fim”, nem pelo con­ceito de “unidade”, nem pelo conceito de “verdade”. Assim, não se chegou a nada, nem se alcançou nada; falta na pluralidade dos acontecimentos uma unidade que a supere e a englobe: o caráter da existência não deve ser “verdadeiro”, ela é falsa… não se tem simplesmente mais qualquer razão para imaginar um mundo verdadeiro…

Em suma: as categorias de “fim”, “unidade” e “ser”, por intermédio das quais infiltramos um valor no mundo, eis o que excluímos dele — e agora o mundo parece sem valor…

2

Admitindo hipoteticamente que reconhecemos até que ponto não se poderia mais interpretar por meio dessas três categorias e que, a partir des­ta compreensão, o mundo começou a perder todo o valor para nós: seria preciso então perguntar de onde vem a nossa crença nestas três categorias, — tentemos ver se é possível negar a nossa crença nelas! Logo que desvalo­rizamos estas três categorias, por ter provado que elas são inaplicáveis ao todo, não há mais qualquer razão por que desvalorizar o todo.

*

Resultado: a crença nas categorias da razão é a causa do niilismo, — medimos o valor do mundo com estas categorias, que saem de um mun­do puramente fictício.

*

Resultado final: todos os valores por meio dos quais até agora busca­mos tornar o mundo apreciável e assim mesmo acabamos por depreciá-lo, logo que eles se revelaram inaplicáveis — todos estes valores, para reavaliá-los psicologicamente, são apenas os resultados de certas perspectivas de utilidade adequadas para manter e aumentar as formas de dominação hu­mana: perspectivas que são falaciosamente projetadas na essência das coisas. É sempre a mesma ingenuidade hiperbólica do homem que o leva «a se tomar» como o sentido e a medida do valor das coisas…

***

XIII 11[119]250-251 — [Advento do Niilismo]

Para o prefácio

Eu descrevo o que virá: o advento do niilismo. Tenho aqui o que des­crever, porque aqui se produz algo de necessário — os sinais disso estão em todo lugar manifestos, somente faltam ainda os olhos para estes sinais. Louvo, não censuro aqui o fato de que ele virá: acredito que haverá uma das maiores crises, um momento do mais profundo retornar-a-si do homem: saber se o homem se reconhecerá, se ele dominará esta crise, esta é uma questão que depende da sua força: isto é possível…

O homem moderno acredita de maneira experimental tanto neste como naquele valor, com o risco de deixá-los desabar: a esfera dos valores ultra­passados e decaídos aumenta sem cessar; o vazio e a indigência dos valores se tornam cada vez mais sensíveis: movimento irresistível — apesar de uma tentativa de grande envergadura para retardar seu efeito —

Enfim, o homem moderno arrisca de uma maneira geral uma crítica dos valores; ele reconhece as origens deles; e reconhece isso o bastante para não mais acreditar em qualquer valor: eis o pathos, o novo estremecimento…

O que conto aqui é a história dos dois séculos vindouros…

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XIII 11[150]262-263 — Para a história do niilismo europeu

O período de obscuridade, as tentativas de todos os tipos para conservar o antigo e não deixar escapar o novo.

O período de clareza: compreende-se que o antigo e o novo são fundamen­talmente contrários: os antigos valores nascidos da vida declinante, os no­vos da vida em pleno voo, — «que» o conhecimento da natureza e da história não nos permite mais estas “esperanças”, — que todos os antigos ideais são hostis à vida [nascidos da décadence e determinando a décadence, ainda que sob os suntuosos hábitos do domingo da moral] — compreende­mos o antigo e estamos longe de ser bastante fortes para o novo.

O período dos três grande afetos

o desprezo
a compaixão
a destruição.

O período da catástrofe

o surgimento de uma doutrina que passa pelo crivo dos homens…, que leva os fracos a tomar resoluções, assim como os fortes.

***

XIII 11[411]362-363 — [História do Niilismo]

Prefácio

1

As grandes coisas exigem que se guarde silêncio a respeito delas ou que se fale delas com grandeza: com grandeza, quer dizer, cinicamente, e com inocência.

2

O que eu conto aqui é a história dos dois séculos vindouros. Eu descrevo o que virá, o que não pode mais vir de outra maneira: o adven­to do niilismo. Esta história pode ser relatada a partir de agora: pois é a própria necessidade que o exige. Este futuro fala já através de mil si­nais, este destino se anuncia em todo lugar: para esta música do futuro, todos os ouvidos estão desde já afinados. Toda a nossa cultura europeia se pôs já há muito tempo numa torturante tensão que cresce com as décadas, como levando a uma catástrofe: inquieta, violenta, precipita­da: como um fluxo que quer se extinguir, que não procura mais retornar a si, que teme retornar a si.

3

— Este que toma aqui a palavra não tem, ao contrário, nada a fazer até agora senão retornar a si: como filósofo e eremita de instinto, que buscava sua vantagem no fato de ficar à parte, fora, na paciência, na dilação, na demora; enquanto espírito que arrisca e experimenta, que foi já extravia­do uma vez em cada labirinto do futuro: como espírito agoureiro, que olha para trás quando conta o que virá; como o primeiro perfeito niilista da Europa, mas que viveu já em si mesmo o niilismo até o seu termo — que o tem atrás de si, acima de si, fora de si…

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E, de fato, que não se fique enganado com o sentido do título, pelo qual se vai denominar este Evangelho do futuro: “A Vontade de Poder. Tentativa de uma inversão de todos os valores” — fórmula pela qual se expressa um contramovimento, quanto ao princípio e à tarefa: um movimento que, num futuro qualquer, tomará o lugar deste niilismo completo; que no entanto o pressupõe, logicamente e psicologicamente; que de qualquer maneira só pode se referir a si e só pode proceder de si. Mas por que o advento do niilismo é agora necessário? Porque são os nossos próprios valores que, nele, tiram a sua última consequência; porque o niilismo é a lógica, levada até o seu termo, dos nossos grandes valores e dos nossos ideais, — porque é preciso que vivamos o niilismo para desvelar qual era o valor propriamente dito destes “valores”… Será preciso, num momento qualquer, novos valores…

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XIV 14[9]28-29 — [Niilismo e Cristianismo]

Nada será mais útil e mais digno de ser incentivado do que um niilismo consequente em ação.

: tal como eu compreendo todos os fenômenos do cristianismo, do pessimismo, «eis o que» eles exprimem: “estamos maduros para não ser; para nós, é razoável não ser”

esta linguagem da “razão” seria nesse caso também a linguagem da Na­tureza seletiva.

Mas o que se deve efetivamente condenar é este caráter duvidoso e inconsequente de uma religião, tal como é o cristianismo: ou, mais exata­mente, da Igreja, que, em vez de encorajar para a morte e para a autodestruição, protege tudo o que é doente e malogrado, e permite que isto se reproduza.

Problema: com que tipo de meios se poderia atingir uma forma estrita do grande niilismo contagioso: uma forma que, com uma probidade total­mente científica, ensina e pratica a morte voluntária… [e não a arte de continuar vegetando miseravelmente, prevendo uma “pós-existência” falaciosa —].

Não se poderia condenar muito severamente o cristianismo, porque ele depreciou o valor deste grande niilismo purificador [tal como estava tal­vez em marcha], com a ideia da pessoa privada imortal: assim também com a esperança de ressurreição: em suma, sempre impedindo o ato do niilismo, o suicídio… Ele o substituiu pelo lento suicídio: pouco a pouco, uma vida mesquinha e pobre, mas durável, cada vez menor, uma vida bur­guesa, medíocre e completamente ordinária, etc.

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XIV [7]274-275 — [História do Niilismo]

Não se trata absolutamente do melhor ou do pior dos mundos: “não” ou “sim”, esta é aqui a questão. O instinto nihilista diz não; sua afirmação mais moderada é que não-ser vale mais do que ser, que o desejo de nada tem mais valor do que o querer-viver; sua afirmação mais rigorosa é que, se o nada é o que há de mais desejável, esta vida, enquanto sua antítese, é absolutamente sem valor — condenável…

Inspirando-se nestes julgamentos de valor, um pensador buscará involuntariamente que todas as coisas às quais ele atribui ainda instintiva­mente valor prestem o seu serviço, para a justificação de uma tendência niilista. Esta é sobretudo a grande impostura de Schopenhauer, que tinha um interesse muito vivido em muitas coisas: mas o espírito do niilismo lhe proibia atribuir isto ao querer-viver: além disso, vemos uma série de ensaios sutis e ousados para atribuir honra à arte, à sabedoria, à beleza da natureza, à religião, à moral, ao gênio, fazendo disso, por causa da sua aparente hostilidade para com a vida, desejos do nada.

  • Seleção, apresentação e tradução: Noéli Correia de Melo Sobrinho
  • Comum - Rio de Janeiro - v. 8 - nº 21 - p. 5 a 23 - julho / dezembro 2003