Teeteto

Platão

I.

Euclides — Voltaste há pouco do campo, Terpsião, ou já faz tempo?

TerpsiãoFaz bastante tempo; procurei-te na praça do mercado e estranhei não encontrar-te.

Euclides — É que não me achava na cidade.

Terpsião — Por onde andavas?

Euclides — Havia baixado ao porto, quando en­contrei Teeteto, que transportavam do acampamento de Corinto para Atenas.

Terpsião — Morto ou vivo?

Euclides — Vivo, porém muito mal; ressente-se bastante dos ferimentos recebidos. Porém o pior é ter apanhado a doença que atacou as tropas.

Terpsião — Disenteria, talvez?

Euclides — Exato.

Terpsião — Pelo que dizes, estamos na iminên­cia de perder um homem e tanto!

Euclides — De muito merecimento, Terpsião. Agora mesmo, ouvi fazerem-lhe os maiores elogios, pelo modo por que se houve na batalha.

Terpsião — Não é de admirar. Estranho seria se ele fosse diferente. Mas, por que não ficou aqui em Mégara conosco?

Euclides — Tinha pressa de chegar a casa. In­sisti com ele e o aconselhei muito; porém não se deixou convencer. Por isso, o acompanhei: e, ao retornar, lembrei-me, com admiração, de como Sócrates foi bom profeta a respeito de muita coisa e também de Teeteto. Se mal não me lembro, pouco antes de morrer ele encontrou Teeteto, que ainda era adolescente. Ambos a se conhecerem, e logo a conversar, tendo ficado Sócrates encantado com a natureza do rapaz. Quando estive em Atenas, Só­crates me falou pormenorizadamente na conversa que então mantiveram, muito digna de ouvir, tendo acrescentado que se ele chegasse a ser homem, fatal­mente se tornaria célebre.

Terpsião — Só falou a verdade, como parece. E a respeito de quê conversaram, poderias dizer-me?

Euclides — Não, por Zeus! Assim, de improviso, não me seria possível. Porém logo que cheguei a casa, tomei alguns apontamentos sobre o que mais me impressionara, havendo posteriormente redigido mais de estudo o que me acudia à memória. Além do mais, sempre que ia a Atenas, interrogava Só­crates acerca do que não me recordava com minú­cias e, de regresso, corrigia meu trabalho. Foi assim que, praticamente, consegui reproduzir todo o diá­logo.

Terpsião — É verdade; já te ouvira falar nisso, e sempre tinha intenção de pedir que mo mostrasses, o que vinha diferindo até hoje. Mas, que nos impede de o lermos agora mesmo? Tanto mais, que preciso descansar, pois acabo de chegar do campo.

Euclides — Eu, também, acompanhei Teeteto até Erínio; por isso, uma pausa, agora, não seria nada mal. Vamos entrar; enquanto repousamos, meu escravo nos fará essa leitura.

Terpsião — Ótima ideia.

Euclides — Aqui tens, Terpsião, o livro. Porém redigi de tal modo o diálogo, que em vez de Sócrates me relatar o ocorrido, como o fez, entretém-se com os que ele próprio declarou terem tomado parte na conversação. Referia-se ao geômetra Teodoro e a Teeteto. Para não sobrecarregar o escrito com tantas fórmulas intercaladas no discurso, sempre que Sócrates fala: Digo, ou Afirmo, ou, com referência aos interlocutores: Concordou, Não concordou, dei ao trabalho feição de um diálogo direto entre ele e os dois opositores, com exclusão de tudo aquilo.

Terpsião — Foi uma excelente ideia, Euclides.

II.

Sócrates — Se eu me interessasse, Teo­doro, particularmente pelas coisas de Cirene, não deixaria de interrogar-te sobre seus homens e o que acontece por lá, como, por exemplo, se entre os jovens há quem se dedique ao estudo da geometria ou a outros ramos do saber. Porém como me preocupo menos com eles do que com os de casa tenho muito mais curiosidade de saber quais dos nossos adolescentes revelam maior probabilidade de distinguir-se. É do que sempre procuro informar-me com o maior empenho, e para isso interrogo as pessoas cuja companhia eles frequentam. Ora, és tu quem reúne à tua volta o maior número de rapazes, e com razão, não só pelo merecimento próprio como pela atração da geometria. Por isso, caso te­nhas encontrado algum jovem digno de menção, com muito prazer ouvirei o que disseres.

Teodoro — Efetivamente, Sócrates, vale tanto a pena eu falar como ouvires a respeito de um ado­lescente que descobri entre vossos concidadãos. Se se tratasse de um belo rapaz, teria medo de mani­festar-me, para não pensarem que eu o fazia como apaixonado. Porém a verdade — sem querer ofen­der-te — é que ele não é nada belo; parece-se contigo em ter o nariz chato e os olhos saltados, aliás em grau menos acentuado. Por isso, falo sem o menor constrangimento. Sabe, pois, que no meio de tantos jovens que até agora conheci — e não têm conta os com que já tenho conversado — não encontrei ne­nhum com tão maravilhosa natureza. A facilidade de aprender como apenas se encontraria em mais alguém, uma docilidade única, associada a singular valentia são qualidades que nunca imaginei pudessem existir ou que ainda venhamos a encontrar. De fato, os que são dotados de igual vivacidade, enten­dimento rápido, boa memória, de regra são sujeitos a acessos de cólera e se deixam levar à matroca, como navio sem lastro, sobre se revelarem mais impulsivos do que realmente corajosos. Os mais ponderados são algum tanto preguiçosos e sumamente esquecidos. Este, pelo contrário, avança com naturalidade e segurança na senda do saber e da pesquisa, com doçura igual ao do óleo que escorre sem bulha, que admira com tão poucos anos já tenha feito o que fez.

Sócrates — Ótima notícia! Mas de qual dos nossos concidadãos ele é filho?

Teodoro — Já lhe ouvi o nome, porém não me ocorre neste momento. Mas ali vem ele, no meio daquele grupo que se aproxima. Agora mesmo, na galeria externa, ele e seus amigos acabaram de pas­sar óleo no corpo. Concluída essa parte, tenho a impressão de que vêm para cá. Vê se o conheces.

Sócrates — Conheço; é filho de Eufrônio, de Símio, um homem, meu caro, exatamente como dis­seste ser o filho, de reputação excelente e que, ade­mais, deixou um patrimônio considerável. Porém não sei como o filho se chama.

Teodoro — Chama-se Teeteto, Sócrates. Quanto ao patrimônio, tenho ideia de que os tutores se incumbiram de gastar, o que não o impede, aliás, de ser de uma liberalidade incrível em matéria de dinheiro.

Sócrates — Pelo que dizes, é pessoa de caráter. Convida-o para vir sentar-se ao nosso lado.

Teodoro — Agora mesmo. Teeteto, vem para perto de Sócrates!

Sócrates — Isso mesmo, Teeteto, para que eu próprio me contemple e veja como tenho o rosto. Diz Teodoro que é parecido com o teu. Porém, se cada um de nós tivesse uma lira e ele declarasse que ambas estavam com igual afinação, dar-lhe-íamos crédito de imediato, ou primeiro procuraría­mos certificar-nos se ele entende de música, para falar com autoridade?

Teeteto — Sim, primeiro nos certificaríamos disso.

Sócrates — E uma vez confirmada sua compe­tência, aceitaríamos de pronto o que dissesse; em caso contrário, não.

Teeteto — Isso mesmo.

Sócrates — E agora, segundo penso, se nos in­teressa de algum modo tal parecença, precisaremos decidir se ele entende de pintura e, consequentemente, se pode opinar nessa matéria.

Teeteto — É também o que eu penso.

Sócrates — Porventura Teodoro é pintor?

Teeteto — Que eu saiba, não.

Sócrates — Nem entende de geometria?

Teeteto — Entende, e muito, Sócrates.

Sócrates — Entenderá, também, de astronomia, cálculo, música e o mais que se refere à educação?

Teeteto — Acho que sim.

Sócrates — Logo, quando ele disse que fisica­mente nós temos um quê de parecença, ou seja isso à guisa de reparo ou como elogio, não devemos atri­buir maior importância a suas palavras.

Teeteto — Talvez não.

Sócrates — Porém suponhamos que fosse a alma de um de nós que ele elogiasse para o outro, no que respeita à virtude ou à sabedoria: não seria justo que o ouvinte se apressasse a examinar o elogiado, e este, por sua vez, se prontificasse a exibir-se?

Teeteto — Perfeitamente, Sócrates.

III.

Sócrates — Pois então, amigo Teeteto, chegou a hora de te exibires e eu de examinar-te. Convém saberes que Teodoro já me fez o elogio de muita gente, assim estrangeiros como Atenienses, porém nunca em termos tão calorosos como agora mesmo a teu respeito.

Teeteto — É desvanecedor, Sócrates, se não se tratar de alguma brincadeira.

Sócrates — Não é do feitio de Teodoro. Porém não quebres teu compromisso, sob o pretexto de que ele quis pilheriar, para não o obrigarmos a depor. Bem sabes que ninguém o recusaria como testemu­nha. Reveste-te de confiança e não desfaças tua promessa.

Teeteto — É como terei de proceder, se pensas desse modo.

Sócrates — Dize-me o seguinte: não é verdade que estudas geometria com Teodoro?

Teeteto — É.

Sócrates — E também astronomia e harmonia e cálculo?

Teeteto — Pelo menos, esforço-me nesse sentido.

Sócrates — Eu também, jovem; com ele e com quem mais eu considere competente nesses assuntos. Não obstante, dado que eu apanhe regularmente bem semelhantes questões, há um ponto insignifi­cante que eu desejaria examinar contigo e estes aqui. Dize-me o seguinte: aprender não significa tornar-se sábio a respeito do que se aprende?

Teeteto — Como não?

Sócrates — Logo, é pela sabedoria, segundo penso, que os sábios ficam sábios.

Teeteto — Sem dúvida.

Sócrates — E isso difere em alguma coisa do conhecimento?

Teeteto — Isso, quê?

Sócrates — Sabedoria. Não se é sábio naquilo que se conhece?

Teeteto — Como não?

Sócrates — Então, é a mesma coisa conheci­mento e sabedoria?

Teeteto — Sim.

Sócrates — Eis o que me suscita dúvidas, sem nunca eu chegar a uma conclusão satisfatória: o que seja, propriamente, conhecimento. Será que poderíamos defini-lo? Como vos parece? Qual de nós falará primeiro?

Quem errar ou atrapalhar-se,
Como burro irá assentar-se,

à maneira do que dizem as crianças no jogo de bola; quem não cometer nenhum erro, será rei e ficará com o direito de apresentar-nos as perguntas que entender. Por que não respondeis? Espero, Teodoro, que o meu amor às discussões não me torne importuno, pelo desejo de estabelecer entre nós um diálogo capaz de deixar-nos íntimos e aper­tar mais os laços de amizade.

Teodoro — De nenhum jeito, Sócrates, chegarás a ser importuno. Porém pede a um destes meninos que te responda, pois não estou habituado a esse tipo de conversação e já passei da idade de apren­der. Tudo isso fica bem para eles, que só terão a lucrar; quando se é moço, tudo é fácil. Porém, uma vez que já começaste, não largues Teeteto, inter­roga-o.

Sócrates — Ouvistes, Teeteto, o que disse Teo­doro? Creio que não pensas em desobedecer-lhe, além de não ficar bem a um jovem, em assuntos dessa natureza, não acatar as prescrições de um sábio. Cria coragem, pois, e responde à minha per­gunta: No teu modo de pensar, que é conhecimento?

Teeteto — Terei de obedecer, Sócrates, uma vez que o ordenais. De qualquer forma, se eu come­ter algum erro, vós ambos me corrigireis.

IV.

Sócrates — Perfeitamente; no que for possível.

Teeteto — Então, a meu parecer, tudo o que se aprende com Teodoro é conhecimento, geometria e as disciplinas que enumeraste há pouco, como tam­bém a arte dos sapateiros e a dos demais artesãos: todas elas e cada uma em particular nada mais são do que conhecimento.

Sócrates — És muito generoso, amigo, e extre­mamente liberal; pedem-te um, e dás um bando; em vez de algo simples, tamanha variedade.

Teeteto — Que queres dizer com isso?

Sócrates — Talvez nada; porém vou explicar-te o que penso. Quando te referes à arte do sapateiro, tens em mira apenas o conhecimento de confeccio­nar sapatos, não é verdade?

Teeteto — Exato.

Sócrates — E a marcenaria, será outra coisa além do conhecimento da fabricação de móveis de madeira?

Teeteto — Não.

Sócrates — E em ambos os casos, o que defines não é o objeto do conhecimento de cada um?

Teeteto — Perfeitamente.

Sócrates — Mas o que te perguntei, Teeteto, não foi isso: do que é que há conhecimento, nem quantos conhecimentos particulares pode haver; minha pergunta não visava a enumerá-los um por um; o que desejo saber é o que seja o conhecimento em si mesmo. Será que não me exprimo bem?

Teeteto — Ao contrário; exprimes-te com mui­ta precisão.

Sócrates — Considera também o seguinte: se alguém nos perguntasse a respeito de alguma coisa vulgar e corriqueira, por exemplo: o que é lama, e lhe respondêssemos que há a lama dos oleiros, a dos construtores de fornos e a dos tijoleiros, não nos tornaríamos ridículos?

Teeteto — É provável.

Sócrates — Para começar, por imaginarmos que nosso interlocutor compreende o que dizemos quando falamos em lama, muito embora acrescentemos que se trata da lama de fabricantes de bonecas ou a de qualquer outro artesão. Ou achas que alguém entenderá o nome de alguma coisa, se desconhece sua natureza?

Teeteto — De forma alguma.

Sócrates — Não compreenderá, pois, o conhe­cimento do sapateiro quem não souber o que seja conhecimento.

Teeteto — Sem dúvida.

Sócrates — Logo, não compreenderá a arte do sapateiro nem qualquer outra arte, quem não souber o que seja conhecimento.

Teeteto — Exato.

Sócrates — É, por conseguinte, ridícula a res­posta de quem é perguntado o que seja conheci­mento, sempre que acrescenta o nome de determi­nada arte. Falou em conhecimento de alguma coisa; porém não foi isso que lhe perguntaram.

Teeteto — Realmente.

Sócrates — Em segundo lugar, embora pudesse dar uma resposta simples e curta, fez um rodeio de nunca mais acabar. Assim, quando perguntado a respeito de lama, poderia ter respondido por ma­neira trivial e simples, que lama é terra molhada, sem dar-se ao trabalho de dizer quem a emprega.

V.

Teeteto — Agora, Sócrates, ficou muito fácil a questão. Quer parecer-me que é igualzinha à que nos ocorreu recentemente, numa discussão entre mim e este teu homônimo.

Sócrates — Qual foi a questão, Teeteto?

Teeteto — A respeito de algumas potências, Teodoro, aqui presente, mostrou que a de três pés e a de cinco, como comprimento não são comensu­ráveis com a de um pé. E assim foi estudando uma após outra, até a de dezessete pés. Não sei por que parou aí. Ocorreu-nos, então, já que é infinito o número dessas potências, tentar reuni-las numa única, que serviria para designar todas.

Sócrates — E encontrastes o que procuráveis?

Teeteto — Acho que sim; examina tu mesmo.

Sócrates — Podes falar.

Teeteto — Dividimos os números em duas clas­ses: os que podem ser formados pela multiplicação de fatores iguais, representamo-los pela figura de um quadrado e os designamos pelos nomes de qua­drado e de equilátero.

Sócrates — Muito bem.

Teeteto — Os que ficam entre esses, o três, por exemplo, e o cinco, e todos os que não se formam pela multiplicação de fatores iguais, mas da multiplicação de um número maior por um menor, ou o inverso: a de um menor por um maior, e que sempre são contidos em uma figura com um lado maior do que o outro, representamo-los sob a figura de um retângulo e os denominamos números retangulares.

Sócrates — Ótimo. E depois?

Teeteto — Todas as linhas que formam um qua­drado de número plano equilátero definimos como longitude, e as de quadrado de fatores desiguais, potências ou raízes, por não serem comensuráveis com as outras pelo comprimento, mas apenas pelas superfícies que venham a formar. Com os sólidos procedemos do mesmo modo.

Sócrates — Melhor não fora possível, meninos. Acho que Teodoro não pode ser acoimado de falso testemunho.

Teeteto — No entanto, Sócrates, a questão por ti apresentada a respeito do conhecimento, não sa­berei resolvê-la como fiz com a da raiz e do com­primento, conquanto pense que seja mais ou menos isso o que procuras. Do que se colhe que, mais uma vez, Teodoro não falou a verdade.

Sócrates — Como? Se ele te houvesse elogiado por correres bem, afirmando nunca ter encontrado entre os moços quem te vencesse na carreira e, de­pois, nalguma competição fosses vencido por um homem feito e de pés velozes achas que seu juízo teria sido menos verdadeiro?

Teeteto — Não, decerto.

Sócrates — E agora, parece-te que descobrir o conhecimento tal como o apresentei há pouco, seja tarefa secundária e não um tema da mais alta res­ponsabilidade?

Teeteto — Não, por Zeus; é dos mais difíceis.

Sócrates — Sendo assim, readquire a confiança em ti próprio e não desfaças no testemunho de Teodoro, esforçando-te quanto puderes para encon­trar a explicação das coisas, principalmente do que venha a ser conhecimento.

Teeteto — Quanto a esforçar-me, Sócrates, podes ficar tranquilo.

VI.

Sócrates — Então, vamos. E já que indi­caste o caminho, toma como modelo o que tu mesmo disseste a respeito das potências, e assim como reduziste a uma única forma aquela multiplicidade, designa agora por um só termo todos esses conhecimentos.

Teeteto — Convém saberes, Sócrates, que já por várias vezes procurei resolver essa questão, por ter ouvido falar no que costumas perguntar sobre isso. Porém não posso convencer-me de que cheguei a uma conclusão satisfatória, como nunca ouvi de ninguém uma explicação como desejas. Apesar de tudo, não consigo afastar da ideia essa questão.

Sócrates — São dores de parto, meu caro Teete­to. Não estás vazio; algo em tua alma deseja vir à luz.

Teeteto — Isso não sei, Sócrates; só disse o que sinto.

Sócrates — E nunca ouviste falar, meu gracejador, que eu sou filho de uma parteira famosa e imponente, Fanerete?

Teeteto — Sim, já ouvi.

Sócrates — Então, já te contaram também que eu exerço essa mesma arte?

Teeteto — Isso, nunca.

Sócrates — Pois fica sabendo que é verdade; porém não me traias; ninguém sabe que eu conheço semelhante arte, e por não o saberem, em suas referências à minha pessoa não aludem a esse ponto; dizem apenas que eu sou o homem mais esquisito do mundo e que lanço confusão no espírito dos outros. A esse respeito já ouviste dizerem alguma coisa?

Teeteto — Ouvi.

Sócrates — Queres que te aponte a razão disso?

Teeteto — Por que não?

Sócrates — Basta refletires no que se passa com as parteiras, para apanhares facilmente o que desejo assinalar. Como muito bem sabes, não servem para exercer o ofício de parteira as mulheres que ainda concebem e dão à luz, mas apenas as que se tornaram incapazes de procriar.

Teeteto — Perfeitamente.

Sócrates — Dizem que a causadora disso é Ártemis: por nunca haver dado à luz, recebeu a missão de presidir aos partos. As estéreis de todo, ela não concede a faculdade de partejar, por ser fraca em demasia a natureza humana para adquirir uma arte de que não tenha experiência. As que já passaram de idade foi que ela concedeu esse dom, para honrar nelas sua imagem.

Teeteto — Compreende-se.

Sócrates — E não é também compreensível e até mesmo necessário, que as parteiras conheçam melhor do que as outras quando uma mulher está grávida?

Teeteto — Perfeitamente.

Sócrates — Sim, por meio de drogas e encanta­mentos, elas conseguem aumentar as dores ou acal­má-las, como queiram, levar a bom termo partos difíceis ou expulsar o produto da concepção quando ainda não se acha muito desenvolvido.

Teeteto — Isso mesmo.

Sócrates — E não observastes, também, que são casamenteiras muito hábeis, por conhecerem a fundo qual é a mulher mais indicada para este ou aquele varão, porque possam ter filhos perfeitos?

Teeteto — Disso nunca ouvi falar.

Sócrates — Pois fica sabendo que elas se en­vaidecem mais desse conhecimento do que de saber cortar o cordão. Basta refletires. És de parecer que compete à mesma arte cultivar e colher os frutos, e também conhecer que planta ou semente irá me­lhor neste ou naquele terreno? Ou será diferente?

Teeteto — Não; é a mesma.

Sócrates — E para a mulher, amigo, és de opi­nião que uma arte ensinará isso, e outra a colher os frutos?

Teeteto — É pouco provável.

Sócrates — Não; o certo seria dizer: nada pro­vável. Mas por causa do comércio desonesto e sem arte de acasalar varão com mulher, denominado lenocínio, abstêm-se da atividade de casamenteiras as parteiras sensatas, de medo de no exercício de sua arte incorrerem na suspeita de exercerem aque­las práticas. Nada obstante, só às verdadeiras par­teiras é que compete promover as uniões acertadas.

Teeteto — Parece.

Sócrates — Eis aí a função das parteiras; muito inferior à minha. Em verdade, não acontece às mu­lheres parirem algumas vezes falsos filhos e outras vezes verdadeiros, de difícil distinção. Se fosse o caso, o mais importante e belo trabalho das parteiras consistiria em decidir entre o verdadeiro e o falso, não te parece?

Teeteto — Sem dúvida.

VII.

Sócrates — A minha arte obstétrica tem atribuições iguais às das parteiras, com a diferença de eu não partejar mulher, porém homens, e de acompanhar as almas, não os corpos, em seu tra­balho de parto. Porém a grande superioridade da minha arte consiste na faculdade de conhecer de pronto se o que a alma dos jovens está na iminência de conceber é alguma quimera e falsidade ou fruto legítimo e verdadeiro. Neste particular, sou igualzinho às parteiras: estéril em matéria de sabe­doria, tendo grande fundo de verdade a censura que muitos me assacam, de só interrogar os outros, sem nunca apresentar opinião pessoal sobre nenhum assunto, por carecer, justamente, de sabedoria. E a
razão é a seguinte: a divindade me incita a partejar os outros, porém me impede de conceber. Por isso mesmo, não sou sábio não havendo um só pensa­mento que eu possa apresentar como tendo sido invenção de minha alma e por ela dado à luz. Porém os que tratam comigo, suposto que alguns, no começo pareçam de todo ignorantes, com a continuação de nossa convivência, quantos a divindade favorece progridem admiravelmente, tanto no seu próprio julgamento como no de estranhos. O que é fora de dúvida é que nunca aprenderam nada comigo; neles mesmos é que descobrem as coisas belas que põem no mundo, servindo, nisso tudo, eu e a divindade como parteira. E a prova é o e seguinte: Muitos desconhecedores desse fato e que tudo atribuem a si próprios, ou por me desprezarem ou por injunções de terceiros, afastam-se de mim cedo demais. O resultado é alguns expelirem antes do tempo, em virtude das más companhias, os ger­mes por mim semeados, e estragarem outros, por falta da alimentação adequada, os que eu ajudara a pôr no mundo, por darem mais importância aos produtos falsos e enganosos do que aos verdadeiros, com o que acabam por parecerem ignorantes aos seus próprios olhos e aos de estranhos. Foi o que aconteceu com Aristides, filho de Lisímaco, e a outros mais. Quando voltam a implorar instantemente minha companhia, com demonstrações de arrependimento, nalguns casos meu demônio fami­liar me proíbe reatar relações; noutros o permite, voltando estes, então, a progredir como antes. Neste ponto, os que convivem comigo se parecem com as parturientes: sofrem dores lancinantes e andam dia e noite desorientados, num trabalho muito mais penoso do que o delas. Essas dores é que minha arte sabe despertar ou acalmar. É o que se dá com todos. Todavia, Teeteto, os que não me pare­cem fecundos, quando eu chego à conclusão de que não necessitam de mim, com a maior boa vontade assumo o papel de casamenteiro e, graças a Deus, sempre os tenho aproximado de quem lhes possa ser de mais utilidade. Muitos desses já encaminhei para Pródico, e outros mais para varões sábios e inspirados. Se te expus tudo isso, meu caro Teeteto, com tantas minúcias, foi por suspeitar que algo em tua alma está no ponto de vir à luz, como tu mesmo desconfias. Entrega-te, pois, a mim, como o filho de uma parteira que também é parteiro, e quando eu te formular alguma questão, procura responder a ela do melhor modo possível. E se no exame de alguma coisa que disseres, depois de eu verificar que não se trata de um produto legítimo mas de algum fantasma sem consistência, que logo arran­carei e jogarei fora, não te aborreças como o fazem as mulheres com seu primeiro filho. Alguns, meu caro, a tal extremo se zangaram comigo, que chega­ram a morder-me por os haver livrado de um que outro pensamento extravagante. Não compreendiam que eu só fazia aquilo por bondade. Estão longe de admitir que de jeito nenhum os deuses podem querer mal aos homens e que eu, do meu lado, nada faço por malquerença, pois não me e permitido em absoluto pactuar com a mentira nem ocultar a verdade.

VIII.

Volta, pois, para o começo, Teeteto, e procura explicar o que é conhecimento. Não me digas que não podes; querendo Deus e dando-te co­ragem, poderás.

Teeteto — Realmente, Sócrates, exortando-me como o fazes, fora vergonhoso não esforçar-me para dizer com franqueza o que penso. Parece-me, pois, que quem sabe alguma coisa sente o que sabe. Assim, o que se me afigura neste momento é que conhecimento não é mais do que sensação.

Sócrates — Bela e corajosa resposta, menino. É assim que devemos externar o pensamento. Porém examinemos juntos se se trata, realmente, de um feto viável ou de simples aparência. Conhecimento, disseste, é sensação?

Teeteto — Sim.

Sócrates — Talvez tua definição de conhecimento tenha algum valor; é a definição de Protágo­ras; por outras palavras ele dizia a mesma coisa. Afirmava que o homem é a medida de todas as coi­sas, da existência das que existem e da não exis­tência das que não existem. Decerto já leste isso?

Teeteto — Sim, mais de uma vez.

Sócrates — Não quererá ele, então, dizer que as coisas são para mim conforme me aparecem, como serão para ti segundo te aparecerem? Pois eu e tu somos homens.

Teeteto — É isso, precisamente, o que ele diz.

Sócrates — Ora, é de presumir que um sábio não fale aereamente. Acompanhemo-lo, pois. Por vezes não acontece, sob a ação do mesmo vento, um de nós sentir frio e o outro não? Um ao de leve, e o outro intensamente?

Teeteto — Exato.

Sócrates — Nesse caso, como diremos que seja o vento em si mesmo: frio ou não frio? Ou teremos de admitir com Protágoras que ele é frio para o que sentiu arrepios e não o é para o outro?

Teeteto — Parece que sim.

Sócrates — Não é dessa maneira que ele apa­rece a um e a outro?

Teeteto — É.

Sócrates — Ora, este aparecer não é o mesmo que ser percebido?

Teeteto — Perfeitamente.

Sócrates — Logo, aparência e sensação se equivalem com relação ao calor e às coisas do mesmo gênero; tal como cada um as sente, é como elas talvez sejam para essa pessoa.

Teeteto — Talvez.

Sócrates — A sensação é sempre sensação do que existe, não podendo, pois, ser ilusória, visto ser conhecimento.

Teeteto — Parece que sim.

Sócrates — Então, em nome das Graças, não teria Protágoras, esse poço de sabedoria, falado por enigmas para a multidão sem número, na qual nos incluímos, porém dito em segredo a verdade para seus discípulos?

Teeteto — Que queres dizer com isso, Sócrates?

Sócrates — Vou explicar-me, e não será argu­mento sem valor, a saber: que nenhuma coisa é una em si mesma e que não há o que possas denominar com acerto ou dizer como é constituída. Se a quali­ficares como grande, ela parecerá também pequena; se pesada, leve, e assim em tudo o mais, de forma que nada é uno, ou algo determinado ou como quer que seja. Da translação das coisas, do movi­mento e da mistura de umas com as outras é que se forma tudo o que dizemos existir, sem usarmos a expressão correta, pois a rigor nada é ou existe, tudo devém. Sobre isso, com exceção de Parmênides, todos os sábios, por ordem cronológica, estão de acordo: Protágoras, Heráclito e Empédocles, e, entre os poetas, os pontos mais altos dos dois gêneros de poesia: Epicarmo na comédia e Homero na tragé­dia. Quando este se refere

Ao pai de todos os deuses eternos, o Oceano e a mãe Tétis,

dá a entender que todas as coisas se originam do fluxo e do movimento. Não achas que é isso mesmo o que ele quer dizer?

Teeteto — É também o que eu penso.

IX.

Sócrates — E quem se atreveria a lutar contra um exército tão forte e um general como Homero, sem cair no ridículo?

Teeteto — Não fora fácil, Sócrates.

Sócrates — Realmente, Teeteto; tanto mais que há outras provas, como reforço para o argumento de que o movimento é a causa de tudo o que devém e parece existir, e o repouso a do não-ser e da des­truição. De fato, o calor e o fogo que geram e coor­denam todas as coisas, são gerados, por sua vez, pela translação e pela fricção, que também consistem em movimento. Não é essa a origem do fogo?

Teeteto — Justamente.

Sócrates — De resto, daí, também, procede a geração dos seres vivos.

Teeteto — Como não?

Sócrates — E agora? A constituição do corpo não se deteriora com o repouso e a preguiça e não se conserva admiravelmente bem com a ginástica e o movimento?

Teeteto — Certo.

Sócrates — E o que se passa com a alma? Não é pelo estudo e o exercício, que também são movi­mento, que ela adquire conhecimentos, conserva-os e se torna melhor, ao passo que com o repouso, a ouso, a saber, por falta de exercício e aplicação, ou nada aprende ou esquece o que aprendeu.

Teeteto — Perfeitamente.

Sócrates — Donde se colhe que um é bom para o corpo, e o outro, o contrário disso.

Teeteto — Parece.

Sócrates — Lembrarei, ainda, as calmas e as bonanças e outros estados parecidos, para mostrar que o repouso estraga e destrói, e o seu contrário conserva. Para arrematar, a última pedra te obri­gará a confessar que por Cadeia áurea Homero outra coisa não entende senão o próprio sol, que­rendo significar com isso que enquanto a esfera celeste e o sol se movem, tudo existe e se conserva, tanto entre os deuses como entre os homens, e que se chegassem a imobilizar-se como que acorrentados, tudo se estragaria, vindo a ficar, como se diz, de pernas para cima.

Teeteto — Quer parecer-me, Sócrates, que in­terpretaste muito bem o seu pensamento.

X.

Sócrates — Considera o assunto, meu caro, do seguinte modo: inicialmente, com relação à vista, o que denominas cor branca não é algo com existência própria, nem fora de teus olhos nem dentro de teus olhos, nem em qualquer outro local que lhe assinalares, pois se assim fosse, ela exis­tiria num determinado lugar, em caráter estável, deixando, por conseguinte, de formar-se.

Teeteto — De que jeito?

Sócrates — Acompanhemos o argumento apre­sentado há pouco, de que nada podemos admitir como existente em si mesmo. Desse modo, se tor­nará evidente que o branco e o preto e as demais cores resultam do encontro dos olhos com o movi­mento particular de cada uma e que a cor designada por nós como existente não é nem o que atinge o sentiente nem o que é atingido, porém algo inter­mediário e peculiar a cada indivíduo. Ou poderás afirmar que cada cor aparece para ti exatamente como o faz para um cão ou para qualquer outro animal?

Teeteto — Não, por Zeus!

Sócrates — E então? Ou que para qualquer pessoa as coisas apareçam exatamente como para ti? Estás convencido disso, ou será mais certo dizer que elas nunca te aparecem do mesmo modo, pelo fato de nunca permaneceres igual a ti mesmo?

Teeteto — Esta última assertiva se me afigura mais correta do que a primeira.

Sócrates — Logo, se aquilo com que medimos ou o que tocamos fosse grande, branco ou quente, nunca se mudaria ao entrar em contato com outra coisa, se não sofresse também alguma alteração. Por outro lado, se o que se mede ou se toca fosse como admitimos, jamais, também, se alteraria à aproxima­ção ou sob a influência de outra coisa, se não viesse, igualmente, a modificar-se. Daí, amigo, termos sido levados a afirmar coisas estranhas e ridículas, como o faria Protágoras e os mais adeptos de sua doutrina.

Teeteto — Corno assim? A que te referes?

Sócrates — Tomemos um pequeno exemplo, a fim de compreenderes todo o meu pensamento. Aqui temos seis ossinhos de jogar; se ao seu lado puser­mos mais quatro, diremos que esses seis são mais de quatro, por ultrapassá-los de metade; mas se pusermos doze, então serão menos, a saber, a me­tade, justamente. Não se pode empregar outra linguagem. Ou achas que pode?

Teeteto — De jeito nenhum.

Sócrates — Ora bem; se Protágoras ou outro qualquer te perguntasse: possível, Teeteto, tor­nar-se maior ou mais numerosa alguma coisa sem vir a ser aumentada? Como responderias a ele?

Teeteto — Se eu tivesse, Sócrates, de dizer o que penso, tomando apenas essa pergunta em con­sideração, responderia que não é possível.

Sócrates — Muito bem, amigo, por Hera! Divinamente respondido. Porém acho que se tivesses dito que sim, confirmarias aquilo de Eurípides:

Nossa língua fica a salvo de censura, não o espírito.

Teeteto — É muito certo.

Sócrates — Em consequência, se fôssemos há­beis e sábios, eu e tu, e já tivéssemos investigado a fundo o que se relaciona com o espírito, daqui por diante, por passatempo, experimentaríamos recipro­camente as forças, à maneira dos sofistas, num em­bate em que faríamos tinir argumento contra argu­mento. Porém como simples particulares procure­mos, antes de mais nada, considerar diretamente o que vêm a ser os temas em estudo, se estão harmô­nicos ou em completo desacordo.

Teeteto — Com sinceridade, é o que desejo.

XI.

Sócrates — Eu também. Mas, nesse caso, já que temos tempo de sobra, por que não recomeçarmos nossa análise com toda a calma, sem nenhu­ma irritação, examinando-nos de verdade, para vermos o que, de fato, sejam essas visões que se formam dentro de nós? Passando a considerá-las, diremos, logo de início, segundo penso, que jamais alguma coisa ficou maior, seja em volume seja em quantidade, enquanto se manteve igual a si mesma. Não é verdade?

Teeteto — Exato.

Sócrates — Em segundo lugar, uma coisa a que nada se acrescente e de que nada se tire, não au­mentará nem desaparecerá, porém continuará sem­pre igual.

Teeteto — Incontestavelmente.

Sócrates — E não poderemos apresentar mais um postulado, seria o terceiro, nos seguintes termos: que não existia antes, não poderia ter existido sem formar-se ou ter sido formado?

Teeteto — É também o que eu penso.

Sócrates — Eis aí, por conseguinte, três propo­sições aceitas por nós, que contendem em nossa alma, seja quando falamos de ossinhos de jogar seja quando imaginamos um caso como o seguinte: com a idade que tenho, sem crescer coisa alguma nem sofrer modificação contrária, no decurso de um ano, em relação a ti que és mais moço, pre­sentemente sou maior, porém depois virei a ficar menor, e isso sem que minha altura diminua, mas pelo fato de aumentar a tua. Sou, portanto, posteriormente, sem me ter modificado, o que antes não era. Sem o devir, nada vem a ser, e nada ha­vendo eu perdido do meu volume, não poderia ter ficado menor. O mesmo se passa em milhares de casos como esse, se aceitarmos os presentes argumen­tos. Sei que me acompanhas, Teeteto. Pelo menos tenho a impressão de que não és neófito nessas questões.

Teeteto — Pelos deuses, Sócrates, causa-me grande admiração o que tudo isso possa ser, e só de considerá-lo, chego a ter vertigens.

Sócrates — Estou vendo, amigo, que Teodoro não ajuizou erradamente tua natureza, pois a admiração é a verdadeira característica do filósofo. Não tem outra origem a filosofia. Ao que parece, não foi mau genealogista quem disse que Íris era filha de Taumante. Porém já começaste a perceber a re­lação entre tudo isso e a proposição que atribuímos a Protágoras? Ou não?

Teeteto — Acho que não.

Sócrates — E não me ficarás agradecido, se te ajudar a patentear o sentido oculto do pensamento e de um homem famoso, ou melhor, de vários homens famosos?

Teeteto — Como não ficar? Muitíssimo, até.

XII.

Sócrates — Então, revista os arredores; não seja o caso de escutar-nos alguém não iniciado. Refiro-me aos que só acreditam na existência daquilo que eles são capazes de segurar com as duas mãos, porém não admitem que participem da realidade nem as ações nem as gerações e tudo o mais que não se vê.

Teeteto — São gente de cabeça dura, Sócrates, esses de que falas, e por demais teimosos.

Sócrates — É muito certo, menino; e também estranhos às Musas. Outros há engenhosíssimos, cujos segredos pretendo revelar-te. Para esses, o principio de que pende tudo o que acabamos de expor é que só há movimento e que, fora disso, nada existe, havendo duas espécies de movimento, ambas de número infinito: uma de força ativa e outra de força passiva. Da união de ambas e da fricção recíproca nasce prole de número infinito porém sempre aos pares: um dos termos é objeto da sensação; o outro, a própria sensação. Damos as sensações vários nomes, tais como: visões, audições, olfações, frio e quente, e também prazeres, dores, desejos, temor e muitos outros. Infinitas são as anô­nimas; numerosíssimas as que têm nome. Por sua vez, o gênero dos sensíveis tem cognatos correspon­dentes a cada uma dessas sensações: para as inú­meras visões, cores de perder a conta; para as audi­ções, os sons em igual variedade, e para as outras sensações, outros tantos objetos sensíveis, que lhes são aparentados. E agora, Teeteto, que sentido terá para nós semelhante mito, com relação ao que dissemos há pouco?

Teeteto — Nenhum, Sócrates.

Sócrates — Então, vê se o acompanhamos até o fim. O que ele pretende explicar é que tudo isso, conforme dissemos, se movimenta, havendo lentidão ou rapidez nessa movimentação. Quando o movi­mento é lento, faz-se sentir no mesmo lugar e nos objetos próximos, sendo essa a sua maneira de gerar. Os produtos assim gerados são mais rápidos, por se deslocarem, vindo a ser seu movimento natural essa mudança de posição. Depois que o olho e qualquer objeto que lhe seja apropriado geram pela aproxi­mação recíproca a brancura e a sensação correspondente, que jamais teriam sido produzidas se um ou outro daqueles elementos tivesse tomado direção diferente, então, enquanto se movem no espaço in­termediário a visão proveniente do olho e a bran­cura do objeto que, de combinação com aqueles, deu nascimento à cor, o olho se enche de visão e passa a ver, sem, com isso, tornar-se visão, porém olho que vê. Por outro lado, seu associado na produção da cor enche-se de brancura, sem, com isso, ficar brancura, porém branco, ou se trate de madeira branca, ou de pedra ou do que for, cuja superfície venha a adquirir essa coloração. E assim com tudo o mais. O duro e o quente e as demais qualidades devem ser concebidas de igual maneira; em si e por si mesmas, conforme dissemos há pouco, nada são; de sua aproximação recíproca é que as coisas nas­cem de toda espécie de movimento, pois nem o elemento ativo nem o passivo, como dissemos, podem ser concebidos como unidades fixas e independentes; porque não pode existir algo ativo sem a prévia união com o elemento passivo, e o inverso: nada passivo sem o encontro com o elemento ativo. E mais: o que em determinado caso se revelou ativo, mais adiante, noutras conexões, se tornará paciente. De tudo isso, como dissemos no começo, se conclui que nada existe em si e por si mesmo, e que cada coisa só devém por causa de outra, sendo preciso, pois, eliminar de toda a parte a expressão Ser, conquanto agora, como sempre, tenhamos sido for­çados, por hábito e ignorância, a nos valermos dela. A ouvirmos os sábios, a rigor nunca deveríamos empregar expressões como: Alguma coisa, ou Per­tence a alguém ou a mim, nem Isto, nem Aquilo, nem qualquer outra designação que fixe determi­nada coisa. Segundo a natureza, teremos de dizer que as coisas devêm, formam-se, destroem-se ou se alteram. Expõe-se a ser facilmente refutado quem quer que, no seu modo de expressar-se, assevere a estabilidade seja do que for. É assim que será preciso falar, tanto com relação aos objetos particulares como com os agregados de muitas unidades, conjun­tos esses que designamos pelos nomes: Homem, Pedra, Animal, ou Espécie. Agrada-te semelhante doutrina, Teeteto, e achas prazer em degustá-la?

Teeteto — Não sei ao certo, Sócrates, pois tenho dúvidas se expões, de fato, tua maneira de pensar ou se pretendes apenas experimentar-me.

Sócrates — Já te esqueceste, amigo, que eu não só não conheço nada disso como não presumo conhecer? Nesses assuntos sou estéril a conta inteira. O que faço é ajudar-te no trabalho do parto; daí, recorrer a encantamentos e oferecer ao teu paladar as opiniões dos sábios, até que, com o meu auxílio, venha à luz tua própria opinião. Uma vez isso conseguido, decidirei se se trata de um ovo sem gema ou de algum produto legítimo. Anima-te, pois; não desistas e declara com independência e decisão o que pensas a respeito do que te perguntei.

Teeteto — Podes falar.

XIII.

Sócrates — Então, dize-me, uma vez mais, se aceitas que nada existe e que tudo se acha num perpétuo devir: o bem, o belo e tudo o mais que enumeramos há pouco.

Teeteto — Depois de atentar em tua exposição, digo que esta se me afigura muito bem fundamen­tada e que deve ser aceita nos termos em que a apresentaste.

Sócrates — Nesse caso, será preciso completar o estudo do que ficou por explicar. Ainda não fala­mos dos sonhos, das doenças em geral e, particularmente, da loucura nem das alterações da vista, as do ouvido e das demais sensações. Como bem sabes, a opinião unânime é que todos esses casos concor­rem para refutar a doutrina exposta agora mesmo, visto se revelarem de todo o ponto falsas em tais casos nossas sensações, e muito longe de serem as coisas como se nos afiguram, nada, pelo contrá­rio, existe tal como nos aparece.

Teeteto — Só dizes a verdade, Sócrates.

Sócrates — Se é assim, meu filho, que novo argumento poderá aduzir quem diz que a sensação é conhecimento e que o que parece a cada um de nós é para todos precisamente como parece ser?

Teeteto — Sinto-me acanhado, Sócrates, de declarar que não sei como responder, pois há pouco me repreendeste por eu ter dito isso mesmo. Mas, para dizer a verdade, não poderei contestar que os loucos e os sonhadores não formam, de fato, opi­niões falsas, como no caso de se imaginarem deuses os primeiros, ou de pensarem os outros, durante o sonho, que têm asas e que podem voar.

Sócrates — E não te ocorre, também, outra objeção no que respeita ao sono e à vigília?

Teeteto — Qual?

Sócrates — A que, a meu ver, já deves ter ouvido com frequência, sobre o argumento decisivo que poderias apresentar a quem perguntasse de im­proviso se neste momento não estamos dormindo e se não é sonho tudo o que pensamos, ou se esta­mos realmente acordados e entretidos a conversar?

Teeteto — Em verdade, Sócrates, sinto-me inde­ciso na escolha do argumento, pois em ambos os estados tudo se passa exatamente do mesmo modo. Nada impede de admitir que o que acabamos de conversar tivesse sido dito em sonhos; e quando imaginamos em sonhos contar que sonhamos, é ad­mirável a semelhança com o que se passa no estado de vigília.

Sócrates — Como vês, não é difícil suscitar con­trovérsia nesse terreno, pois é possível duvidar até mesmo se estamos acordados ou dormindo. Além do mais, como é igual o tempo que dedicamos ao sono e o que passamos acordados, em ambos os estados sustenta nossa alma que são absolutamente verdadeiras as noções do momento presente, de sorte que numa metade do tempo batemo-nos pela veracidade de determinadas noções, e na outra me­tade pela de noções em todo o ponto diferentes, mas em ambos os casos com igual convicção.

Teeteto — Perfeitamente.

Sócrates — E outro tanto não se dá com as doenças e a loucura, se excluirmos a duração, que não é a mesma?

Teeteto — Certo.

Sócrates — E então? A verdade será definida pela maior ou menor duração do tempo?

Teeteto — Em todos os sentidos fora ridículo.

Sócrates — E porventura dispões de algum ar­gumento sólido para provar qual dessas duas crenças é verdadeira?

Teeteto — Não creio.

XIV.

Sócrates — Então vou contar-te o que a esse respeito poderiam dizer os que defendem o princípio de que todas as coisas são verdadeiras para quem as representa como tal. Recorrem, segundo penso, a uma pergunta mais ou menos nos seguin­tes termos: Teeteto, o que é de todo diferente de outra coisa pode apresentar virtude igual à dessa coisa? Porém não se trata de diferença parcial, com alguma semelhança sob determinados aspectos, mas diferença em toda a linha.

Teeteto — Sendo assim, não é possível haver a identidade nem de virtude nem do que quer que seja, porque diferem totalmente.

Sócrates — E não será preciso, também, admi­tir que essa coisa é dissemelhante?

Teeteto — Acho que sim.

Sócrates — Ora, se acontece ficar alguma coisa semelhante ou dissemelhante, seja de si mesma seja de outra coisa, não diremos, no caso de semelhança, que ficou igual, e no de dissemelhança, diferente?

Teeteto — Sem a menor dúvida.

Sócrates — E antes, não afirmamos ser grande, e até mesmo infinito, tanto o número dos agentes como dos pacientes?

Teeteto — Afirmamos.

Sócrates — E que qualquer deles, unindo-se a este e depois àquele não dará nascimento ao mesmo produto, mas a produto diferente?

Teeteto — Também.

Sócrates — Então, afirmemos isso mesmo de mim, de ti e de tudo, como, por exemplo, de Só­crates são e de Sócrates doente. Diremos que este é igual ao outro, ou dissemelhante?

Teeteto — Referes-te a Sócrates doente, como um todo, em oposição a outro todo: Sócrates com saúde?

Sócrates — Apanhaste muito bem a questão; isso mesmo é o que eu quis dizer.

Teeteto — Então, é dissemelhante.

Sócrates — Sendo assim, serão diferentes, pelo simples fato de serem dissemelhantes.

Teeteto — Forçosamente.

Sócrates — E dirás a mesma coisa com relação a Sócrates dormindo e em todos os estados que há pouco enumeramos?

Teeteto — Sem dúvida.

Sócrates — E quando, por sua própria natureza, algum agente entra em relação com Sócrates são, atuará sobre ele de maneira diferente por que o faria sobre Sócrates doente?

Teeteto — Como não?

Sócrates — E em ambos os casos, não serão diferentes os produtos gerados entre mim, como paciente, e o agente referido?

Teeteto — Sem dúvida.

Sócrates — Sendo assim, quando eu bebo vinho, estando com saúde, este me parece agradável e doce?

Teeteto — Exato.

Sócrates — É que, de acordo com o que admiti­mos, o agente e o paciente geraram a doçura e a sensação, ambas em estado de movimento; a sensação, que vem do paciente, deixa a língua percipiente, e a doçura, que vem do vinho e se movimenta em torno dele, faz que o vinho seja e pareça doce para a língua sã.

Teeteto — A respeito de tudo isso já nos de­claramos inteiramente de acordo.

Sócrates — Porém quando esse mesmo agente me encontra doente, de início, para falarmos certo, o paciente não será o mesmo, pois aquele veio dar numa pessoa diferente.

Teeteto — Sem dúvida.

Sócrates — Logo, foram gerados outros pro­dutos entre esse Sócrates e a absorção do vinho: ao redor da língua, sensação de amargo para o lado do vinho, amargor que se gera e movimenta, mas que não transforma o vinho em amargor, porém o deixa amargo, tal como se dá comigo, que não viro sensação, porém sentiente.

Teeteto — Isso mesmo.

Sócrates — Do meu lado, nunca poderei tor­nar-me diferente enquanto tiver a mesma sensação, porque a novo agente corresponde nova sensação, que modifica e deixa diferente o percipiente, como aquele agente, de igual modo, atuando sobre outro paciente, nunca dará nascimento ao mesmo pro­duto nem continuará sendo o mesmo: se engendra novo produto, em conexões diferentes, torna-se tam­bém diferente.

Teeteto — Exato.

Sócrates — Nem eu me torno tal por mim mes­mo, nem ele, tampouco, sozinho, ficará sendo o que é.

Teeteto — Não, evidentemente.

Sócrates — Porém é forçoso que eu tenha a sensação de alguma coisa, quando me torno perci­piente; o que não é possível é ser percipiente de nada. O mesmo se passa com o agente, quando fica doce ou amargo ou coisa semelhante; ficar doce sem ser doce para ninguém é que não é possível.

Teeteto — Perfeitamente.

Sócrates — Ainda há a possibilidade, me pare­ce, de sermos um para o outro alguma coisa, ele e eu, ou que venhamos a ser algo em virtude dessa correlação, ligados reciprocamente, não a qualquer outra existência nem mesmo a nós próprios. Só resta essa relação de reciprocidade. Por isso mesmo, se se disser que alguma coisa existe ou devém, será preciso acrescentar que existe ou se forma de alguém ou para alguém ou com relação a alguma coisa. Porém que alguma coisa seja ou se torne por si mesmo, é o que se não deve dizer nem permitir que outros afirmem, como o demonstrou a presente ex­posição.

Teeteto — É exatamente como dizes, Sócrates.

Sócrates — Donde se colhe, que o que atua sobre mim só se relaciona comigo; só eu o percebo, mais ninguém.

Teeteto — Como não?

Sócrates — Minha sensação, portanto, é verda­deira para mim, pois sempre faz parte do meu ser, sendo eu, por isso mesmo o único juiz, de acordo com o dito de Protágoras, em condições de dizer que as coisas que são para mim existem mes­mo, e também que as que não são para mim não existem.

Teeteto — Parece.

XV.

Sócrates — Então, se eu nunca erro, e se meu pensamento não tropeça no ajuizar o que é ou devém, como se explica que eu não tenha o conhecimento daquilo de que tenho a sensação?

Teeteto — É o que não se pode admitir.

Sócrates — Por isso mesmo, tinhas carradas de razão, quando disseste que o conhecimento não passa de sensação, o que vem a dar, precisamente, nisto de Homero e de Heráclito e de toda a tribo de seus acompanhantes: Tudo se movimenta como um rio; ou, segundo a fórmula do sapientíssimo Protágoras: O homem é a medida de todas as coisas, que é também a de Teeteto, o qual concluiu disso que há perfeita identidade entre conhecimento e sensação. Não é assim mesmo, Teeteto? Não estamos autorizados a dizer que nisso tudo temos um feto dado por ti à luz agora mesmo, com a ajuda dos meus conhecimentos de parteiro? Ou como te pa­rece?

Teeteto — Necessariamente, Sócrates, terá de ser como disseste.

Sócrates — Seja ele o que for, o fato é que nos deu trabalho para nascer. Mas, uma vez terminado o parto, precisamos celebrar a anfidromia, circulan­do com o recém-nascido à volta da lareira, o que faremos com envolvê-lo em nosso raciocínio, para ver se merece ser alimentado ou se é um ovo gorado e não passa de um grande embuste. Ou és de parecer que devemos criar teu filho, sem abandoná-lo em nenhuma hipótese? Suportarás vê-lo rejeitado pela critica e não ficarás aborrecido se te privarem de teu primogênito?

Teodoro — Evidentemente, Sócrates, Teeteto o suportará, por ser de muito boa índole. Mas, em nome dos deuses, dize logo se nisso tudo há algum erro.

Sócrates — Vê-se que aprecias essas questões, Teodoro; mas és muito bondoso, por me teres na conta de um saco de argumentos, de onde será fácil tirar uma resposta prontinha, para declarar: Está errado! Não compreendes o que realmente se passa; os argumentos não saem de mim, porém sempre da pessoa com que eu converso, e que eu nada sei, tirante este pouquinho, isto é, apanhar o argumento de algum sábio e tratá-lo como convém. Isso mesmo pretendo fazer com este moço, sem nada acrescentar de próprio.

Teodoro — É muito certo o que dizes, Sócrates; continua.

XVI.

Sócrates — Queres saber, Teodoro, o que me admira em teu amigo Protágoras?

Teodoro — Que será?

Sócrates — De modo geral, agrada-me sua dou­trina, de que tudo o que aparece para alguém, existe para essa pessoa. Só o começo de sua proposição é que me surpreende, por ele não dizer logo no início de sua obra, A Verdade, que a medida de todas as coisas é o porco ou o cinocéfalo ou qualquer outro animal mais esquisito ainda, porém capaz de sensa­ções. Seria o melhor exórdio para um discurso a um tempo brilhante e desdenhoso, com mostrar-nos que, se o admiramos como a uma divindade por causa de sua sabedoria, em matéria de discernimento ele não bate nem os girinos, quanto mais um ser humano. Como diremos, Teodoro? Se a verdade para cada indivíduo é o que ele alcança pela sensação; se as impressões de alguém não encontram me­lhor juiz senão ele mesmo, e se ninguém tem auto­ridade para dizer se as opiniões de outra pessoa são verdadeiras ou falsas, formando, ao revés disso, cada um de nós, sozinho, suas opiniões, que em todos os casos serão justas e verdadeiras: de que jeito, amigo, Protágoras terá sido sábio, a ponto de passar por digno de ensinar os outros e de receber salários astronômicos, e por que razão teremos nós de ser ignorantes e de frequentar suas aulas, se cada um for a medida de sua própria sabedoria? Não nos assiste o direito de afirmar que tudo isso na boca de Protágoras não passava de frase para armar o efeito? No que me diz respeito e à minha arte de parteiro, nem me refiro ao ridículo que provocamos, o que, aliás, se poderia tornar extensivo a toda a arte da conversação. Pois analisar e procurar re­futar as fantasias e opiniões de outras pessoas, dado que todas sejam certas para cada um de nós, não será o cúmulo da sensaboria e da tolice, se A Ver­dade de Protágoras for realmente verdadeira e se ele não estava pilheriando, quando doutrinava dos penetrais sagrados do seu livro?

Teodoro — O homem, Sócrates, foi meu amigo, conforme tu mesmo acabaste de dizer. Por isso não posso aceitar que Protágoras seja refutado com minha anuência, como também não desejo contra­dizer-te contra minha própria maneira de pensar. Volta, pois, a pegar-te com Teeteto, tanto mais que ele parece acompanhar teu raciocínio com o mais vivo interesse.

Sócrates — Se fosses à Lacedemônia, Teodoro, e assistisses às competições na palestra, acharias direito contemplar os lutadores quando despidos — alguns, aliás, de físico bem franzino — sem também te despires para mostrar tuas formas?

Teodoro — Por que não, se eles o permitissem e se se dobrassem aos meus argumentos? O mesmo se dá agora, pois espero convencer-vos a deixar-me no meu papel de espectador, e em vez de me arrastardes para a arena, as juntas duras como já tenho, medir-vos com um adversário mais jovem e de mais rica seiva.

XVII.

Sócrates — Se isso for do teu agrado, Teodoro, a mim não desagrada, como dizem os que amam citar provérbios. Forçoso, pois, é voltar para o sábio Teeteto. Então dize-me, Teeteto, para come­çar, pelo que acabamos de expor, se não te admiras de pareceres, assim tão de repente, nada inferior em matéria de sabedoria a qualquer homem ou divin­dade? Ou serás de opinião que a medida de Protá­goras se aplica menos aos deuses do que aos ho­mens?

Teeteto — Por Zeus, de forma alguma! E sobre o que me perguntas, digo que isso se me afigura muito estranho. Ao estudarmos há pouco a assertiva de que tudo o que aparece a cada um é tal como lhe aparece, eu achava a proposição muito bem formulada; porém agora essa impressão se trans­formou precisamente no seu contrário.

Sócrates — Ainda és moço, meu filho, e, por isso mesmo, fácil de prestar ouvidos a discursos capcio­sos e de deixar-te convencer. A esse respeito, Pro­tágoras ou alguém por ele poderia objetar-nos: Vós, aí, menino e velho generosos, juntastes-vos para conversar e chegastes a envolver os próprios deuses em vossa discussão, suposto que eu tenha excluído inteiramente de minhas aulas e de meus escritos a questão de sabermos se os deuses existem ou não existem, sendo que só repetis o que as multidões gostam de ouvir, como se fosse de espantar não dis­tinguir-se nenhum homem, em matéria de sabedoria, de qualquer animal. Porém quanto a argumentos e à conclusão forçosa é o que não apresentais, pois só recorreis a verossimilhança, o que, nas mãos de Teodoro ou de qualquer outro geômetra, seria suficiente para desclassificá-lo. Considerai, tu e Teodoro, se em assunto de tamanha transcendência acolheríeis argumentos baseados apenas em verossimilhan­ça e probabilidade.

Teeteto — Que isso fora justo, Sócrates, nem tu nem nós afirmaremos.

Sócrates — Logo, ao que parece, sois de opi­nião, tu e Teodoro, que precisamos considerar o assunto por outro prisma.

Teeteto — Sim, por maneira diferente.

Sócrates — Então, vejamos se com esse novo critério diferem entre si conhecimento e sensação, ou se se equivalem. Toda nossa argumentação tendia para esse ponto, e foi só para isso que recorremos a tantos argumentos absurdos, não é verdade?

Teeteto — Perfeitamente.

Sócrates — Admitiremos que tudo o que perce­bemos por meio da vista ou do ouvido, só por esse fato se nos torne conhecido? Por exemplo, antes de aprendermos a língua dos bárbaros, sempre que estes nos falem, diremos que não ouvimos, ou que não apenas ouvimos como entendemos o que eles querem dizer? Outro exemplo: se não soubermos ler e olharmos para alguns caracteres escritos, dire­mos que não os vemos, ou que, pelo simples fato de vê-los, compreendemos o que significam?

Teeteto — O que neles, Sócrates, vemos e ouvi­mos, de fato, é o que afirmamos saber. Com relação às letras, diremos que as vemos e que reconhecemos sua cor e a forma, e no que entende com a fala, ouvimos e, no mesmo passo, conhecemos os sons agudos e os graves; porém a Lição dos gramáticos e de seus intérpretes, nem percebemos pela vista e pelo ouvido nem chegamos a compreender.

Sócrates — Ótimo, Teeteto! Não vale a pena levantar objeções, pois o que importa é aumentares a confiança em ti mesmo.

XVIII.

Porém atenta na dificuldade que se aproxima de mansinho e vê de que modo poderemos repeli-la.

Teeteto — Que dificuldade?

Sócrates — É a seguinte: No caso de nos perguntarem se é possível a alguém que conheceu deter­minada coisa cuja lembrança ainda não se lhe apa­gou da memória, no momento em que se recorda dela não conhecer aquilo de que se lembra? Parece que fiz um rodeio muito grande só para perguntar se quem aprendeu alguma coisa não sabe do que se trata, quando se lembra dessa coisa?

Teeteto — Como não há de saber, Sócrates? Isso é um verdadeiro disparate.

Sócrates — Será que eu falei alguma tolice? Presta atenção ao seguinte: Não disseste que ver é sentir e que visão é sensação?

Teeteto — Disse.

Sócrates — Ora, de acordo com o que acabamos e de expor, quem viu alguma coisa, adquiriu o conhe­cimento dessa coisa.

Teeteto — Certo.

Sócrates — E depois? Não admites que há o que denominas memória?

Teeteto — Admito.

Sócrates — Memória de nada ou de alguma coisa?

Teeteto — De alguma coisa, evidentemente.

Sócrates — De coisas aprendidas e sentidas, não será isso?

Teeteto — Sem dúvida.

Sócrates — Por vezes, a gente se lembra do que já viu.

Teeteto — É fato.

Sócrates — Até mesmo com os olhos fechados? Ou só com baixar as pálpebras se esquecerá de tudo?

Teeteto — Seria absurdo, Sócrates, afirmar se­melhante proposição.

Sócrates — Porém é o que teremos de fazer, para salvar o argumento anterior; a não ser assim, estará perdido.

Teeteto — Por Zeus, eu também tenho minhas dúvidas, porém não compreendo bem o que queres dizer. Explica-te melhor.

Sócrates — É o seguinte: Quem vê, foi o que disseste, adquire o conhecimento do que viu, pois visão, sensação e conhecimento, conforme admitimos, tudo é uma só coisa.

Teeteto — Perfeitamente.

Sócrates — Porém quem viu e adquiriu conheci­mento do que viu, logo que fecha os olhos deixa de ver, não e verdade?

Teeteto — Certo.

Sócrates — Mas, desde que ver equivale a saber, não ver será o mesmo que não saber.

Teeteto — É verdade.

Sócrates — De onde vem que, ao lembrar-se alguém de alguma coisa de que já teve conheci­mento, não a conhece por não a ter diante dos olhos, o que dissemos ser positivamente monstruoso.

Teeteto — É muito certo o que declaras.

Sócrates — Ao que parece, pois, trata-se de ma­nifesta impossibilidade afirmar que sensação e co­nhecimento são idênticos.

Teeteto — É possível.

Sócrates — Que virá a ser, então, conhecimen­to? Pelo jeito, precisamos reconsiderar tudo do co­meço. Mas, Teeteto, que coisa estávamos na iminên­cia de fazer!

Teeteto — A respeito de quê?

Sócrates — Tenho a impressão de que procede­mos como galos ordinários; abandonamos a luta antes da vitória e pusemo-nos a cantar.

Teeteto — Como assim?

Sócrates — À maneira dos disputadores profissionais, chegamos a um acordo a respeito das pala­vras e nos declaramos satisfeitos por nosso argu­mento haver vencido graças a esse estratagema, e conquanto afirmemos que não somos antilógicos, porém filósofos, sem o perceber procedemos exata­mente como aqueles terríveis cidadãos.

Teeteto — Não chego a apanhar todo o sentido de tuas palavras.

Sócrates — Pois vou ver se consigo explicar me­lhor meu pensamento. O que perguntamos foi se um indivíduo que aprendeu alguma coisa e dela ainda se recorda, pode deixar de conhecê-la; e depois de demonstrar que quem vê determinado objeto e, logo a seguir, fecha os olhos, deixando, assim, de vê-lo sem deixar de lembrar-se dele, concluímos que ele juntamente se recorda e não conhece, o que é im­possível. A este modo, liquidamos o mito de Protá­goras e também o teu, visto considerares idênticos conhecimento e sensação.

Teeteto — É verdade.

Sócrates — Mas o que eu acho, amigo, é que tal não se daria se ainda vivesse o pai do primeiro mito, que de todo o jeito saberia defendê-lo. Tudo o que fizemos foi maltratar este, por ser órfão, visto se terem recusado a sair em sua defesa os próprios tutores instituídos por Protágoras, entre os quais se inclui o nosso Teodoro. Por uma questão de justiça, nós mesmos é que teremos de socorrê-lo.

Teodoro — Não fui eu, Sócrates, que fiquei como tutor de seus filhos, mas, de preferência, Cálias, filho de Hipônico. Foi muito rápida nossa passagem dos argumentos sem provas para a geo­metria. Ficar-te-emos agradecido se saíres em sua defesa.

Sócrates — Muito bem dito, Teodoro. Então, vê como me disponho a defendê-lo. Absurdos muito maiores do que esse a gente se vê forçado a admitir quando não presta suficiente atenção ao sentido dos vocábulos de que comumente nos servimos para afir­mar ou negar. A ti é que devo dirigir meu discurso ou a Teeteto?

Teodoro — A ambos, juntamente; porém as res­postas serão dadas pelo mais moço. Um revés, no caso dele, será menos encabulante.

XIX.

Sócrates — Então, vou apresentar uma pergunta bem difícil, que será formulada nos se­guintes termos: Poderá alguém conhecer alguma coisa e, ao mesmo tempo, não conhecer o que co­nhece?

Teodoro — Que responderemos a isso, Teeteto?

Teeteto — Eu, pelo menos, acho que não pode.

Sócrates — Isso não, visto afirmares que ver é conhecer. Como responderias à pergunta inextricá­vel se viesses a cair no poço, como se diz, e com uma das mãos o teu implacável adversário te tapasse um dos olhos e perguntasse se com esse olho tapado enxergavas o seu manto?

Teeteto — Penso que lhe diria: Com esse, não; vejo com o outro.

Sócrates — Sendo assim, a um só tempo vês e não vês o mesmo objeto?

Teeteto — Sim, de certa maneira.

Sócrates — Porém não foi isso o que te per­guntei, voltaria ele a discutir; não me referi à ma­neira, mas apenas se podes, no mesmo passo, não saber o que sabes? Agora ficou patente que vês o que não vês, pois já admitiste que ver é conhecer, e não ver é não conhecer. Conclui tu mesmo o que pode sair de tal embrulho.

Teeteto — Concluo que saiu o contrário do que eu havia afirmado.

Sócrates — É muito provável, meu admirável amigo, que tivesses de passar por outros maus bocados como esse, no caso de perguntarem se pode haver conhecimento agudo e conhecimento obtuso, ou conhecimento de perto porém não de longe, ou conhecimento intenso e conhecimento frouxo e mil outras questões do mesmo gênero com que te poderia surpreender algum adversário de armas leves e mer­cenário desses combates de palavras. Quando hou­vesses proposto a identidade do conhecimento e da sensação, ele se lançaria sobre as sensações do ouvido, do olfato e dos demais sentidos, refutar-te-ia sem misericórdia e não te daria tréguas enquanto não te deixasse boquiaberto diante de sua invejável sabe­doria e colhido na sua rede. Depois de dominado e de ficares inteiramente preso, só te soltaria quando lhe houvesses entregue a dinheirama estipulada. Mas talvez desejes saber o que poderia aduzir Pro­tágoras em defesa de sua doutrina? Valerá a pena falarmos em seu nome?

Teeteto — Acho que vale.

XX.

Sócrates — Diria tudo isso que acabamos de falar em sua defesa e se voltaria, quero crer, para o nosso lado com mostras do mais soberano desprezo, nos seguintes termos: Este mui digno Sócrates, depois de haver perguntado a um menino atemorizado se uma mesma pessoa podia lembrar-se de determinada coisa e não conhecê-la, o que o outro negou, de puro medo, por não poder calcular o que viria depois disso, resolveu cobrir-me de ridículo com sua demonstração. Mas a verdade, levianíssimo Sócrates, é a seguinte: Quando analisas por meio de perguntas algum ponto de minha doutrina e o interrogado, dando a mesma resposta que eu daria, comete alguma cincada, eu sou o que tu confundiste; porém se responde coisa diferente, o erro é apenas dele. Para exemplificar, acreditas, mesmo, que al­guém poderia conceder-te que a memória atual de uma impressão passada, seja, como impressão, igual à que passou e não mais existe? Nem por sombra! Por que teria, então, escrúpulos em admitir que a mesma pessoa pode juntamente saber e não saber a mesma coisa? Ou, se tiver medo de fazer tal confissão, poderá conceder que o indivíduo que se tornou diferente continua sendo o mesmo que era antes de modificar-se, ou melhor: que esse indivíduo seja uno, não muitos, e que estes muitos se multi­pliquem ao infinito, enquanto vier a transformar-se, se precisarmos precaver-nos para não caçar as pa­lavras um do outro? Não, meu afortunado amigo, continuaria Protágoras a falar, cria coragem e ataca apenas minha tese, se puderes, para demonstrar que as sensações de cada um de nós não são indivi­duais, ou, no caso de o serem, prova também que não se nos impõe a conclusão de que o que aparece a cada pessoa só devém, ou melhor, só existe para essa pessoa. Quando te referes a porcos e a cinocé­falos, não só te comportas como porco, como conci­tas teus ouvintes a fazerem o mesmo com relação aos meus escritos, o que não é decente. Insisto em que a Verdade é tal como a escrevi, a saber: Cada um de nós é a medida do que é e do que não é, e que um dado indivíduo difere de outro ao infinito, precisamente nisto de serem e de aparecerem de certa forma as coisas para determinada pessoa, e de forma diferente para outra. Quanto à sabedoria e ao sábio, eu dou o nome de sábio ao indivíduo capaz de mudar o aspecto das coisas, fazendo ser e parecer bom para esta ou aquela pessoa o que era ou lhe parecia mau. Não me venhas, agora, caçar as palavras de minha definição, porém desce até o fundo do pensamento. Recorda-te do que ficou dito antes: que para o doente o alimento é e parece amargoso, enquanto para o indivíduo são parece ser e é precisamente o contrário disso. Não deve­mos deixar um deles mais sábio do que o outro — o que fora impossível — nem sustentar que o doente é ignorante por pensar dessa maneira ou que é sábio o indivíduo com saúde por ser de opinião contrária. O que importa é modificar a condição do primeiro, pois a outra lhe é superior em tudo. Assim, também no domínio da educação cumpre passar os homens do estado pior para o melhor. O médico consegue essa modificação por meio de drogas; o sofista, com discursos. Nunca ninguém pôde levar quem pensa erradamente a ter representações verdadeiras, pois nem é possível ter representação do que não existe nem receber outras impressões além das do momen­to, que são sempre verdadeiras. O que afirmo é que se um indivíduo de má constituição de alma tem opiniões de acordo com essa disposição, com a mu­dança apropriada passará a ter opiniões diferentes, opiniões essas que os inexperientes denominam verdadeiras. No meu modo de pensar, estas serão me­lhores do que as primeiras; mais verdadeiras, nunca. Quanto aos sábios, meu caro Sócrates, longe de mim compará-los aos batráquios; se se ocupam com o corpo, considero-os médicos; em relação com as plan­tas, agricultores. O que afirmo é que estes últimos trocam nas plantas, quando estas adoecem, as sen­sações perniciosas por sensações benéficas e sadias, que é justamente como procedem os oradores sábios e prudentes, fazendo parecer justas às cidades as coisas boas em substituição às más. De fato, tudo o que parece belo e justo para cada cidade, continua sendo para ela isso mesmo enquanto assim pensar: porém o sábio faz ser e parecer benéfico o que até então lhes era pernicioso. Pela mesma razão, o sofista capaz de educar seus discípulos desse modo é sábio e merece ser muito bem pago por eles, depois de terminado o curso. Nesse sentido, apenas, é que uma pessoa será mais sábia do que outra, sem que ninguém possa formar opiniões falsas. Colhe daí por fruto, quer o queiras quer não, que terás de resignar-te a ser medida das coisas. Foi o que nosso argumento demonstrou à saciedade. Se quiseres retomar a questão para contestá-la, podes fazê-lo, opondo argumento a argumento; caso prefiras o método de perguntas, formula tuas questões; é um processo que não admite evasivas e merece a preferência das pessoas inteligentes. Adota, porém, como norma não apresentar perguntas capciosas. Seria o cúmulo da inconsequência declarar-se alguém zeloso da virtude e só valer-se de subterfúgios em suas discussões. Aqui a falta de lealdade consiste em entabular o diálogo sem fazer a necessária distin­ção entre o que é discussão propriamente dita e investigação dialética. No primeiro caso, o dispu­tador diverte-se com o adversário e procura lográ-lo o mais possível; no outro, o dialético procede com seriedade e esforça-se por levantar o adversário, com mostrar-lhe apenas os erros em que ele in­correra, ou fosse por conta própria ou por má orientação de outros diretores. Se assim procederes, teus interlocutores só poderão queixar-se deles mes­mos em suas incertezas e perplexidades, não de ti; seguir-te-ão por toda a parte e se mostrarão amigos, detestando-se e fugindo deles mesmos, para se aco­lherem à filosofia e se mudarem noutros, sem mais continuarem a ser o que eram antes. Porém se fizeres o contrário disso, a exemplo da maioria, o contrário, precisamente, se passará contigo, e em vez de filósofos ou amigos da sabedoria farás de teus acompanhantes inimigos do saber, quando se tor­narem mais idosos. Se me aceitares o conselho, não será com esse gênio azedo e briguento, como disse há pouco, mas com espírito amigável e compreensivo que analisarás nossas proposições, quando declaramos que tudo se move e que as coisas são como, de fato, aparecem a cada um, tanto para os indivíduos como para as cidades. Partindo disso, investigarás se a sensação e o conhecimento são idênticos ou diferentes, não, porém, como fizeste há pouco, recorrendo apenas ao sentido usual das expressões e dos vocábulos, que a maioria violenta ao sabor do acaso, com o que só conseguem aprestar para si próprios toda a sorte de aborrecimentos. — Eis aí, Teodoro, o socorro que me foi possível trazer para teu companheiro, na medida de minha capa­cidade. É pequeno, por eu ser pequeno. Se ele ainda vivesse, com muito mais brilho se defenderia, por fazê-lo em causa própria.

XXI.

Teodoro — É brincadeira, Sócrates; defendeste o homem com ardor juvenil.

Sócrates — Isso é muita bondade, companheiro. Porém dize-me uma coisa: porventura não notaste que Protágoras nos falou agora mesmo em tom de censura, por dirigirmos nosso discurso a um menino e nos aproveitarmos de sua timidez em detrimento de sua doutrina, dele Protágoras? Não chamou a isso pilhéria de mau gosto, dando grande relevo à sua medida das coisas e concitando-nos a estudar seriamente aquela doutrina?

Teodoro — Como não haveria de notar, Só­crates?

Sócrates — E então? Aconselhas a obedecer-lhe?

Teodoro — Sem a menor discrepância.

Sócrates — Como vês, com exceção de ti, todos aqui são crianças. Por isso, se tivermos de obedecer ao homem, eu e tu é que teremos de perguntar e responder no exame acurado de sua tese, para que, pelo menos nisso ele não possa censurar-nos de que a análise de sua doutrina por nós levada a cabo, do começo ao fim não passou de brincadeira com me­ninos.

Teodoro — Ora essa! Teeteto não é capaz de acompanhar com mais facilidade do que muita gente barbada o estudo de qualquer proposição?

Sócrates — Porém não melhor do que tu, Teo­doro. Não irás admitir que eu tenha de defender a todo o transe teu falecido amigo, e tu nada possas fazer nesse sentido. Não, meu caro; acompanha-nos só num trechozinho, até vermos se a ti, somente, é que devemos tomar como medida das figuras geo­métricas, ou se cada um se basta a si mesmo, como tu, na astronomia e nas demais disciplinas em que, com justiça, te distingues.

Teodoro — Não é fácil, Sócrates, ficar um sen­tado ao teu lado e esquivar-se a gente de responder às tuas perguntas. Foi leviandade de minha parte pedir-te há pouco que não me despisses e não me constrangesses neste passo como fazem os Lacede­mônios. Aliás, quer parecer-me que te aproximas mais de Cirão. Pois os Lacedemônios o que fazem é convidar o visitante a retirar-se ou despir-se, ao passo que tu me dás a impressão de representares o teu papel mais à maneira de Anteu. Não largas quem se aproxima de ti, enquanto não o obrigas a despir-se e a medir-se contigo na dialética.

Sócrates — Achaste uma excelente imagem, Teodoro, para minha doença. Com a diferença de que eu sou mais pugnaz do que esses lutadores, pois não têm conta os Héracles e os Teseus com que já me defrontei, campeões de disputa todos eles, e que me malharam sem dó nem piedade. Mas nem por isso abandono o campo, tal a paixão com que me entrego a essa modalidade de exercício. Não me prives, pois, do prazer de medirmos as forças num certame que só será de vantagem para nós dois.

Teodoro — Bem: desisto das objeções; conduze-me para onde quiseres. De todo o jeito, terei de suportar o destino que urdiste para mim, até vir a ser confundido por tua crítica. Porém não ficarei à tua disposição além do termo que tu mesmo pro­puseste.

Sócrates — Basta só até aí. O que importa é ter cuidado para não recairmos, sem querermos, no fraseado infantil, o que nos poderiam censurar.

Teodoro — Esforçar-me-ei nesse sentido, dentro de minhas possibilidades.

XXII.

Sócrates — De início, voltemos a tratar da questão anterior, para vermos se tínhamos ou não tínhamos razão de nos aborrecermos e de rejeitar a tese de que em matéria de sabedoria cada um se basta a si mesmo. O próprio Protágoras admitiu que certos indivíduos levam vantagem sobre outros no discernir o melhor e o pior, vindo a ser esses, precisamente, os sábios. Não foi isso?

Teodoro — Certo.

Sócrates — Se ele se achasse aqui presente e nos fizesse semelhante concessão, não sendo nós os que cedêssemos, como seus defensores não teríamos necessidade de voltar a essa questão com o propósito de reforçá-la. Poderiam, aliás, objetar-nos que nos falta autoridade para admitir seja o que for no nome dele. Em tais questões, não é pequena diferença ser deste modo ou de outro.

Teodoro — Tens razão.

Sócrates — Não procuremos auxílio estranho; a assentemos em poucas palavras as bases do nosso acordo só com elementos tirados do seu próprio argumento.

Teodoro — De que jeito?

Sócrates — É o seguinte: o que aparece para cada pessoa é, realmente, como lhe aparece. Não é assim que ele se exprime?

Teodoro — Exatamente.

Sócrates — Nós, também, Protágoras, expomos a opinião de algum homem, ou melhor, de todos os homens, quando dizemos não haver quem não se considere em determinados assuntos mais sábio do que outros, ou inferior em certas coisas a muita gente, e que, pelo menos nos grandes perigos, como sejam: campanhas militares, doenças, tempestades no mar, são tidos como verdadeiros deuses os que comandam nessas diferentes situações, por ser de esperar deles a salvação, conquanto em nada se distingam dos demais homens, se não for, tão-só, pelo saber. Por toda a parte, no burburinho da vida, todos procuram preceptores e comandantes para si próprios, para os animais e seus trabalhos, não fal­tando, por outro lado, quem não se considere com­petente para ensinar e comandar. Em todos esses casos, que mais poderemos dizer, se não for que os homens estão convencidos de haver entre eles sábios e ignorantes?

Teodoro — Nada mais.

Sócrates — E não consideram todos eles a sabe­doria como pensamento verdadeiro, e a ignorância como opinião falsa?

Teodoro — Sem dúvida.

Sócrates — Que faremos, então, Protágoras, com essa proposição? Diremos que as opiniões dos homens são sempre verdadeiras, ou que algumas vezes são certas e outras vezes falsas? Em qualquer hipótese, o que se conclui é que nas opiniões dos homens não há só verdade, porém as duas coisas: verdades e erros. Reflete agora, Teodoro, se algum dos adeptos de Protágoras, ou tu mesmo, afirmaria que ninguém considera ignorante outra pessoa, ou capaz de formar falsas opiniões?

Teodoro — Não é de acreditar, Sócrates.

Sócrates — No entanto, é a conclusão inevitável a que tende a tese de que o homem é a medida de todas as coisas.

Teodoro — Como assim?

Sócrates — Quando formas em teu foro íntimo alguma opinião sobre determinado objeto e ma co­municas, de acordo com aquela assertiva terá ela de ser verdadeira para ti. Mas não nos assistirá também o direito de atuar como juízes de teu jul­gamento, ou precisaremos concluir sempre que tua opinião é verdadeira? E em cada caso, não pegarão em armas contra ti milhares de adversários que pensam de maneira diferente e denunciam como falsos a tua opinião e o teu juízo?

Teodoro — Sim, Sócrates, por Zeus; miríades, e como diz Homero, prontos para aprestarem toda sorte de incômodos.

Sócrates — E então? Precisamos dizer, se assim o determinas, que formas opiniões verdadeiras para ti, porém falsas para essas miríades de pessoas?

Teodoro — É o que necessariamente se conclui daquela proposição.

Sócrates — E Protágoras, como se arranjaria? Na hipótese de não acreditar que o homem é a medida das coisas, nem ele nem a grande maioria, que, de fato, não acredita, não seria inevitável não existir para ninguém sua Verdade, tal como ele a descreveu? E se ele a admitisse, porém as multidões a rejeitassem, sabes muito bem, para começar, que na mesma proporção em que o número dos que não a aceitam ultrapassa o dos que a aceitam, há mais razões para seu princípio não existir do que para existir.

Teodoro — Necessariamente, se depender do critério pessoal a existência ou não existência de alguma coisa.

Sócrates — Ao depois, o mais bonito, no caso, é reconhecer ele próprio que terão de estar certos seus contraditores, quando opinam sobre seu princí­pio e o declaram falso, visto admitir que a opinião de todos se refere ao que existe.

Teodoro — Perfeitamente.

Sócrates — Então, ele confessa que sua opinião é falsa, uma vez declarada verdadeira a dos que afirmam estar ele em erro.

Teodoro — Necessariamente.

Sócrates — E os outros, admitem que estejam errados?

Teodoro — Em absoluto.

Sócrates — Ao passo que ele proclama estarem todos certos, de acordo com seus próprios escritos.

Teodoro — Parece.

Sócrates — De todo lado, pois, há contestação, a começar por Protágoras. Sim, principalmente por ele, visto aceitar como verdadeira a opinião dos que o contraditam. De onde vem, que o próprio Protágoras admite que nem um cão nem qualquer ho­mem da rua não é medida de nada que não houvesse previamente estudado. Não é isso mesmo?

Teodoro — Exato.

Sócrates — Logo, se é contestada por todo o mundo, a Verdade de Protágoras não é verdadeira para ninguém, nem para ele próprio.

Teodoro — Atacamos com muita violência, Só­crates, esse meu amigo.

Sócrates — Mas meu caro, não dispomos de nenhum critério absoluto para dizer que encontra­mos o caminho certo. É de crer que, como mais velho, ele seja mais sábio do que nós. Se neste momento ele conseguisse sair da terra só até o pescoço, com toda a certeza me acusaria de dizer muita tolice, e a ti também, por concordares comigo, depois do que afundaria de novo na terra e desapareceria. Só o que nos compete, quero crer, é valermo-nos de nós mesmos, tal como nos fez a natureza, e dizer sempre o que nos pareça verdadeiro. Agora, por exemplo, não devemos sustentar, de acordo, aliás, com a opinião geral, que há pessoas mais sábias do que outras, como as há, também, mais ignorantes?

Teodoro — A mim, pelo menos, assim parece.

XXIII.

Sócrates — E não será certo dizermos que constitui base sólida para a tese de Protágoras o que afirmamos em sua defesa, que muita coisa é o que parece ser para cada um de nós: quente, seco, doce e tudo o mais do mesmo tipo? Mas se ele confessar que em certos casos os homens diferem entre si, por força terá de admitir que em matéria de saúde ou de doença não está ao alcance de qual­quer mulherzinha ou criançola curar-se a si mesmo graças ao conhecimento do que lhes é salutar, mas que, pelo menos neste terreno, se não alhures, um homem difere do outro.

Teodoro — É assim que eu penso também.

Sócrates — Em política dá-se o mesmo: belo e feio, justo e injusto, pio e ímpio, o que nesses as­suntos cada cidade tem nessa conta e declara ser legal, é verdadeiro para cada uma, não havendo, nesse domínio, superioridade em matéria de sabe­doria, nem entre os particulares nem entre as cidades. Agora, quanto à questão de determinar o que é de proveito para cada cidade, ele terá de con­cordar que aqui ou nenhures um conselheiro pode ser melhor do que outro e que as cidades diferem fundamentalmente umas das outras com relação à verdade, sem ter ele a ousadia de afirmar que tudo o que determinada cidade legisla, na convicção de que lhe será de proveito, terá de ser, infalivelmente, vantajoso. Acerca do que me referi há pouco, o justo e o injusto, o pio e o ímpio, os homens se comprazem em proclamar que nada disso é assim mesmo por natureza nem tem existência à parte, mas que a opinião aceita por todos torna-se verda­deira nesse próprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento. Os que não estudam a tese de Protágoras até suas últimas consequências não podem estadear outra sabedoria. Porém observo, Teodoro, que nossa investigação nos fez passar de um argumento pequeno para um grande.

Teodoro — E não temos tempo de sobra para tudo, Sócrates?

Sócrates — Parece. Por vezes, meu admirável amigo, tal como agora e em outras circunstâncias, me tem ocorrido como é natural revelarem-se ora­dores ridículos as pessoas dadas a especulações filo­sóficas, sempre que se apresentam nos tribunais.

Teodoro — Que queres dizer com isso?

Sócrates — Parece-me que os indivíduos que desde moços vivem a rolar nos tribunais ou que­jandos ajuntamentos, em confronto com os educa­dos na filosofia e estudos correlatos, são como escravos comparados a homens livres.

Teodoro — E qual é a razão?

SócratesA que apontaste agora mesmo: o tempo de que sempre dispõem, por terem folga para conversar em paz, tal como se dá neste momento conosco, pois agora mesmo mudamos de assunto pela terceira vez. É o que eles fazem quando um novo tema lhes agrada mais do que o debatido, sem se preocuparem se a conversa dura muito ou pouco. O que importa é atingir a verdade. Os outros, ao revés disso, só falam com o tempo marcado, pre­midos a todo instante pela água da clepsidra, que não os deixa alargar-se à vontade na apreciação dos temas prediletos. Ademais, o adversário não arreda pé de junto deles, a insistir nos artigos da acusação, de nome antomosia, outras tantas barreiras que não podem ser ultrapassadas. Trata-se sempre de dis­cursos de escravos a favor de algum conservo, pro­nunciado na presença do senhor que se acha ali sentado e traz na mão alguma queixa. A luta nunca se trava por questões indiferentes, porém sempre de interesse pessoal, estando, muita vez, em jogo a própria vida. De tudo isso resulta que eles ficam hábeis e sumamente atilados, por saberem adular o senhor com suas falas e servi-lo de mil modos. Porém sua alma deles acaba estiolada e retorcida, pois, escravos desde a infância, ressentem-se no crescimento, na retidão e na liberdade, o que os leva a práticas tortuosas e deixa suas tenras almas expostas a perigos e temores de toda a espécie. Não podendo transpor esses obstáculos sem ferir a justiça e a liberdade, voltam-se muito cedo para a mentira e respondem, à injustiça com injustiça, donde vem ficarem inteiramente deformados e retorcidos. Desse modo, terminada a adolescência, sem terem nada sadio na mente, quando atingem a idade madura tornam-se sábios e de malícia incon­trastável, segundo creem. Queres que examinemos também os que compõem nosso coro, ou será prefe­rível deixá-los de lado e reatarmos nossa discussão, para não abusarmos demais da liberdade tão peculiar a nossos discursos a que há pouco nos referimos e da facilidade de mudar de tema?

Teodoro — De jeito nenhum, Sócrates; convém examiná-los. Observaste, com muita propriedade, que os componentes deste coro não somos escravos, mas o inverso: os discursos é que nos servem, aguar­dando cada um deles o remate que lhes quisermos dar, pois não temos juízes postados na nossa frente, nem, como no caso dos poetas, espectadores que nos censurem ou deem ordens.

XXIV.

Sócrates — Então, falemos dos dire­tores do coro, já que isso te agrada, conforme veri­fico. Qual a vantagem de perdermos tempo com a arraia miúda do campo da filosofia? De início, deve­mos observar acerca dos primeiros que desde a mo­cidade o que mais do que tudo ignoram é o caminho da ágora ou onde fica o tribunal, a sala de conse­lho e quejandos, locais de reuniões públicas; não ouvem nem veem as leis nem as decisões escritas ou faladas. As disputas dos cargos públicos nas hetérias, as reuniões e os festins, os banquetes ani­mados por tocadoras de flauta: nem em sonhos lhes ocorre comparecer a nada disso. Nasceu na cidade alguém de nobre ou baixa estirpe? Certo cidadão herdou tara de seus antepassados, homens ou mu­lheres? É o que filósofo conhece tão pouco, como se diz, como quanta areia há no mar. Nem chega mes­mo a saber que não sabe nada disso. Porém não se alheia dessas coisas por vanglória, mas porque real­mente só de corpo está presente na cidade em que habita, enquanto o pensamento, considerando inane e sem valor todas as coisas merecedoras apenas de desdém, paira por cima de tudo, como diz Píndaro, sondando os abismos da terra e medindo a sua superfície, contemplando os astros para além do céu, a perscrutar a natureza em universal e cada a ser em sua totalidade, sem jamais descer a ocupar-se com o que se passa ao seu lado.

Teodoro — Que queres dizer com isso, Sócrates?

Sócrates — Foi o caso de Tales, Teodoro, quando observava os astros; porque olhava para o céu, caiu num poço. Contam que uma decidida e espirituosa rapariga da Trácia zombou dele, com dizer-lhe que ele procurava conhecer o que se passava no céu mas não via o que estava junto dos próprios pés. Essa pilhéria se aplica a todos os que vivem para a filosofia. Realmente, um indivíduo assim alheia-se por completo até dos vizinhos mais chegados e des­conhece não somente o que eles fazem como até mesmo se se trata de homens ou de criaturas de espécie diferente. Mas o que seja o homem e o que, por natureza, lhe cumpre fazer ou suportar, para distingui-lo dos outros seres, eis o que ele procura conhecer, sem se poupar a esforços em sua investigação. Compreendes-me, Teodoro, ou não?

Teodoro — Compreendo; é muito verdadeiro tudo isso.

Sócrates — Eis a razão, amigo, como disse no começo, de em todas as circunstâncias, assim na vida pública como no trato particular com seus con­cidadãos, no tribunal ou alhures, sempre que nosso filósofo é forçado a tratar de assuntos que lhe caem sob a vista ou diante dos pés, tornar-se alvo de galhofa não apenas por parte das raparigas da Trá­cia como de todo o povo, levando-o sua falta de ex­periência a cair nos poços e na mais triste confusão. Sua irremediável inabilidade para as coisas práticas fá-lo passar por imbecil. Num revide de injúrias não sabe como atacar o adversário, por desconhecer os vícios dos homens, já que nunca se preocupou com a vida de ninguém. E por não saber como sair-se de tais enrascadelas, faz papel mais que ridículo. Por outro lado, quando se trata de elogios e de enaltece­rem uns aos outros com termos pomposos, não procura esconder o riso; estoura em gargalhadas sem nenhum constrangimento, o que o faz parecer tolo. Quando ouve o encômio de qualquer tirano ou potentado, imagina que se trata do elogio de um pastor: porqueiro, cabreiro ou vaqueiro, por ser abundante a sua ordenha. É de opinião, aliás, que os reis guardam e ordenham um rebanho muito mais insidioso e intratável do que os dos verda­deiros pastores, e que por falta de vagar acabam ficando tão rústicos e ignorantes como aqueles e tão cercados por seus muros como os verdadeiros pastores pelos currais nas montanhas. Quando ouve dizer que tal indivíduo é dono de dez mil plectros de terra, ou até de mais, como se se tratasse de uma grande propriedade, julga que lhe falam de coisinhas sem valor, acostumado, como está, a con­templar a terra inteira. Ao ouvir gabarem títulos de nobreza, por poder alguém mencionar sete ante­passados ricos, considera absolutamente fútil tal elogio e revelador de curteza de vista por parte dos que falam, os quais, por ignorância, são incapazes de apreender o todo e de calcular que não há quem não tenha miríades sem conta de avós e antepas­sados, entre os quais se sucedem ricos e pobres, também por miríades, potentados e escravos, Helenos e bárbaros, indiscriminadamente, nesta ou naquela geração. Enumerar como grande coisa vinte e cinco antepassados ou dizer-se originário de Héracles, filho de Anfitrião, é para ele uma contagem ínfima. O vigésimo quinto antepassado de Anfitrião foi quem a sorte quis, sem falarmos no quinquagésimo avô desse vigésimo quinto, divertindo-se o filósofo com a incapacidade de toda essa gente para contar e para purgar a mente de tanta fatuidade. Em tais situações o filósofo é ridicularizado pela plebe, que ora o considera desdenhoso, ora desconhecedor do que lhe está na frente dos pés e a quem as menores coisas causam inextricável confusão.

Teodoro — Tudo, Sócrates, se passa exatamente como disseste.

XXV.

Sócrates — Porém no caso, amigo, de conseguir ele arrastar alguém para as alturas em que se encontra e de resolver-se este outro a sair das perguntas: Em que te ofendi? ou Em que me ofendeste? para considerar a justiça ou a injustiça em si mesmas e procurar saber em que uma difere da outra ou de tudo o mais, desistindo de aplicar-se a temas como o de saber se é feliz o Rei ou quem for possuidor de montões de ouro, para estudar a realeza em geral ou a felicidade e a desgraça do homem em universal, em que consistem e de que modo convém à natureza humana adquirir uma e fugir da outra: quando aquele indivíduo de alma pequenina, afiada e chicanista se vê obrigado a responder a todas essas questões, então, é sua a vez de sofrer o mesmo castigo: sente vertigens na altura a que se viu guindado, e por falta de hábito de sondar com a vista o abismo fica com medo, atrapalha-se todo e mal consegue balbuciar, tornando-se objeto de ga­lhofa não apenas das raparigas trácias ou das pes­soas incultas em geral, pois todos estes são inca­pazes de notar o ridículo da situação, como de quantos receberam educação contrária à dos es­cravos. Eis aí, Teodoro, a condição desses dois tipos. Um, educado realmente com liberdade e lazer, a quem dás o nome de filósofo, não merece ser vitu­perado por fazer figura simplória e revelar-se im­prestável quando se vê às voltas com alguma ocupa­ção servil, como, por exemplo, não saber amarrar os cobertores na hora de viajar nem temperar alimen­tos ou preparar discursos bajulatórios. O outro é capaz de fazer tudo isso com rapidez e perfeição, porém não saberá arranjar o manto no ombro direito como o faz o homem livre, e muito menos, apanhan­do a música do discurso, entoar condignamente o hino da verdadeira vida dos deuses e dos varões bem-aventurados.

Teodoro — Se conseguisses, Sócrates, convencer todo o mundo da verdade do que disseste como fizeste comigo, haveria mais paz e menos males entre os homens.

Sócrates — É certo, Teodoro. Porém não é possível eliminar os males — forçoso é haver sempre o que se oponha ao bem — nem mudarem-se eles para o meio dos deuses. É inevitável circularem nesta região, pelo meio da natureza perecível. Daqui nasce para nós o dever de procurar fugir quanto antes daqui para o alto. Ora, fugir dessa maneira é tornar-se o mais possível semelhante a Deus; e tal semelhança consiste em ficar alguém justo e santo com sabedoria. Mas a verdade, meu excelente amigo, é que não é fácil convencer ninguém de que as razões consideradas válidas pela maioria para fugir do vício e procurar a virtude não são as que levam um a cultivar esta e evitar aquela, a fim de não parecer ruim, senão virtuoso. A meu ver, tudo isso não passa de história de velhas, como se diz. Mas a verdade, vou declarar-te qual seja: de modo nenhum Deus é injusto, senão justo em grau máximo, não podendo ninguém ficar semelhante a ele se não for tornando-se o mais justo possível. É assim que se avalia com acerto a superioridade de uma pessoa, ou sua covardia e falta de virilidade. O conheci­mento de semelhante fato configura a sabedoria e a verdadeira virtude, e sua ignorância, maldade e tolice manifestas. As demais aparências de habili­dade e de sabedoria, quando se mostram no exercício do poder público, são conhecimentos grosseiros; nas artes, vulgaridade. Assim, quando alguém é injusto ou ímpio, por ações ou palavras, será melhor não conceder-lhe que todo o seu êxito se baseia na astú­cia, pois esse indivíduo se envaideceria com o reparo, muito ancho por ter ouvido dizer, segundo crê, que não é néscio ou fardo inútil sobre a terra, porém homem como terão de ser os que melhor sabem vencer na vida pública. A esses tais é preciso dizer-lhes a verdade: que são tanto mais o que julgam não ser, quanto menos sabem o que são. De fato, todos eles desconhecem qual seja o castigo da in­justiça, o que menos do que tudo não se pode igno­rar. Não é o que todos pensam: castigos corporais e morte, de que os malfeitores muitas vezes escapam, senão penalidade a que ninguém se exime.

Teodoro — A que penalidade te referes?

Sócrates — Na própria ordem das coisas, amigo, há dois paradigmas: um divino e bem-aventurado; outro, contrário a Deus e miserabilíssimo. Porém nada disso eles percebem; a enfatuação e a demên­cia em grau máximo os impedem de sentir que com suas ações injustas eles se aproximam do segundo e cada vez mais se afastam do primeiro. São castigados pela vida que levam, conforme ao modelo de sua preferência. E se lhes dizemos que se não renunciarem àquela habilidade, depois de mortos não serão recebidos no local estreme de mal­dades e aqui embaixo terão de levar vida conforme seu caráter: os maus convivendo com a maldade: tudo isso eles escutam, sabidíssimos e astuciosos, como palavreado vazio, de pessoas desprezíveis.

Teodoro — É muito certo, Sócrates.

Sócrates — Sei disso, companheiro. Mas uma coisa acontece com eles. Sempre que se veem for­çados, nalgum encontro particular, a argumentar a respeito das teses por eles rejeitadas, e a sustentar com brio por algum tempo a discussão, sem aban­donar covardemente o campo: então, amigo, com todos eles se passa uma coisa muito interessante, pois acabam por se desgostarem de seus próprios argumentos; toda a sua retórica emurchece, fazendo eles, afinal, figura de crianças. Porém deixemos essas considerações, que não passam de acessórios; como novos tributários, poderão afogar o argumento principal, a que teremos de voltar, caso te declares de acordo.

Teodoro — Para mim não foi desagradável, Sócrates, semelhante digressão. Com toda a minha idade, foi-me fácil acompanhá-la. Mas, se assim preferes, refaçamos nosso caminho.

XXVI.

Sócrates — Em nosso estudo ficamos na asserção de que os adeptos da doutrina de ser o movimento a essência última das coisas e de que a realidade para cada indivíduo é exatamente como lhe parece ser, são obrigados a aceitar no resto, principalmente no que concerne à justiça, quanto uma determinada cidade institui como lei é perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei não for derrogada; mas no que entende com os bens, ninguém ainda teve coragem de sustentar que é vantajoso para a cidade tudo sobre o que lhe aprouver legislar, e que vantajoso continuará sendo enquanto a lei não for abolida. Porém isso equivaleria a ridicularizar nosso tema, não é verdade?

Teodoro — Perfeitamente.

Sócrates — Não falemos, pois, do nome, mas apenas da coisa por ele designada.

Teodoro — Sem dúvida.

Sócrates — Seja o que for que a cidade designa por este ou aquele nome, a isso é que ela visa quando promulga leis, não havendo lei dentro de suas cogita­ções e possibilidades, que não seja proposta com vistas ao seu maior proveito. A que outro fim pode visar uma legislação?

Teodoro — A nenhum.

Sócrates — E será que as cidades sempre acer­tam? Não se dará o caso de errarem, e errarem muito?

Teodoro — Eu, de mim, estou convencido de que também erram.

Sócrates — É com o que mais prontamente todos concordariam, se orientássemos nossa investi­gação para o problema do útil em universal. Ora, este se estende também para o futuro. Sempre que legislamos, é com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir, sendo futuro, pre­cisamente, a denominação certa desse tempo.

Teodoro — Perfeitamente.

Sócrates — Assim sendo, perguntamos o se­guinte a Protágoras ou a quem afinar com ele na maneira de pensar: O homem é a medida de todas as coisas, conforme afirmas, Protágoras: do branco, do pesado, do leve, em suma: de tudo o mais do mesmo gênero, sem nenhuma exceção. Por trazer ele em si mesmo o critério decisivo de tudo, como ele percebe as coisas, assim acredita que elas sejam, considerando-as verdadeiras para ele e como existentes. Não é isso mesmo?

Teodoro — Certo.

Sócrates — E com respeito às coisas futuras, Protágoras, lhe diremos, traz o homem, também, o critério em si mesmo, e tal como cada um pensa que as coisas irão acontecer, tudo se passará exa­tamente como eles imaginam? Exemplifiquemos com o calor: quando um leigo em medicina pensa que vai ter febre e que nele se irá revelar essa espécie de calor, e o médico, de seu lado, assevera o contrá­rio: de acordo com qual opinião diremos que o futuro decorrerá? Com ambas, porventura, no sen­tido de que para o médico o paciente não ficará nem quente nem febril, e para este, as duas coisas ao mesmo tempo?

Teodoro — Seria o cúmulo do ridículo.

Sócrates — Porém imagino que a respeito de como ficará o vinho, se doce ou ácido, é decisiva a opinião do agricultor, não a do citarista.

Teodoro — Como não?

Sócrates — O mesmo se diga da consonância ou dissonância futuras: o pedótriba, com seus co­nhecimentos de ginástica não se manifestará com mais segurança do que o músico acerca do que ele próprio, professor de ginástica, achará mais bem soante.

Teodoro — De forma alguma.

Sócrates — Do mesmo modo nos preparativos de um banquete, a opinião do convidado desconhe­cedor da arte culinária valerá menos que a do cozi­nheiro, em matéria do tempero das iguanas. Sim, porque não iremos discutir agora acerca do prazer que qualquer pessoa possa ter neste momento ou tivesse tido no passado; o que se pergunta é se cada um de nós é o melhor juiz para o que nos venha a parecer ou ser, de fato, agradável no futuro. Ou, ainda: sobre o poder maior ou menor de persuasão de discursos que terão de ser pronunciados no tri­bunal, não serás, porventura, Protágoras, mais capaz de prejulgar do que os leigos na matéria?

Teodoro — Certamente, Sócrates; nesse terre­no, pelo menos, ele se declararia superior a todos.

Sócrates — Por Zeus, amigo; sei muito bem disso! Ninguém lhe teria dado tanto dinheiro, só para gozar de sua conversação, se ele não tivesse conven­cido os ouvintes de que a respeito de tudo o que terá de ser ou parecer no futuro, nem os próprios adivinhos julgam com tanta segurança como ele.

Teodoro — É muito certo.

Sócrates — E a legislação e sua utilidade, não olha também para o futuro? E não é admitido por toda a gente que, por vezes, o legislador terá de enganar-se sobre o que possa ser de mais vanta­gem?

Teodoro — Sem a menor dúvida possível.

Sócrates — Mui discretamente, pois, precisare­mos levar teu mestre a confessar que há homens mais sábios do que outros e que só estes servem de medida, e que eu, ignorante como sou, de jeito nenhum poderei ver-me forçado a ser medida, como há pouco queria aquele discurso pronunciado, de bom ou de mau grado, a seu favor.

Teodoro — A meu ver, Sócrates, esse é o ponto mais vulnerável de sua tese, e também pelo fato de admitir ele a validez das opiniões alheias, que, con­forme vimos, se recusam a aceitar como bons seus argumentos.

Sócrates — Em muitos outros pontos, também, Teodoro, pode ser atacada a tese de que a opinião de qualquer pessoa é verdadeira. Porém quando se trata das impressões presentes de alguém, fontes de sensações e de opiniões correlatas, é mais difícil demonstrar que não são verdadeiras. É possível que o que eu digo não tenha consistência e que elas sejam, de fato, irrefutáveis, estando com a verdade os que as consideram evidentes e iguais a conhecimento. Não deixou, pois, o nosso Teeteto de acertar no alvo, quando formulou a identidade entre sen­sação e conhecimento. É de mister, assim, atacar de mais perto a questão, como nos recomendou, aliás, o discurso em defesa de Protágoras, e examinar de novo este ser inquieto e movediço, para percuti-lo e ver se emite som cheio ou de taboca rachada. A batalha travada ao redor dele não é de importância secundária nem mobiliza pouca gente.

XXVII.

Teodoro — Está longe de carecer de importância; na Jônia, principalmente, ela se alastra a olhos vistos. Os sectários de Heráclito são os mais ardorosos defensores de tal doutrina.

Sócrates — Tanto maior é nosso dever, amigo Teodoro, de reexaminá-la desde seus fundamentos, tal como eles mesmos a formularam.

Teodoro — Perfeitamente. Porém discutir com seriedade, Sócrates, doutrinas heraclitianas, ou, como disseste, homéricas, se não forem ainda mais velhas, com aquela gente de Éfeso que se apresentam como conhecedores delas, é tão impossível como falar com quem se encontra azoratado por ferroadas de tavões. Em coerência com a lição de seus próprios escritos, estão sempre em movimento. Demorar no exame de determinado argumento ou questão e, um por vez, com toda a seriedade, perguntar ou respon­der, é o que menos de tudo são capazes de fazer. Até mesmo a expressão Nada já fora excessiva para exprimir a nenhuma tranquilidade de ânimo daquela gente. Quando lhes formulas alguma pergunta, retiram como de um carcás pequeninas e enigmáti­cas sentenças que desferem contra ti; se solicitares esclarecimentos sobre o seu significado, és atingido por outra de construção ainda mais original. E quanto é nisso, nunca chegarás a qualquer conclusão com nenhum deles, como não chegam, aliás, eles mesmos entre si. Põem o máximo empenho em não deixarem que algo se estabilize nos seus discursos nem em suas próprias almas, pelo receio, segundo penso, de que já seria alguma coisa estacionário, que é o que eles mais combatem e se esforçam por expul­sar de toda a parte.

Sócrates — Decerto, Teodoro, só viste esses homens no calor das disputas, sem nunca teres con­versado com eles em tempo de paz, por não serem teus amigos. Porém nos intervalos de mais calma, segundo penso, comunicam essas coisas aos discí­pulos que eles cuidam de formar à sua imagem.

Teodoro — Que discípulos, homem? Entre eles ninguém é discípulo de ninguém. Todos brotam espontaneamente, ao sabor da inspiração, achando cada um de per si que o vizinho não sabe nada. De toda essa gente, como disse, jamais alcançarás a menor resposta, nem à força nem de bom grado; precisamos apanhá-los e examiná-los como a pro­blemas.

Sócrates — Falas com muito senso. E esse pro­blema, não o recebemos dos antigos velado pela poesia, para melhor escondê-lo das multidões, que o Oceano e Tétis, geradores do resto das coisas, são corrente d’água, e que nada é imóvel? É o que os modernos, mais sábios do que eles, demonstram aber­tamente, para que os próprios sapateiros, ouvindo-os, assimilem tamanha sabedoria e deixem de acreditar estultamente que há seres parados e seres em movimento, e aprendam que tudo é movimento, com o que passarão a reverenciar os mestres. Porém por pouco me esqueceu, Teodoro, que outros sustentam precisamente o contrário, como, por exemplo:

Só como imóvel, de fato, é que o Todo deverá chamar-se,

e tudo o mais quanto os Melissos e os Parmênides atiram contra aqueles, a saber: que tudo é um e se mantém imóvel em si mesmo, não havendo lugar para onde possa declinar. E agora, amigo, que faremos no meio de toda essa gente? Avançando aos pouquinhos, viemos cair, sem o percebermos, entre os dois grupos, e se não descobrirmos jeito de escapar de ambos, incorreremos em penalidade, como se dá na palestra com os jogadores de barra, quando, apanhados pelos dois quadros, se veem arrastados em direções contrárias. Parece-me aconselhável co­meçar nosso exame pelos que abordamos primeiro, os que estão em fluxo permanente, e se virmos que sua doutrina tem fundamento sério, nós mesmos os ajudaremos a puxar-nos, para ver se escapamos dos outros. Porém se os que imobilizam o Todo nos parecerem mais verdadeiros, nos acolheremos sob seu amparo, a fim de nos livrarmos dos que movi­mentam até o imóvel. Por último, no caso de concluirmos que nenhum diz coisa com coisa, suportare­mos o ridículo de pretender emitir opinião própria, em que pese à nossa insignificância, após condenar­mos a de pessoas tão veneráveis pelo saber e pela idade. Agora vê, Teodoro, se vale a pena correr semelhante risco.

Teodoro — O que não é admissível, Sócrates, de jeito nenhum, é deixar de investigar o que ambas as facções pretendem.

XXVIII.

Sócrates — Pois investiguemos, já que fazes tanto empenho nisso. A meu parecer, o começo do nosso estudo da natureza do movi­mento deve consistir na indagação do que eles que­rem dizer quando afirmam que tudo se movimenta. É o seguinte: referem-se a uma única forma de movimento ou a duas? Não me agrada ficar sozinho com o meu modo de pensar; põe-te ao meu lado para, juntos, se for o caso, recebermos o castigo. Responde-me ao seguinte: não dirás que uma coisa se movimenta quando ela muda de lugar e também quando gira em torno do mesmo ponto?

Teodoro — Exato.

Sócrates — Eis aí, por conseguinte, uma pri­meira forma de movimento. Mas, quando determinada coisa, parada no lugar em que está, vem a envelhecer, ou de negra fica branca, ou passa de duro para mole, ou sofre alterações de outra natu­reza, não merece tudo isso, também, ser considerado formas de movimento?

Teodoro — Acho que sim.

Sócrates — Não pode ser de outra maneira. Digo, pois, que há duas espécies de movimento: o de alteração e o de translação.

Teodoro — Falas com muito senso.

Sócrates — Firmado esse ponto, voltemos a con­versar com os que afirmam que tudo se movimenta e lhes formulemos a seguinte pergunta: Pretendes que todas as coisas se movem simultaneamente dos dois modos, por alteração e por translação, ou al­gumas dos dois modos, e outras apenas de um?

Teodoro — Por Zeus, não saberei dizê-lo; porém acho que eles responderiam que é pelos dois.

Sócrates — Se o não dissessem, amigo, teriam de reconhecer que estão paradas as mesmas coisas que lhes parecem movimentar-se, e que tão certo seria afirmar que tudo se move como tudo está em repouso.

Teodoro — Só dizes a verdade.

Sócrates — Ora, se tudo tem de mover-se e em nada há imobilidade, tudo se move sempre com todos os movimentos.

Teodoro — Necessariamente.

Sócrates — Analisa também o que eles decla­ram: Já não dissemos que eles explicam a gênese: do calor ou a da brancura ou seja do que for, pelo movimento de cada uma dessas coisas, no momento da sensação, entre o agente e o paciente, com o que este se torna sentiente, não sensação, e o agente, por sua vez, certo qual, não propriamente quali­dade? Decerto a expressão Qualidade não só te parece estranha como difícil de apreender em sua acepção genérica. Então, ouve por partes. O agente não se torna nem calor nem brancura, porém quente e branco, e tudo o mais pelo mesmo conseguinte. Como deves lembrar-te do que ficou dito antes, em parte alguma existe a umidade em si mesma, como não existem o agente e o paciente; do encontro de ambos é que se geram as sensações e seus respectivos objetos, passando a haver, de um lado, uma coisa com certa qualidade, e, do outro, um sujeito que percebe.

Teodoro — Lembro-me; como não?

Sócrates — Deixemos tudo o mais de lado, sem nos preocuparmos com explicações, e nos atenha­mos apenas ao que afirmamos no começo, quando lhes perguntamos: Tudo se move e passa, como di­zeis, não é isso mesmo?

Teodoro — Exato.

Sócrates — De acordo, sempre, com as duas for­mas de movimento por nós distinguidas: alteração e translação?

Teodoro — Certamente, sem o que o movimento não seria perfeito.

Sócrates — Se só houvesse passagem de um para outro lugar, sem nenhuma alteração, seríamos capazes de dizer de que natureza são as coisas que se deslocam e passam, não é isso mesmo?

Teodoro — Certo.

Sócrates — Porém desde que nem isso é estável, e o que se escoa, escoa branco, que também se altera, de forma que há fluxo até da própria brancura, com transição para uma cor diferente, não podendo, pois, de jeito nenhum ser apreendida como tal, ha­verá meio de dar o nome de cor a alguma coisa, com a certeza de estarmos empregando a designação certa?

Teodoro — De que jeito, Sócrates? Nem a isso nem a nada do mesmo gênero, se no próprio instante de designá-la essa coisa nos escapa, visto não parar de escoar-se?

Sócrates — E que diremos das sensações, sejam de que natureza forem, como as da vista, ou as do ouvido? No ver e no ouvir, elas se conservam está­veis?

Teodoro — De jeito nenhum, pois que tudo se move.

Sócrates — Nesse caso, em vez de dizer que alguma coisa é vista, seria mais certo dizer que não é vista, valendo o mesmo para toda espécie de sen­sação, já que tudo se move de todas as maneiras.

Teodoro — Não, realmente.

Sócrates — No entanto, sensação e conhecimen­to se equivalem, como afirmamos eu e Teeteto.

Teodoro — Afirmastes, sim.

Sócrates — Nesse caso, nossa resposta à per­gunta: Que é conhecimento? tanto se referia a co­nhecimento como a não-conhecimento.

Teodoro — É possível.

Sócrates — Saiu-nos uma obra-prima a tentati­va de corrigir nossa primeira resposta, quando nos dispusemos a demonstrar que tudo se move, justa­mente para que a resposta parecesse certa. Agora, porém, pelo que se vê, ficou mais do que claro que se tudo se move, toda resposta a respeito seja do que for é igualmente justa, pois tanto faz dizer que uma coisa é deste jeito como daquele, ou melhor, caso queiras, que devém assim ou assado, para não imobilizarmos toda essa gente com nossa argumen­tação.

Teodoro — Tens razão.

Sócrates — Menos, Teodoro, no ter eu dito: Assim e Não assim. Pois nunca devemos valer-nos da expressão Assim, visto como esse Assim já não seria movimento, nem, ainda, da contrária, Não assim, que também implicaria ausência de movi­mento. Os adeptos de semelhante tese terão de criar uma linguagem nova, por carecerem presente­mente de expressões para traduzir sua hipótese, a não ser a fórmula De nenhum modo, repetida ao infinito, que é a que mais condiz com o que eles querem significar.

Teodoro — Seria, de fato, a expressão mais conveniente.

Sócrates — Desse modo, Teodoro, ficamos livres de teu amigo, sem lhe concedermos em absoluto que todos os homens são a medida de todas as coisas, a não ser o homem inteligente. Não aceita­mos, também, que conhecimento seja sensação, pelo menos em conexões com o princípio de que tudo se move, tirante a hipótese de ter ainda o nosso Teeteto alguma coisa a acrescentar.

Teodoro — Falaste admiravelmente bem, Sócra­tes. E, uma vez terminado esse assunto, sinto-me dispensado da obrigação de responder, pois o com­binado entre nós foi: Até o fim da discussão sobre o princípio de Protágoras.

XXIX.

Teeteto — Porém não antes, Teodoro, de tu e Sócrates estudarem a doutrina dos que proclamam que o Todo está parado, conforme pro­pusestes há pouco.

Teodoro — Moço como és, Teeteto, ensinas os mais velhos a cometer injustiça e violar tratados? Não; cuida do que vais responder a Sócrates no que ainda falta analisar.

Teeteto — Se for do seu agrado. Porém teria mais gosto em ouvir o que acabei de dizer.

Teodoro — Convidar Sócrates para argumentar é o mesmo que chamar cavaleiros para a planície. Se desejas ouvir, basta perguntar.

Sócrates — Porém quer parecer-me, Teodoro, e que não me será possível satisfazer a vontade de Teeteto no que ele me pediu.

Teodoro — Por quê?

Sócrates — Tenho escrúpulos de analisar por maneira muito grosseira Melissos e os mais que proclamam a imobilidade do Todo, em que me mos­tre mais brando do que fui com Parmênides. Porém Parmênides me inspira, para empregar a linguagem de Homero, respeito e vergonha a um só tempo. Estive com o homem quando ainda era muito moço e ele já avançado em anos, tendo-se-me revelado de rara profundidade de pensamento. Por isso, tenho receio de não compreender suas palavras e que nos escape ainda mais o sentido profundo das ideias. Porém o que acima de tudo me faz medo é poder a tese que arrastou para tão longe nossa argumen­tação, a saber, o que seja conhecimento, deixar de ser devidamente apreciada, se novos argumentos tumultuarem o banquete, no caso de lhes facilitar­mos a entrada. Principalmente a questão levantada há pouco é de alcance incalculável; considerá-la pela rama não seria tratamento condigno; mas se a estudarmos como convém, far-nos-á perder de vista a do conhecimento. Teremos de fugir desses dois es­colhos. O aconselhável é ajudar Teeteto com nossa arte maiêutica no seu trabalho de parto do conhe­cimento.

Teodoro — Sim, façamos isso mesmo, se pensas desse modo.

Sócrates — Considera mais o seguinte, Teeteto, como aditamento ao que ficou exposto: sensação é conhecimento; não foi isso que respondeste?

Teeteto — Foi.

Sócrates — E se alguém te perguntasse: Com que o homem vê o branco e o preto e com que ouve o agudo e o grave? penso que lhe responderias: com os olhos e com os ouvidos.

Teeteto — Certo.

Sócrates — O emprego um tanto livre dos vo­cábulos e expressões, sem escravizá-los a um rigo­rismo exagerado, de regra não é indício de falta de educação liberal; o contrário, justamente, é que é mostra de servilismo. Porém em certos casos é necessário precisão, tal como agora, em que se nos impõe a tarefa de procurar o que há de incorreto em tua resposta. Reflete um pouco, para dizer qual é a fórmula mais certa: Vemos com os olhos, ou por meio dos olhos? e Ouvimos com os ouvidos, ou por meio dos ouvidos?

Teeteto — Quer parecer-me, Sócrates, que é por meio dos órgãos, não com eles, que percebemos alguma coisa.

Sócrates — Seria absurdo, menino, se uma quan­tidade enorme de sensações estivessem apinhadas dentro de nós como num cavalo de pau, sem se re­lacionarem com uma única ideia, ou seja a alma ou como te aprouver denominá-la, ponto de conver­gência delas todas, por meio da qual, usada como instrumento, percebemos todo o sensível.

Teeteto — Essa explicação me parece mais certa do que a outra.

Sócrates — A razão de eu exigir em nosso diá­logo tamanha precisão é para sabermos se não há em nós um princípio, sempre o mesmo, com o qual, por meio dos olhos, atingimos o branco e o preto, e, por meio de outros órgãos, outras qualidades, e se, interrogado, poderias relacionar tudo isso com o corpo. Mas talvez seja melhor que a resposta parta de ti mesmo, em vez de eu formulá-la com tanto trabalho. Dize-me o seguinte: os órgãos por intermédio dos quais sentes o quente e o seco, o leve e o doce, tu os localizas no corpo ou noutra parte?

Teeteto — Em nada mais, se não for no próprio corpo.

Sócrates — E não quererás, também, admitir que tudo o que sentes por meio de uma faculdade não podes sentir por meio de outra? Assim, o que é percebido por meio dos olhos não o será pelos ouvidos, e o contrário: o que percebes pelo ouvido, não perceberás pelos olhos.

Teeteto — Como não hei de querer?

Sócrates — E no caso de conceberes, ao mesmo tempo, alguma coisa por meio desses dois sentidos, não poderás ter alcançado essa percepção comum nem só por meio de um nem por meio do outro.

Teeteto — De jeito nenhum.

Sócrates — E a respeito do som e da cor, não admites, inicialmente, que ambos existem?

Teeteto — óbvio.

Sócrates — E também que cada um difere do outro, mas é igual a si mesmo?

Teeteto — Como não?

Sócrates — E que juntos são dois, e cada um em separado é apenas um?

Teeteto — Isso também.

Sócrates — E a semelhança ou dissemelhança entre eles, não és também capaz de investigar?

Teeteto — Talvez.

Sócrates — E por meio de que percebes tudo isso a respeito de ambos? Só por meio da vista ou só por meio do ouvido é que não poderás apreender o que apresentam de comum. Aí vai uma outra prova, em reforço do que dissemos. Se fosse pos­sível determinar até que ponto eles são ou não são salgados, saberias dizer-me por meio de que faculdade os examinarias? Não haveria de ser nem com a vista nem com o ouvido, porém com algo diferente.

Teeteto — Sem dúvida: a faculdade que tem por instrumento a língua.

Sócrates — Muito bem. Mas, por qual órgão se exerce a faculdade que te permite conhecer o que há de comum a todas as coisas e às de que nos ocupamos, para que de cada uma possas dizer que é ou não é, e tudo o mais acerca do que há pouco te interroguei? Para isso tudo, que órgão quererás admitir, por meio do qual perceberá as coisas o que em nós percebe?

Teeteto — Referes-te a ser e a não-ser, seme­lhança e dissemelhança, identidade e diferença, e também à unidade e aos mais números que se lhe aplicam. Evidentemente, tua pergunta abrange, também, o par e o ímpar e tudo o mais que lhes vem no rastro, desejando tu saber por intermédio de que parte do corpo percebemos tudo isso com a alma.

Sócrates — Acompanhas-me admiravelmente bem, Teeteto; foi isso exatamente o que perguntei.

Teeteto — Por Zeus, Sócrates; não sei como responder, salvo dizer que se me afigura não haver um órgão particular para essas noções, como há para as outras. A meu parecer, é a alma sozinha e por si mesma que apreende o que em todas as coisas é comum.

Sócrates — És lindo, Teeteto, não feio, como Teodoro disse há pouco; quem fala desse modo é belo e bom. Além da beleza de tua fala, prestaste-me um excelente serviço com me aliviares de uma expo­sição prolixa, se te parece realmente que algumas coisas a alma investiga por si mesma, e outras por meio das diferentes faculdades do corpo. Era isso que eu pensava e o que queria que tu também admi­tisses.

Teeteto — É como vejo essa questão.

XXX.

Sócrates — E em qual das duas classes pões o ser? Pois o ser ocorre em tudo.

Teeteto — Na das coisas que a alma procura atingir por si mesma.

Sócrates — Que também abrange o semelhante e o dissemelhante, o idêntico e o diferente?

Teeteto — Sim.

Sócrates — E isto agora: o belo e o feio, o bom e o mau?

Teeteto — No meu modo de pensar, é nessas noções, especialmente, que a alma examina o ser, comparando-as em suas relações recíprocas e com os fatos passados, presentes e futuros.

Sócrates — Para aí. E não sentirá pelo tato a dureza do que é duro e a moleza do que é mole?

Teeteto — Sem dúvida.

Sócrates — E a essência e dualidade desses fatos, sua oposição recíproca, a essência dessa mes­ma oposição, não é nossa alma que, voltando a consi­derá-las e a confrontá-las, procura discernir?

Teeteto — Perfeitamente.

Sócrates — Logo, desde o nascimento, tanto os homens como os animais têm o poder de captar as impressões que atingem a alma por intermédio do corpo. Porém relacioná-las com a essência e con­siderar a sua utilidade, é o que só com tempo, tra­balho e estudo conseguem os raros a quem é dada semelhante faculdade.

Teeteto — Perfeitamente.

Sócrates — E poderá atingir a verdade de alguma coisa quem não alcançar a sua essência?

Teeteto — Nunca!

Sócrates — E do que não se alcança a verdade, poder-se-á ter conhecimento?

Teeteto — De que jeito, Sócrates?

Sócrates — Naquelas impressões, por conse­guinte, não é que reside o conhecimento, mas no raciocínio a seu respeito; é o único caminho, ao que parece, para atingir a essência e a verdade; de outra forma é impossível.

Teeteto — Claro.

Sócrates — E darás o mesmo nome aos dois processos, já que é tão grande a diferença entre ambos?

Teeteto — Não fora justo.

Sócrates — Então, que nome dás ao primeiro, isto é, ao fato de ver, ouvir, cheirar e sentir frio ou calor?

Teeteto — O de sensação. Qual mais poderia ser?

Sócrates — A tudo isso dás o nome de sensação?

Teeteto — Forçosamente.

Sócrates — Ao que, conforme vimos, não é dado atingir a verdade, por isso mesmo que não nos conduz à essência.

Teeteto — Sem dúvida.

Sócrates — Como não atinge o conhecimento.

Teeteto — Não, de fato.

Sócrates — Sendo assim, Teeteto, não poderão ser a mesma coisa sensação e conhecimento.

Teeteto — Parece mesmo que não, Sócrates. Pa­tenteou-se-nos agora que conhecimento é diferente de sensação.

Sócrates — Porém o fim primordial de nossa análise não visava a determinar o que conhecimento não é, mas o que venha a ser. De qualquer forma, já avançamos o suficiente para não procurá-lo de jeito nenhum na sensação, porém no nome que possa ter a alma quando se ocupa sozinha com o estudo do ser.

Teeteto — Mas isso, Sócrates, segundo creio, chama-se julgar.

Sócrates — Pois tens razão, amigo, em pensar dessa maneira. Retoma o assunto desde o começo, depois de apagar quanto ficou dito, e considera se não vês melhor do ponto em que chegaste. E agora dize mais uma vez que é conhecimento?

XXXI.

Teeteto — Dizer que tudo é opinião, Sócrates, não é possível, visto haver opinião falsa. Mas pode bem dar-se que conhecimento seja a opi­nião verdadeira, o que formulo à guisa de resposta. Mas, se com o avançar da discussão não nos pare­cer aceitável, como agora, espero encontrar outra.

Sócrates — Firme, assim, Teeteto, é que con­vém falar; não como respondias no começo, com tantas reticências. Continuando desse jeito, de duas fatalmente uma há de ser: ou encontraremos o que procuramos, ou não pensaremos saber, assim de ligeiro, o que desconhecemos em absoluto, van­tagem que não é para desprezar. E agora, como te manifestas? Havendo duas espécies de opinião, uma verdadeira e outra falsa, defines conhecimento como opinião verdadeira?

Teeteto — Isso; é como penso neste momento.

Sócrates — E a respeito de opinião, não vale­ria a pena reconsiderar certa particularidade?

Teeteto — Qual?

Sócrates — Algo que me deixa perplexo, como já tenho ficado tantas vezes, e em grande confusão comigo mesmo e com os outros, por não saber ex­plicar o que se passa nem como começou.

Teeteto — De que se trata?

Sócrates — Como pode ter alguém opinião falsa. Agora mesmo estou em dúvida sobre se devemos deixar de lado essa questão ou considerá-la por maneira diferente da que fizemos antes.

Teeteto — Por que não, Sócrates, por menos ne­cessário que te pareça? Não faz muito, com referên­cia ao lazer tu e Teodoro dissestes com muita pro­priedade que nada nos premia nestas lucubrações.

Sócrates — É muita oportuna a lembrança; talvez não seja fora de propósito voltar sobre nossas pegadas e refazer o caminho andado. Vale mais conseguir pouco e bom do que muito e imperfeito.

Teeteto — Isso mesmo.

Sócrates — E então? De que maneira nos ex­pressaremos? Diremos que em todos os casos clas­sificados como de opinião falsa, sempre que um de nós tem essa opinião e o outro tem opinião ver­dadeira, diremos que essa distinção se funda na natureza?

Teeteto — É o que diremos, sem dúvida.

Sócrates — Acontece, porém, que com o todo e com cada coisa em particular nos defrontamos com a alternativa de saber ou não saber. É certo que entre ambos se encontram o aprender e o esquecer, mas vou deixá-los de lado, pois nada têm que ver com o presente argumento.

Teeteto — Realmente, Sócrates em tudo, essa é a alternativa que se nos impõe: saber ou não saber.

Sócrates — Sendo assim, quando alguém forma alguma opinião seja do que for, é inevitável que diga respeito ao saber ou ao não saber.

Teeteto — Necessariamente.

Sócrates — Pois não se concebe que quem sabe não saiba, e o inverso: saiba quem não sabe.

Teeteto — Como fora possível?

Sócrates — Logo, quando alguém forma opinião falsa, toma as coisas que sabe, não pelo que elas são, mas por outras que ele sabe; de onde vem que, conhecendo ambas, ignora as duas.

Teeteto — Mas isso não é possível, Sócrates.

Sócrates — Ou então, toma o que não sabe por outra coisa que ele também não sabe, como seria o caso de alguém que, não conhecendo nem Teeteto nem Sócrates, se pusesse a imaginar que Sócrates é Teeteto e Teeteto, Sócrates.

Teeteto — De que jeito?

Sócrates — Ninguém chega a imaginar que o que ele sabe seja o que ele não sabe, nem o inverso: ser o que ele não sabe aquilo que ele sabe.

Teeteto — Seria monstruoso.

Sócrates — Então, de que maneira chegará al­guém a formar opinião falsa? Pois, tirante os casos apresentados, não será possível produzir-se qualquer opinião, uma vez que, a respeito de tudo, ou sabemos ou não sabemos, não havendo, assim, em parte algu­ma lugar para opinião falsa.

Teeteto — É muito certo.

Sócrates — Quem sabe, então, se não será pre­ferível, no estudo em que nos empenhamos, em vez de partir da oposição: saber e não saber, fixarmo-nos na de ser e não ser?

Teeteto — Que queres dizer com isso?

Sócrates — Afirmar, simplesmente, que não pode deixar de formar opinião falsa quem pensa o que não existe a respeito seja do que for, pense como pensar em tudo o mais.

Teeteto — Isso, também, é muito provável.

Sócrates — E agora? Que responderíamos, Teeteto, se alguém nos perguntasse: Poderá um fazer o que dizeis, e haverá quem pense o que não existe, seja a respeito de determinada coisa, seja de modo absoluto? A isso, como parece, responderíamos: Sim, quando acredita em algo, e não existe o em que ele crê. Ou como diremos?

Teeteto — Isso mesmo.

Sócrates — E não haverá outro caso em que isso aconteça?

Teeteto — Qual?

Sócrates — Vendo alguma coisa, sem nada ver.

Teeteto — De que jeito?

Sócrates — Quem vê determinada unidade, vê algo existente; ou achas que a unidade pertence à classe das coisas inexistentes?

Teeteto — De forma alguma.

Sócrates — Quem vê, portanto, uma unidade, vê o que existe.

Teeteto — É evidente.

Sócrates — E quem ouve algo, ouve uma unidade que também existe.

Teeteto — Certo.

Sócrates — Como também toca em alguma coi­sa quem toca em algo.

Teeteto — Isso também.

Sócrates — Quem pensa, não pensará em algu­ma coisa?

Teeteto — Forçosamente.

Sócrates — E quem pensa em alguma coisa, não pensa em algo existente?

Teeteto — De acordo.

Sócrates — Logo, quem pensa no que não exis­te, pensa em nada.

Teeteto — É claro.

Sócrates — Mas, pensar em nada é não pensar de jeito nenhum.

Teeteto — Parece evidente.

Sócrates — Não é possível, por conseguinte, pensar no que não existe, nem em si mesmo nem em relação com o que existe.

Teeteto — Parece que não.

Sócrates — Ter opinião falsa, por conseguinte, é diferente de pensar no que não existe.

Teeteto — Diferente, parece.

Sócrates — Então, não será nem dessa maneira nem da que consideramos antes que se formam em nós opiniões falsas.

Teeteto — Não, decerto.

XXXII.

Sócrates — Porém não lhe damos esse nome, quando se forma da seguinte maneira?

Teeteto — De que jeito?

Sócrates — Designamos como opinião falsa o equívoco de quem, confundindo no pensamento duas coisas igualmente existentes, afirma que uma é outra. Desse modo, ele sempre pensa em algo exis­tente, porém põe uma coisa em lugar de outra. Assim, visar a um alvo errado é o que com todo o direito se pode denominar opinião falsa.

Teeteto — Tenho a impressão de que tudo o que disseste está muito certo. Quando alguém julga feio o que é bonito, ou bonito o que é feio, emite opinião verdadeiramente falsa.

Sócrates — Pelo que vejo, Teeteto, tratas-me com muito pouco caso e não tens medo de mim.

Teeteto — Por quê?

Sócrates — Por imaginares, conforme creio, que eu iria deixar passar sem reparo aquele teu Verdadeiramente falso, para perguntar-te se o veloz pode ser lento, ou pesado o que é leve, e manifes­tar-se cada contrário, não de acordo com sua pró­pria natureza, mas com a do seu contrário, oposta à sua. Porém deixo passar essa oportunidade, para não decepcionar teu desembaraço. Satisfaz-te, con­forme disseste, afirmar que ter opinião falsa é tomar uma coisa pela outra?

Teeteto — A mim satisfaz.

Sócrates — Assim, de acordo com tua opinião, é possível conceber uma coisa como diferente, não como ela é em pensamento.

Teeteto — É possível.

Sócrates — E quando algum pensamento se en­gana desse jeito, não será forçoso imaginar as duas coisas ao mesmo tempo, ou apenas uma delas?

Teeteto — Necessariamente: ou como simultâneas ou como sucessivas.

Sócrates — Ótimo! Mas por pensar entendes a mesma coisa que eu?

Teeteto — Que queres dizer com isso?

Sócrates — Um discurso que a alma mantém consigo mesma, acerca do que ela quer examinar. Como ignorante é que te dou essa explicação; mas é assim que imagino a alma no ato de pensar: for­mula uma espécie de diálogo para si mesma com perguntas e respostas, ora para afirmar ora para negar. Quando emite algum julgamento, seja avan­çando devagar seja um pouco mais depressa, e nele se fixa sem vacilações: eis o que denominamos opinião. Digo, pois, que formar opinião é discursar, um discurso enunciado, não evidentemente, de viva voz para outrem, porém em silêncio para si mesmo. E tu, como te parece?

Teeteto — A mesma coisa.

Sócrates — Logo, sempre que alguém toma uma coisa por outra, diz para si mesmo, conforme creio, que uma é a outra.

Teeteto — Como não?

Sócrates — Sendo assim, procura recordar-te se alguma vez já disseste para ti mesmo que o belo é seguramente feio, e o injusto, justo. Ou melhor, num exemplo decisivo; se alguma vez já procuraste persuadir-te de que uma coisa é seguramente outra, ou se, ao contrário, nunca, nem mesmo em sonhos, tiveste a ousadia de tentar convencer-te de que o ím­par é seguramente par, ou qualquer outra asserção da mesma espécie?

Teeteto — Tens razão.

Sócrates — E acreditas mesmo que haja alguém, ou louco ou de juízo perfeito, capaz de tentar convencer-se de que o boi terá de ser cavalo e que dois é um?

Teeteto — Não, por Zeus.

Sócrates — Nesse caso, se julgar é discursar para si mesmo, não há quem, ao falar a respeito de dois objetos e ao imaginá-los, e apreendendo a ambos pelo pensamento, seja capaz de dizer ou de imaginar que um é o outro. O que me importa significar é que ninguém imagina que o feio é belo, ou qualquer outra coisa do mesmo gênero.

Teeteto — Aceito, Sócrates, tudo isso, pois sou dessa mesma opinião.

Sócrates — Quem pensa, pois, em ambos, não pode tomar um pelo outro.

Teeteto — Exato.

Sócrates — Por outro lado, se essa pessoa pen­sar num, sem cogitar absolutamente do outro, não haverá jeito de imaginar que um é o outro.

Teeteto — Tens razão; equivaleria a fixar o pensamento no que está ausente dele.

Sócrates — Logo, quer se pense nos dois, quer num apenas, não será possível tomar um pelo outro. Quem define, por conseguinte, opinião falsa como troca de representação, não diz coisa com coisa. Não é desse modo nem das maneiras consideradas antes que se formam em nós opiniões falsas.

Teeteto — Parece mesmo que não é.

XXXIII.

Sócrates — No entanto, Teeteto, se não admitirmos semelhante possibilidade, seremos forçados a aceitar um sem-número de absurdos.

Teeteto — Quais são?

Sócrates — Não tos direi, enquanto não anali­sarmos o problema sob todos os seus aspectos; sen­tir-me-ia envergonhado por nós dois, se nesta per­plexidade fôssemos obrigados a admitir o que vou dizer. Porém se encontrarmos a solução procurada e conseguirmos sair deste apuro, livres, de todo, do ridículo, poderemos falar de quem se encontre em situação idêntica. Porém se falharmos, acho que pre­cisaremos revestir-nos de humildade e deixar que o argumento nos pise e faça conosco o que quiser, como acontece a bordo com os passageiros atacados de enjoo. Só vejo um caminho para nos livrarmos deste cipoal. Escuta.

Teeteto — Podes falar.

Sócrates — Nego que estivéssemos certos quan­do admitimos não ser possível tomar o que se sabe pelo que não se sabe e, desse modo, enganar-se. No entanto, de um jeito ou de outro isso é possível.

Teeteto — Falas do que eu já havia suspeitado, quando tratamos dessa questão, no caso, de conhe­cendo Sócrates, ver de longe outra pessoa desconhe­cida para mim e imaginar que é Sócrates, a quem conheço. Passa-se nesse exemplo exatamente o que disseste.

Sócrates — Porém já não afastamos essa expli­cação, por implicar o absurdo de sabermos e de não sabermos, ao mesmo tempo, aquilo que sabemos?

Teeteto — Perfeitamente.

Sócrates — Não ponhamos, pois, a questão nesses termos, mas nos seguintes; com isso, talvez concordem conosco, talvez protestem com veemência. Na apertura em que nos encontramos, forçoso nos será volver os argumentos de todos os lados e pô-los à prova. Vê se o que eu digo tem algum sentido. É possível aprender-se alguma coisa que antes se igno­rava?

Teeteto — Sem dúvida.

Sócrates — E depois mais outra, e outra mais?

Teeteto — Por que não?

Sócrates — Suponhamos, agora, só para argu­mentar, que na alma há um cunho de cera; numas pessoas, maior; noutras, menor; nalguns casos, de cera limpa; noutros, com impurezas, ou mais dura ou mais úmida, conforme o tipo, senão mesmo de boa consistência, como é preciso que seja.

Teeteto — Está admitido.

Sócrates — Diremos, pois, que se trata de uma dádiva de Mnemenosine, mãe das Musas, e que sem­pre que queremos lembrar-nos de algo visto ou ouvido, ou mesmo pensados calcamos a cera mole sobre nossas sensações ou pensamentos e nela os gravamos em relevo, como se dá com os sinetes dos anéis. Do que fica impresso, temos lembrança e conhecimento enquanto persiste a imagem; o que se apaga ou não pôde ser impresso, esquecemos e ignoramos.

Teeteto — Terá de ser assim mesmo.

Sócrates — Vê agora se não pode ajuizar falsamente o indivíduo que dispõe desse conhecimento, ao considerar alguma coisa que ele tivesse visto ou ouvido. É do seguinte modo.

Teeteto — De que jeito?

Sócrates — Pelo fato de ora tomar o que ele conhece pelo que conhece mesmo, ora pelo que não conhece. Erramos há pouco ao declarar não ser isso possível.

Teeteto — E agora, como te parece?

Sócrates — O seguinte, tomando o assunto do começo e depois de fazer algumas distinções. O que se sabe por ter a lembrança impressa na alma, porém não se percebe, não é possível tomar por outra coisa que se sabe e de que se tenha a impressão, porém não se percebe; como também não o será tomar o que se sabe pelo que não se sabe nem possui a im­pressão, ou o que não se sabe, por algo que, do mesmo modo, não se sabe, ou, ainda, que o que não se sabe seja o que se sabe. Não é, também, possível imaginar que o que se percebe realmente seja outra coisa também percebida, ou que o que se percebe seja o que não se percebe, ou o que não se percebe, o que se percebe; e o inverso: o que não se percebe seja o que se percebe. Há mais: o que se sabe e se percebe e possui a marca conforme a respectiva impressão, imaginar que seja outra coisa que se conhece e percebe e possui a marca de acordo com a impressão é ainda mais impossível do que os casos anteriores. Mais: não é possível confundir o que se sabe e percebe e de que se conserva a impressão fiel, com aquilo que se sabe, como também o que se sabe e percebe e de que se conserva a impressão fiel, com aquilo que se sabe, como também o que se sabe e percebe e possui impressão exata com o que se percebe, nem, ainda, o que não se sabe nem se percebe com o que não se sabe nem se percebe, como também o que não se sabe nem se percebe com o que não se percebe. Em todos esses casos é mais do que impossível, para quem quer que seja, formar opinião falsa. Os únicos casos de opinião falsa — a admitir-se essa possibilidade — seriam os seguintes.

Teeteto — Quais serão? Vejamos se por meio desses outros chegarei a entender o que queres dizer, porque até agora não consegui acompanhar-te.

Sócrates — Os em que se tomam as coisas co­nhecidas por outras conhecidas e percebidas, ou por outras não conhecidas porém percebidas, ou, ainda, os casos de confusão entre coisas conhecidas e per­cebidas e outras também conhecidas e percebidas.

Teeteto — Agora, sim, recuei para mais longe do que estava antes.

XXXIV.

Sócrates — Então, ouve tudo isso de novo, porém da seguinte maneira: Sendo certo que eu conheço Teodoro e me lembro em mim mesmo como ele é, a mesma coisa acontecendo com relação a Teeteto, ora os vejo e ora não vejo; por vezes toco neles, por vezes não toco, ou os ouço ou percebo por meio de outra sensação, podendo também dar-se o caso de não ter de vós dois nenhuma sensação; mas nem por isso deixo de lembrar-me de ambos e de conhecer-vos por mim mesmo.

Teeteto — Perfeitamente.

Sócrates — Antes de mais nada, adverte no que me importa esclarecer: do que se sabe em determi­nado momento, é possível não se ter nenhuma sen­sação, como é possível ter.

Teeteto — Certo.

Sócrates — E não é também possível, com rela­ção ao que não se sabe, não ter, por vezes, nenhuma sensação e, por vezes, não ter senão a sensação cor­respondente?

Teeteto — Sim, é possível.

Sócrates — Vê agora se consegues acompanhar-me mais facilmente. Se Sócrates conhece Teodoro e Teeteto, porém não vê nem um nem outro, nem recebe da parte deles nenhuma espécie de sensação, jamais admitirá que Teeteto seja Teodoro. Há senti­do no que eu disse, ou não há?

Teeteto — Sim, bastante sentido.

Sócrates — Pois essa é a ilustração do primeiro caso formulado há pouco.

Teeteto — Sem dúvida.

Sócrates — O segundo exemplo será: conhecen­do eu apenas um de vós e não conhecendo o outro, porém não percebendo nem um nem outro, jamais poderá dar-se o caso de imaginar que o que eu conheço seja o que não conheço.

Teeteto — Certo.

Sócrates — Terceiro exemplo: não conhecendo nem percebendo nem um nem outro, não poderei, de maneira nenhuma, acreditar que um de vós, que eu não conheço, seja o outro que eu também não conheço. Admite agora que tornaste a ouvir, por ordem todos os casos enumerados há pouco, nos quais não poderei, de modo algum, formar falsa opi­nião a teu respeito ou de Teodoro, tanto no pressu­posto de conhecer a ambos como no de não conhecer, ou, ainda, no de conhecer um mas não conhecer o outro. O mesmo é válido para a sensação, se é que já me acompanhas.

Teeteto — Acompanho.

Sócrates — Resta a possibilidade de formar opi­nião falsa na hipótese de conhecer-te e a Teodoro e de ter a impressão de ambos naquele bloco de cera, como a que deixa o selo de um anel. Per­cebendo-vos de longe sem muita nitidez, procuro conciliar a marca de cada um com os respectivos traços fisionômicos, para que estes se ajustem no rasto daquelas e possibilite o reconhecimento. Mas pode acontecer que me engane, como quem troca os pés ao calçar os sapatos, e aplique a impressão visual de um na marca do outro, ou que seja vitima da ilusão própria dos espelhos, em que fica no lado direito o que está no esquerdo: nesses casos pode tomar-se uma coisa por outra e haver opinião falsa.

Teeteto — É bem provável, Sócrates, que seja assim mesmo; descreveste à maravilha tudo o que se passa com a opinião.

Sócrates — Remanesce, ainda, a hipótese de co­nhecer ambos, porém, ademais desse conhecimento, perceber apenas um, não o outro, sem poder conci­liar o conhecimento daquele com a sensação corres­pondente, ponto sobre o qual já me explanei, sem que tu, então, me compreendesses.

Teeteto — É fato.

Sócrates — O que, então, disse, foi que se alguém conhece um de vós e o percebe, e o conheci­mento coincide com a percepção, de jeito nenhum poderá confundi-lo com outra pessoa também co­nhecida e vista, e cujo conhecimento, de igual modo, está de acordo com a percepção. Não foi isso?

Teeteto — Foi.

Sócrates — Mas houve omissão da hipótese de que ora tratamos, em que a opinião falsa, digamos, se produz da seguinte maneira: seria o caso de conhecer alguém os dois, de ver a ambos ou de ter de ambos qualquer outra sensação, porém não coincidir a marca de nenhum de vós com as respec­tivas sensações, e, à feição de um mau arqueiro, disparar canhestramente e bater longe do alvo, que é o que se chama, propriamente, errar.

Teeteto — Com toda a razão.

Sócrates — Por isso, quando se tem a sensação do selo de um de vós, faltando a do outro, e se aplica à sensação presente o selo ou marca da ausente, em semelhantes casos o pensamento erra. Em re­sumo: acerca do que nunca se soube nem nunca se percebeu, não é possível, me parece, nem enga­nar-se nem formar opinião falsa, se for realmente saudável nossa proposição. Mas justamente nas coisas que sabemos e que percebemos é que a opi­nião vira e se muda, ficando, a revezes, falsa e verdadeira: quando ela ajusta direta e exatamente a cada objeto o cunho e sua imagem, é verdadeira; será falsa, quando os ajusta de través e obliquamente.

Teeteto — Tudo isso, Sócrates, não está mara­vilhosamente exposto?

Sócrates — Falarás com maior entusiasmo, ain­da, quando ouvires o seguinte. Pensar com acerto é belo; pensar erroneamente é feio.

Teeteto — Como não?

Sócrates — A diferença entre ambos, dizem, provém disto: Quando a cera que se tem na alma é profunda e abundante, branda e suficientemente amassada, tudo o que se transmite pelo canal das sensações vai gravar-se no coração da alma, como diz Homero, aludindo à sua semelhança com a cera, saindo puras as impressões aí deixadas, bastante profundas e duradouras. Os indivíduos com seme­lhante disposição aprendem facilmente e de tudo se recordam e sempre formam pensamentos verda­deiros, sem virem jamais a confundir as marcas de suas sensações. Sendo nítidas e bem espaçadas todas as impressões, com facilidade põem em relação cada imagem com a correspondente marca, as coisas reais, como lhes chamam. São esses os denominados sábios. Não te parece que está certo?

Teeteto — Maravilhosamente certo.

Sócrates — Quando o coração de alguém é ve­loso, qualidade decantada pelo poeta sapientíssimo, ou de cera carregada de impurezas, ou muito úmida ou muito seca, as pessoas de coração úmido, apren­dem depressa mas esquecem facilmente, e ao revés disso as de coração por demais seco. As de coração veloso, áspero e pedrento, devido à mistura de terra e de espurcícia, recebem impressões pouco claras, por carecerem de profundidade. Igualmente pouco ní­tidas são as de coração úmido: por se fundirem umas com as outras, em pouco tempo ficam irre­conhecíveis. E se além de tudo isso, por exiguidade de espaço, ficarem amontoadas, mais indistintas se tornarão: os indivíduos desse tipo são propensos a emitir juízos falsos, pois quando veem ou ouvem ou pensam, falta-lhes agilidade para relacionar de imediato cada coisa com sua marca peculiar; são morosos, trocam as coisas, veem e ouvem mal e, no mais das vezes, pensam errado. Daí serem cha­mado ignorantes e dizer-se que sempre se enganam com a realidade.

Teeteto — Falas com mais acerto do que nin­guém, Sócrates.

Sócrates — Então, podemos dizer que em nós há opiniões falsas?

Teeteto — Sem dúvida.

Sócrates — E também verdadeiras?

Teeteto — Sim, também verdadeiras.

Sócrates — Dessa forma, concluiremos que ficou cabalmente provada a existência das duas espécies de opinião.

Teeteto — Provada à saciedade.

XXXV.

Sócrates — Talvez não haja, Teeteto, criatura mais incômoda e molesta do que o indiví­duo conversador.

Teeteto — E essa! A que vem semelhante ob­servação?

Sócrates — Por eu estar desacorçoado com mi­nha irremediável ignorância e essa tagarelice que não para mais. Que outra classificação daremos a um tipo que, por pura estupidez, puxa seus argu­mentos em todos os sentidos, sem nunca dar-se por convencido nem abrir mão de nenhum?

Teeteto — E tu, por que ficaste desanimado?

Sócrates — Não é só desanimado; receio não ter o que responder, se alguém me perguntasse: Descobriste, Sócrates, que as opiniões falsas não se originam nem das relações recíprocas das sensações nem dos pensamentos entre si, mas do ajustamento entre a sensação e o pensamento? Decerto diria que sim, muito ancho de tão bela descoberta.

Teeteto — A mim também, Sócrates, não me parece nada fraca a demonstração agora feita.

Sócrates — Assim, prosseguiria esse tal, pelo que dizes não podemos acreditar que o homem con­cebido por nós em pensamento, sem jamais ter sido visto, seja um cavalo que também não vemos nem tocamos e apenas concebemos, sem nada mais per­cebermos de sua parte? Quer parecer-me que eu afir­maria pensar desse modo.

Teeteto — Com carradas de razão.

Sócrates — Nesse caso, prosseguiria, na cauda de semelhante argumento, o onze que só for pensado, ninguém confundiria com o doze, que também só seja pensado. Passa agora para a frente e dize o que lhe responderias.

Teeteto — Ora, responderia que, vendo ou apal­pando determinados objetos, é possível confundir onze com doze, o que não aconteceria absolutamente se se tratasse apenas de números pensados.

Sócrates — Como assim? Imaginas o caso de alguém que se propõe a considerar cinco e sete? Não me refiro a cinco homens ou sete homens, nem a qualquer coisa desse gênero, porém ao próprio cinco e ao próprio sete, cujas marcas dizemos esta­rem impressas no nosso bloco de cera e a respeito das quais pretendemos não ser possível formar opi­nião falsa. Se outros homens, digo, examinassem esses números e cada um para si mesmo formulasse a pergunta da soma de ambos, poderia um deles pensar e declarar que é onze, enquanto outro afir­maria que é doze, ou todos, sem exceção, dirão que é doze?

Teeteto — Não, por Zeus, muitos dirão onze; quanto maior for o número a considerar, maior será a margem do erro. Pois estou certo de que te referes a qualquer espécie de número.

Sócrates — É pertinente o reparo. Considera agora se isso não implica simplesmente tomar por onze o próprio doze gravado na cera.

Teeteto — Parece que sim.

Sócrates — E isso não nos leva de volta para o argumento anterior? Quem comete um engano desses, confunde uma coisa que ele conhece com outra que ele também conhece, o que declaramos não ser possível, razão de afirmarmos não haver opinião falsa, para não termos de admitir que a mesma pessoa sabe e não sabe, a um só tempo, a mesma coisa.

Teeteto — É muito certo.

Sócrates — Precisamos, pois, demonstrar que a opinião falsa difere essencialmente do desajuste entre pensamento e sensação; se for o caso, jamais nos enganaríamos em nossas cogitações. De duas, uma terá de ser por força: ou não há opinião falsa, ou é possível não saber-se o que se sabe.

Teeteto — Propões uma escolha dificílima, Só­crates.

Sócrates — Mas, admitir os dois é o que talvez nosso argumento não permita. Dê no que der, con­vém arriscar tudo… E se nos decidíssemos a deixar a vergonha de lado?

Teeteto — Como assim?

Sócrates — Atrevendo-nos a declarar em que consiste propriamente o saber.

Teeteto — E em tudo isso, onde está a falta de vergonha?

Sócrates — Pareces não refletir que, desde o começo, nossa discussão nada mais foi do que uma investigação sobre o conhecimento, como se ignorás­semos, portanto, sua natureza.

Teeteto — Não é isso; refleti, sim.

Sócrates — E não achas, então, falta de vergo­nha, ignorando o que seja conhecimento, querermos demonstrar o que é saber? A verdade, Teeteto, é que há bastante tempo andamos às tontas, por um vício do raciocínio. Mais de mil vezes empregamos as expressões Conhecemos e Não conhecemos, como se entendêssemos o que falamos, quando, em ver­dade, ignoramos o que seja conhecimento. Caso queiras, agora mesmo dissemos Compreender e Igno­rar, como se nos fosse lícito empregar esses termos, carecendo, como carecemos, do conhecimento.

Teeteto — Então, de que maneira conversarás, Sócrates, se te proibires empregá-los?

Sócrates — Eu, de nenhuma, por ser como sou; porém de muitos modos, caso fosse amigo de disputas. Se neste momento tivéssemos aqui um indivíduo desse tipo, acho que se absteria de empregá-las e criticaria severamente as expressões de que me valho. Mas, por sermos uns pobres diabos, queres que me arrisque a dizer o que é saber? Penso que nos advirá disso alguma vantagem.

Teeteto — Arrisca-te, por Zeus. Se não podes desprezar essas expressões, ficarás plenamente jus­tificado.

XXXVI.

Sócrates — Decerto já ouviste por aí definir o saber?

Teeteto — É possível; porém neste momento não tenho nenhuma lembrança.

Sócrates — Falam em ter conhecimento.

Teeteto — Isso mesmo.

Sócrates — Façamos uma pequena modificação para dizer que é posse de conhecimento.

Teeteto — Em que te parece que uma definição difere da outra?

Sócrates — Talvez não haja diferença, porém ouve primeiro o que eu penso, para depois criticar­mos juntos a expressão.

Teeteto — Pois não, se eu for capaz de tanto.

Sócrates — Não se me afigura a mesma coisa ter e possuir. Por exemplo: se alguém compra uma roupa e, na qualidade de dono dessa roupa, não a usa, não diremos que ele a tem, mas que a possui.

Teeteto — Está certo.

Sócrates — Agora vê se é também possível pos­suir conhecimento sem tê-lo. Seria o caso de quem caçasse pássaros selvagens, pombo torcaz ou outros, e os criasse em casa, num pombal adrede construído. De certo modo, podemos dizer que ele sempre os tem, visto possuí-los, não é verdade?

Teeteto — Perfeitamente.

Sócrates — Porém noutro sentido, não tem ne­nhum; dispõe, isso sim, de certo poder sobre eles, por havê-los apanhado e posto num aviário de sua propriedade, de onde os pode retirar e ter quando quiser, agarrando e soltando de novo o que bem lhe parecer, com a faculdade de poder repetir essa manobra as vezes que entender.

Teeteto — Exato.

Sócrates — Uma vez mais, e a exemplo do que fizemos com nossa alma, ao modelar uma espécie de ficção de cera, construamos em cada alma um viveiro para os mais variados pássaros, alguns em bandos, apartados dos demais, outros em pequenos grupos, e alguns poucos, ainda, solitários, a voarem pelo meio de todos, por onde bem lhes apetece.

Teeteto — Admitamos que já esteja construído. E depois?

Sócrates — Na infância, é o que precisamos admitir, essa gaiola está vazia, e em vez de pássaros imaginemos conhecimentos. Sempre que alguém adquire algum conhecimento e o fecha em tal re­cinto, diz-se que ele aprendeu ou encontrou a coisa de que isso é o conhecimento, e que nisso consiste, precisamente, o saber.

Teeteto — Vá que seja.

Sócrates — Ao depois, se alguém quiser caçar um desses conhecimentos, segurá-lo firme ou soltá-lo de novo, considera que nome devemos aplicar a tudo isso: os mesmos de antes, quando os adquiriu, ou diferentes? Com isto vais apreender melhor o que eu quero dizer. Não admites que há uma arte da aritmética?

Teeteto — Admito.

Sócrates — Então, concebe-a como sendo uma caça aos conhecimentos em geral do par e do ímpar.

Teeteto — Já concebi.

Sócrates — Por meio dessa arte, quero crer, qualquer pessoa não apenas tem sob o seu domínio a ciência dos números, como poderá transmi­ti-la a outrem quando se propuser ensiná-la.

Teeteto — Certo.

Sócrates — De quem transmite esses conheci­mentos, dizemos que ensina, e de quem os recebe, que aprende, como, também, de quem os tem, por possuí-los no seu aviário, que sabe.

Teeteto — Perfeitamente.

Sócrates — Presta agora atenção ao seguinte: o aritmético perfeito não conhece todos os núme­ros? Pois ele tem na alma o conhecimento de todos eles.

Teeteto — Como não?

Sócrates — E não pode esse indivíduo contar para si mesmo alguma coisa ou os próprios números ou objetos externos que possam ser enumerados?

Teeteto — Como não?

Sócrates — Porém a outra coisa não damos o nome de contar se não for procurar saber a quanto montam determinados números.

Teeteto — Certo.

Sócrates — Assim, quem sabe parece investigar como se não soubesse, visto termos admitido que ele conhece todos os números. Nunca ouviste falar dessas perguntas de duplo sentido?

Teeteto — Ouvi.

XXXVII.

Sócrates — Voltando à nossa com­paração da aquisição e da caça dos pombos, diremos que se trata de uma caçada dupla: uma, antes da aquisição, com o fim preciso de adquirir; outra, levada a cabo pelo próprio adquirente, quando apa­nha e segura nas mãos o que ele, havia muito, já possuía. Da mesma forma, quem possui certos co­nhecimentos, por os ter adquirido e por sabê-los, pode aprendê-los de novo, com tomar e segurar o conhecimento de determinada coisa de que já era dono desde muito, mas que não tinha à mão em pensa­mento.

Teeteto — Certo.

Sócrates — Foi isso, precisamente, o que te e perguntei: de que vocábulos nos valermos, para nos referirmos ao aritmético que se dispõe a calcular, ou ao gramático, a ler alguma coisa? É como sabedor que ele volta a considerar o assunto, a fim de aprender outra vez o que já sabe?

Teeteto — Seria estranho, Sócrates.

Sócrates — Ou diremos que ele lê ou calcula o que não sabe, se antes aceitamos nele o conhecimento de todas as letras e de todos os números?

Teeteto — Isso também não seria lógico.

Sócrates — Sugeres declararmos que não damos importância às palavras nem procuramos saber para que este ou aquele puxa o Aprender e o Saber, como melhor lhe apraz, e que, uma vez assentada a dife­rença entre ter conhecimento e possuir conheci­mento, afirmamos ser impossível não possuir o que se possui, de forma que jamais pode dar-se o caso de não saber alguém aquilo que sabe? Mas que é admissível formar opinião falsa a esse respeito, quando não se tem o conhecimento dessa coisa, porém de outra, e na caçada dos conhecimentos que volitam no aviário, por engano apanha-se um em lugar do que se pretendia? Nessas condições, essa pessoa acredita que onze seja doze, como se dava no outro caso, ao pegar um pombo torcaz em vez de um pombo manso.

Teeteto — É bem razoável.

Sócrates — Porém quando ele apanha o que tencionava, mesmo, apanhar, não se engana e julga o que realmente é. Eis o que se chama julgar com acerto ou julgar falsamente, ficando, assim, removidas as dificuldades que antes nos causavam tanto embaraço. Penso que concordas comigo; ou que farás?

Teeteto — Declaro-me de pleno acordo.

Sócrates — Desse modo, livramo-nos do Não saber o que se sabe, pois o Não possuir o que se possui não poderá ocorrer de jeito nenhum, haja ou não haja erro. Porém julgo entrever um abor­recimento ainda mais sério.

Teeteto — Qual será?

Sócrates — Sempre que se dá troca de conheci­mentos se origina a opinião falsa.

Teeteto — Como pode ser isso?

Sócrates — Em primeiro lugar, na hipótese de ter-se o conhecimento de uma coisa e, não obstante, não conhecer essa coisa, não por ignorância, mas em virtude do próprio conhecimento. Depois, pensar que essa coisa seja outra e que esta última seja aquela. Não será o cúmulo do absurdo ter presente na alma o conhecimento, nada conhecer e ignorar tudo? Se­guindo esse mesmo raciocínio, nada impediria admi­tir que a ignorância condiciona conhecer alguma coisa, e a cegueira, perceber algo, uma vez que o conhecimento pode levar alguém a não saber.

Teeteto — Talvez, Sócrates, não tenhamos sido e muito felizes em pôr os pássaros como represen­tantes apenas de conhecimentos; fora preciso ima­ginar também algumas formas de ignorância a es­voaçar na alma, de mistura com os conhecimentos; desse jeito, o caçador, ora apanhando um conheci­mento, ora uma das formas de não-conhecimento, ajuizará erradamente por meio do não-conhecimento e com acerto por meio do conhecimento.

Sócrates — Não é fácil, Teeteto, deixar de elo­giar-te. No entanto, reconsidera tuas próprias pala­vras. Vá que seja como disseste; quem apanhar o não-conhecimento, conforme afirmas, julgará falso, não é assim?

Teeteto — Certo.

Sócrates — Mas, nem por isso pensará que for­mou opinião falsa.

Teeteto — Como o poderia?

Sócrates — Ao contrário; pensará que julgou com acerto e se comportará como sabedor precisa­mente naquilo em que está errado.

Teeteto — Sem dúvida.

Sócrates — Imaginará que pegou um conheci­mento, não alguma forma de ignorância.

Teeteto — É claro.

Sócrates — Assim, depois de uma volta enorme, viemos bater outra vez na dificuldade inicial. Com a sua risadinha costumeira, decerto aquele nosso contraditor nos objetaria: De que jeito, excelentes amigos, quem conhece os dois: o conhecimento e o não-conhecimento, tomará um deles, que ele conhece, pelo outro, que ele também conhece? Ou então, não conhecendo nem um nem outro, como tomará um que ele desconheça por outro também desconhecido? Ou, ainda, conhecendo um e não conhecendo o outro, tomará o que ele conhece pelo que não conhece, ou o inverso: o que não conhece, pelo que conhece? Ou ireis dizer-me novamente que desses conhecimen­tos e dessas ignorâncias há outras espécies de co­nhecimento que o possuidor traz fechadas nalgum ridículo aviário ou tabuinha de cera, que ele conhece enquanto as possui, conquanto não as tenha à mão no pensamento? Desse jeito, sereis forçados a andar à roda dez mil vezes, sem adiantar um passo. Diante disso, Teeteto, que lhe responderíamos?

Teeteto — Por Zeus, Sócrates; à fé, não sei o que dizer.

Sócrates — Não te parece justa, menino, a censura de nosso argumento, quando nos increpa de erro por procurarmos a opinião falsa antes do co­nhecimento, deixando este de lado? Pois não será possível conhecer aquela antes de saber o que vem a ser conhecimento.

Teeteto — Nas presentes circunstâncias, Sócra­tes, é a conclusão que se impõe.

XXXVIII.

Sócrates — Então, para começar, que diremos, mais uma vez, que seja conhecimento? Pois estou certo de que não vamos parar aqui.

Teeteto — De jeito nenhum; salvo se desani­mares.

Sócrates — Então, dize qual é a melhor ma­neira de defini-lo sem nos contradizermos muito.

Teeteto — Precisamente a que tentamos há pouco, Sócrates; não vejo outra saída.

Sócrates — Qual é?

Teeteto — Opinião verdadeira é conhecimento. O pensamento certo está isento de erro, e tudo o que sai dele é belo e bom.

Sócrates — O guia para passar o rio a vau, Teeteto, costuma dizer: o que ele mesmo vai demonstrar daqui há pouco. Assim estamos nós; se levarmos adiante nosso estudo, talvez iremos bater com os pés no que procuramos; aqui parados é que nada se esclarecerá.

Teeteto — Tens razão; prossigamos e investi­guemos.

SócratesNão vai ser longa essa investigação. Uma arte inteirinha está a indicar que conhecimento não é isso.

Teeteto — De que forma? E que arte é essa?

Sócrates — A dos grandes mestres de sabedoria, que denominamos oradores e advogados. Não é com sua arte e ensinando que eles convencem os outros, mas levando-os, por meio da sugestão, a admitir tudo o que eles querem. Acreditas, mesmo, que haja profissionais tão habilidosos, a ponto de demonstrarem a verdade do fato, para quem não foi tes­temunha ocular de alguma violência ou roubo de dinheiro, no pouquinho de tempo que a água corre na clepsidra?

Teeteto — De jeito nenhum posso acreditar nisso; o que eles fazem é persuadir.

Sócrates — E persuadir, no teu modo de pensar, não é levar alguém a admitir alguma opinião?

Teeteto — Sem dúvida.

Sócrates — Nesse caso, quando os juízes são persuadidos por maneira justa, com relação a fatos presenciados por uma única testemunha, ninguém mais, julgam por ouvir dizer, após formarem opinião verdadeira; é um juízo sem conhecimento; porém ficaram bem persuadidos, pois sentenciaram com acerto.

Teeteto — Isso mesmo.

Sócrates — No entanto, amigo, se conhecimento e opinião verdadeira nos tribunais fossem a mesma coisa, nunca o melhor juiz julgaria sem conheci­mento. Mas agora parece que são coisas diferentes.

Teeteto — Sobre isso, Sócrates, esquecera-me o que vi alguém dizer; porém agora volto a recordar-me. Disse essa pessoa que conhecimento é opinião verdadeira acompanhada da explicação racional, e que sem esta deixava de ser conhecimento. As coisas que não encontram explicações não podem ser co­nhecidas — era como ele se expressava — sendo, ao revés disso, objeto do conhecimento todas as que podem ser explicadas.

Sócrates — Falas muito bem. Porém dize-me como ele distingue as conhecidas das que não são, para vermos se eu e tu ouvimos a mesma cantiga.

Teeteto — Não sei se poderei recordar-me; po­rém se alguém fizer essa exposição, penso que me será fácil acompanhá-lo.

XXXIX.

Sócrates — Então, que vá um sonho em troca de outro. Eu também, parece-me ter ouvido de certa pessoa que os denominados elementos pri­mitivos de que somos compostos, como tudo o mais, não admitem explicação. A cada um só poderás dar nome, sem nada mais acrescentar, nem que é nem que não é, pois isso já implicaria atribuir-lhe existência ou não-existência, o que não seria lícito, se quiseres falar dele, apenas dele. Como também não devemos determiná-los com expressões como: Mesmo, Aquilo, Cada um, ou: Só, Isto e muitas outras do mesmo tipo. Porque semelhantes deter­minações circulam por tudo e em tudo aderem, sendo diferentes das coisas a que se juntam, quando o importante para aqueles elementos, no caso de nos ser possível defini-los e de comportar cada um sua explicação particular, seria serem enunciados à parte de tudo, sem acréscimo de qualquer natu­reza. A verdade, em suma, é que nenhum desses elementos admite explicação; só podem ser nomea­dos; é só o que tem: nome. Diferentemente se passa com os compostos desses elementos: por serem complexos, são expressos por uma combinação de nomes, pois a essência da definição consiste numa combinação de nomes. A esse modo, as letras são inexplicáveis e desconhecidas, porém percebidas pelos sentidos, ao passo que as sílabas são conhecíveis, explicáveis e podem ser objeto da opinião verdadeira. Por isso, quando alguém forma opinião verdadeira de qualquer objeto, sem a racional explicação, fica sua alma de posse da verdade a respeito desse objeto, porém sem conhecê-lo. Pois quem não sabe nem dar nem receber explicação de alguma coisa, carece do conhecimento dessa coisa; porém se a essa opinião acrescentar a explicação racional, então ficará perfeito em matéria de conhecimento. Foi isso que ouviste em sonhos, ou foi coisa diferente?

Teeteto — Foi exatamente isso.

Sócrates — Semelhante explicação te satisfaz, e admites agora que a opinião verdadeira, acom­panhada da razão, seja conhecimento?

Teeteto — Sem dúvida.

Sócrates — Dar-se-á o caso, Teeteto, de termos conseguido encontrar hoje o que de muito tantos sábios procuravam e envelheceram sem encontrar?

Teeteto — Quer parecer-me, Sócrates, que a presente explicação foi muito bem conduzida.

Sócrates — É provável que seja assim mesmo; pois, como poderia haver conhecimento sem expli­cação racional e opinião verdadeira? Só uma coisa não me agrada em tudo o que ficou dito.

Teeteto — Que é?

Sócrates — Justamente o que dá a impressão de ser mais engenhoso, a saber: que os elementos não podem ser conhecidos, o que não se dá com suas combinações.

Teeteto — E não estará certo?

Sócrates — É o que precisamos verificar. Como reféns dessa proposição, temos os próprios modelos usados pelo autor da tese.

Teeteto — Que modelos?

Sócrates — Os elementos da escrita e suas com­binações, ou seja, as letras e as sílabas. Ou achas que tinha outra coisa em vista quem formulou o que acabamos de expor?

Teeteto — Não; era isso mesmo.

XL.

Sócrates — Então, ponhamos à prova outra vez esses princípios, ou melhor, ponhamo-nos à prova, para vermos se foi desse modo ou não que aprendemos as letras. Para começar, digamos que as sílabas admitem definição, o que não acontece com as letras. Não é isso mesmo?

Teeteto — É evidente.

Sócrates — Para mim, também, parece eviden­tíssimo. Por exemplo, se alguém te interrogar deste modo, a respeito da primeira sílaba de Sócrates: Teeteto, que é So? que lhe responderias?

Teeteto — Diria: S e O.

Sócrates — Essa é tua explicação da sílaba?

Teeteto — Exato.

Sócrates — Então, vem cá e dá-me a explica­ção do 5.

Teeteto — De que modo enumerar os elementos de um elemento? O fato, Sócrates, é que o S é uma letra muda, simples ruído, como que um sibilo da língua. O B, por outro lado, não tem nem som nem ruído, o que, aliás, também acontece com a maioria dos elementos, de onde vem ser possível dizer-se que as letras são irracionais, pois as mais claras dentre elas, as vogais, nada têm além do som, não sendo, por conseguinte, passivas de ulterior explicação.

Sócrates — Eis aqui, amigo, um ponto bem assentado por nós, com referência ao conhecimento.

Teeteto — Parece que sim.

Sócrates — E então? Não tínhamos o direito de afirmar que o elemento não pode ser conhecido e que a sílaba o pode?

Teeteto — Parece que sim.

Sócrates — Nesse caso, vejamos como devemos dizer: a sílaba é, para nós, as duas letras, e, no caso de haver mais de duas, todas as letras, ou, de pre­ferência, uma determinada forma surgida de sua combinação?

Teeteto — Da combinação de todas, é o que me parece.

Sócrates — Então, volta a considerar as duas letras: S e O. Ambas formam a primeira sílaba do meu nome. Quem conhecer a sílaba, conhecerá tam­bém as duas letras?

Teeteto — Como não?

Sócrates — Conhecerá, por conseguinte, o S e o O.

Teeteto — Certo.

Sócrates — Como assim? Não conhecia nem uma nem outra; e, desconhecendo ambas, conhece as duas?

Teeteto — Parece absurdo, Sócrates, e fora de toda a razão.

Sócrates — Mas se, para conhecê-las juntas, tiver de conhecê-las cada uma delas em particular, neces­sariamente terá de conhecer antes os elementos para poder conhecer a sílaba, com o que nossa bela expli­cação nos foge e desaparece.

Teeteto — É muito certo; num átimo.

Sócrates — É que não a vigiamos como fora preciso. Talvez seja mais certo dizer que a sílaba não é os elementos, porém uma ideia distinta e originária dos elementos, de forma peculiar e dife­rente deles.

Teeteto — Perfeitamente; é provável que seja assim mesmo, não daquele outro jeito.

Sócrates — É o que precisamos estudar melhor, para não trairmos por maneira nada viril um argu­mento tão grande e respeitável.

Teeteto — Não, decerto.

Sócrates — Vá que seja, como acabamos de dizer: a sílaba é uma ideia única, formada da com­binação de vários elementos, tanto com relação a letras como com tudo o mais.

Teeteto — Perfeitamente.

Sócrates — Logo, não poderá ter partes.

Teeteto — Por que não?

Sócrates — Porque o todo do que é composto de partes, terá por força de ser a totalidade dessas partes; ou dirás que o todo saído das partes seja uma ideia única, diferente da totalidade das partes?

Teeteto — É isso mesmo que eu penso.

Sócrates — Mas a soma e o conjunto, achas que sejam a mesma coisa ou coisas diferentes?

Teeteto — Neste particular, não me sinto muito firme; porém como pediste que responda sem vaci­lações, atrevo-me a dizer que são diferentes.

Sócrates — Tua decisão, Teeteto, é muito reco­mendável; mas precisamos ver se a resposta tam­bém é.

Teeteto — Precisamos, realmente.

XLI.

Sócrates — Assim, o conjunto é diferente da soma, de acordo com a explicação anterior.

Teeteto — Isso mesmo.

Sócrates — E agora? O total e o conjunto das partes não diferem entre si? No caso, por exemplo, de dizermos: um, dois, três, quatro, cinco, seis; ou duas vezes três, ou três vezes dois, ou quatro mais dois, ou três mais dois mais um: de toda maneira dizemos a mesma coisa ou coisas diferentes?

Teeteto — A mesma.

Sócrates — Que não será senão seis?

Teeteto — Sem dúvida.

Sócrates — Com todas essas fórmulas só expres­samos o total seis?

Teeteto — Exato.

Sócrates — Logo, não dissemos nada de novo, quando falamos em total.

Teeteto — Sem dúvida.

Sócrates — Nada mais do que seis?

Teeteto — Nada.

Sócrates — Sendo assim, no que for formado de números, o mesmo vale dizer total como conjunto?

Teeteto — Parece.

Sócrates — Falemos, então, do seguinte modo: o número de uma jeira de terra e a própria jeira são a mesma coisa, não é isso?

Teeteto — Exato.

Sócrates — Acontecendo o mesmo com o nú­mero do estádio?

Teeteto — Sim.

Sócrates — E também com o número do exér­cito e com o próprio exército, e com tudo o mais do mesmo gênero? Pois o total dos números é o conjunto da realidade de cada um.

Teeteto — Certo.

Sócrates — E o número de cada um, será outra coisa além de suas partes?

Teeteto — Nada mais.

Sócrates — Logo, tudo o que tem partes é com­posto de partes?

Teeteto — Parece.

Sócrates — Porém já ficou assentado que o total das partes é a sua soma, caso seja também o total dos números a sua soma.

Teeteto — Isso mesmo.

Sócrates — Então, o todo não é constituído de partes, pois nesse caso viria a ser o total, dado que fosse a soma de todas as partes.

Teeteto — Não é possível.

Sócrates — Mas a parte pode ser parte de outra coisa a não ser do total?

Teeteto — Sim, do total.

Sócrates — Lutas valentemente, Teeteto. Mas, o total não será precisamente isso, total, só quando nada lhe faltar?

Teeteto — Forçosamente.

Sócrates — E não é também certo que o todo só poderá ser isso mesmo, quando nada lhe faltar? Não poderá ser todo nem soma o que lhe faltar algo, por produzir a mesma causa, nos dois casos, idênticos efeitos.

Teeteto — Agora, sou também de parecer que não há diferença entre a soma e o todo.

Sócrates — Já não dissemos que onde há partes, a soma e o total é a totalidade das partes?

Teeteto — Perfeitamente.

Sócrates — E agora voltemos ao que há pouco eu queria demonstrar. Se a sílaba não é os elemen­tos, não será forçoso não ter esses elementos como partes, ou então, no caso de ser a mesma coisa que eles, terá de ser, como eles, reconhecível?

Teeteto — Certo.

Sócrates — E não foi para evitar essa consequência que admitimos ser ela diferente?

Teeteto — Foi.

Sócrates — E então? Se as letras não são partes da sílaba, podes indicar mais alguma coisa que seja parte da sílaba, afora as mesmas letras?

Teeteto — Absolutamente. Se eu tivesse de ad­mitir que ela é composta de partes, seria ridículo abrir mão das letras para procurar outra coisa.

Sócrates — Assim, Teeteto, de acordo com este último argumento, ficou provado, à justa, que a sílaba é uma forma única e indivisível.

Teeteto — Parece.

Sócrates — Mas deves lembrar-te, amigo, que agora mesmo aceitamos como muito bem formulada a conclusão de que para os primeiros elementos com­ponentes das coisas não cabe nenhuma explicação, por não ser composto cada um deles em si e por si mesmo, como não cabe, com referência a todos eles, empregar expressões como Ser ou Este, pois isso significaria falar de algo estranho a eles e diferente, sendo essa, precisamente, a causa de serem eles inex­plicáveis e incognoscíveis?

Teeteto — Lembro-me.

Sócrates — E além dessa, haverá outra causa de ser ele indivisível e de forma simples? Eu, pelo menos, não descubro nenhuma.

Teeteto — Ao que parece, não há.

Sócrates — E não estará a sílaba no mesmo caso, por carecer de partes e constituir uma ideia única?

Teeteto — Perfeitamente.

Sócrates — Se a sílaba constar de muitos ele­mentos e formar um todo cujas partes são esses ele­mentos, terá de ser conhecida e explicada do mesmo modo que os elementos, pois já vimos que a totali­dade das partes é idêntica à sua soma.

Teeteto — Sem dúvida.

Sócrates — No caso, porém, de ser una e indivisível, da mesma forma que as letras, terá de ser desconhecida e inexplicável. A mesma causa produz sempre idênticos efeitos.

Teeteto — Nada tenho a objetar.

Sócrates — Não aceitaremos, pois, a opinião dos que afirmam poder ser a sílaba conhecida e explicá­vel, e os elementos, o contrário disso.

Teeteto — Não, de fato, se confiarmos em nosso argumento.

Sócrates — Mas, como! Se alguém te afirmasse justamente o contrário, não lhe darias mais depressa o teu assentimento, com base na experiência do tempo em que aprendeste a conhecer as letras?

Teeteto — Que experiência?

Sócrates — É que, ao aprender a ler, em nada mais te aplicavas senão só em procurar distinguir as letras pela vista e pelo ouvido, cada uma em si mesma, para não te atrapalhares com a sua posição, quando tivessem de ser escritas ou enunciadas.

Teeteto — É muito certo o que dizes.

Sócrates — E o estudo a preceito com o cita­rista, consistirá noutra coisa além de poder acom­panhar o som e dizer de que corda provém? São esses, ninguém o negará, os elementos da música.

Teeteto — Não há outros.

Sócrates — Desse modo, se tivermos de concluir das letras e das sílabas, de que temos experiência, para qualquer outra coisa, diríamos que o gênero dos elementos permite um conhecimento muito mais claro e eficiente do que o das sílabas, no estudo de qualquer disciplina. Por isso mesmo, se alguém nos disser que a sílaba é conhecível e que, por natureza, o elemento não é, consideraremos que ele está brin­cando, de plano ou sem querer.

Teeteto — É claro.

XLII.

Sócrates — Tenho que a esse respeito ainda poderíamos aduzir muitos argumentos; porém acautelemo-nos para não perdermos de vista, com essa explanação, nosso primeiro intento, sobre o alcance da afirmativa de que a explicação racional aliada à opinião verdadeira constitui o conhecimento perfeito.

Teeteto — Sim, precisamos voltar a considerar esse ponto.

Sócrates — Então me dize que quererá dizer, à justa, naquele passo, Explicação racional? Para mim, terá um destes três significados.

Teeteto — Quais são?

Sócrates — O primeiro consiste em tornar claro o pensamento por meio da voz, com o emprego de verbos e substantivos, fazendo refletir-se como num espelho ou na água a imagem de sua opinião na corrente que promana da boca. Não te parece que Explicação seja isso mesmo?

Teeteto — Sem dúvida; pelo menos, dizemos que quem assim procede, explica.

Sócrates — É o que todos são capazes de fazer, com maior ou menor rapidez: expor sua maneira de pensar a respeito do que quer que seja, a menos que se trate de alguém surdo e mudo de nascença. Desse modo, todos os que formam opinião verdadei­ra, a associam a alguma explicação, não podendo haver nenhures opinião verdadeira sem conhecimento.

Teeteto — É verdade.

Sócrates — Não condenemos, pois, à ligeira, como se não tivesse dito nada, o autor da definição de conhecimento que estamos a analisar. Certa­mente ele não queria dizer isso, entendendo, sempre que perguntado sobre a natureza de alguma coisa, a capacidade de responder, para quem formulou a pergunta, com a enumeração dos elementos dessa coisa.

Teeteto — Que queres dizer, Sócrates?

Sócrates — Por exemplo: Falando de um carro de guerra, diz Hesíodo: Carro de um cento de peças. Ora, tantas eu nunca poderia enumerar, nem tu, segundo creio; dar-nos-íamos por satisfeitos se a quem nos perguntasse o que é um carro de guerra, pudéssemos mencionar as rodas, o eixo, a mesa, o parapeito e o jugo.

Teeteto — Perfeitamente.

Sócrates — Esse indivíduo pensaria de nós a mesma coisa se nos interrogasse a respeito de teu nome e não o soletrássemos pelas letras, mas por sílabas. Riria à grande, sem dúvida, para acabar afirmando ser essa explicação indício de que o pen­samento está certo, mas cometemos erro grave por nos considerarmos gramáticos e, nessa qualidade, termos e formularmos a explicação gramatical do nome de Teeteto. E também que não se pode falar de conhecimento de alguma coisa, da qual se tenha opinião verdadeira, antes de enumerar seus elementos componentes, do que, aliás, já tratamos em qual­quer ponto de nossa exposição.

Teeteto — Já, realmente.

Sócrates — A este modo, dirá também que for­mamos opinião certa a respeito do carro de guerra, mas que só quem estiver em condições de acompa­nhar a essência do carro com a enumeração completadas cem peças de sua fabricação é que, pelo fato mesmo desse conhecimento, adicionou a explicação racional à opinião verdadeira, trocando, assim, sua condição de simples entendido pela de técnico da essência do carro, visto haver percorrido o todo com a enumeração de suas partes.

Teeteto — Não achas cabal, Sócrates, essa ex­plicação?

Sócrates — Se a julgas boa, amigo, e aceitas que a descrição de qualquer coisa pela enumeração de seus elementos componentes seja explicação ra­cional, enquanto é de todo falha a que se baseia nas sílabas ou em combinações de mais vastas propor­ções, declara-o logo, para que nos apliquemos a esse ponto.

Teeteto — Admito-a sem a menor restrição.

Sócrates — Por imaginares, talvez, que alguém possa ter conhecimento seja do que for, quando julga que uma mesma coisa ora pertence a um determinado objeto, ora a outro, ou quando, acerca do mesmo objeto opina de um jeito ou de outro, conforme as circunstâncias.

Teeteto — Eu não, por Zeus!

Sócrates — E não te recordas de que era isso mesmo o que ocorria quando tu e os outros come­çastes a aprender a ler?

Teeteto — Queres dizer que para a mesma sílaba por vezes atribuíamos uma letra, por vezes outra, e que ora colocávamos a mesma letra na sílaba certa, ora numa diferente?

Sócrates — Isso mesmo.

Teeteto — Não! Não me esqueci, por Zeus; como acho que está muito longe de saber quem ainda se encontra nesse ponto.

Sócrates — E então? Se alguém, em tais cir­cunstâncias, ao querer escrever Theeteto, pensa que deve começar, como de fato começa, por Th e E, e quando se decide a escrever Teodoro acha que deve escrever T e E, como realmente escreve: teremos de afirmar que conhece a primeira sílaba de vossos nomes?

Teeteto — Agora mesmo acabamos de admitir que nada sabe quem ainda se encontra nesse ponto.

Sócrates — E que o impede de proceder de igual modo na segunda, terceira e quarta sílabas?

Teeteto — Nada, absolutamente.

Sócrates — Então, de posse do caminho dos ele­mentos, ele escreverá o nome Theeteto com opinião certa, quando tiver de escrever na devida ordem?

Teeteto — Evidente.

Sócrates — No entanto, ainda carece do conhe­cimento, conforme já observamos, muito embora tenha opinião verdadeira.

Teeteto — Certo.

Sócrates — Porém ele tem a explicação racional de teu nome aliada à explicação verdadeira: ao es­crever, conhecia a sequência dos elementos, que é no que consiste a explicação racional, conforme ad­mitimos.

Teeteto — Certo.

Sócrates — Sendo assim, companheiro, ele tem opinião verdadeira associada à explicação racional, a que não podemos ainda dar o nome de conhecimento.

Teeteto — Talvez.

XLIII.

Sócrates — Então, ao que parece, só ficamos ricos em sonhos, onde imaginamos ter en­contrado a perfeita definição do conhecimento. Ou ainda é cedo para condená-la? Possivelmente, não será essa a definição escolhida, mas a fórmula que ainda resta daquelas três, quando dissemos que uma teria de ser adotada como definição de explicação racional por quem considerasse conhecimento como opinião verdadeira aliada à explicação certa.

Teeteto — oportuna a lembrança; ainda falta essa fórmula. A primeira, por assim dizer, era a imagem do pensamento na palavra; a que acabamos de analisar, o caminho que vai dar no todo passando pelas partes. E acerca da terceira, como te mani­festas?

Sócrates — Como o faria o vulgo: poder indicar um sinal que distinga de todos os outros o objeto de que se trata.

Teeteto — E nesse sentido, saberás apontar o sinal característico de alguma coisa?

Sócrates — Sei, caso queiras: o sol, cuja refe­rência, tenho certeza, te parecerá cabal, se disser que é o mais brilhante dos corpos que se movem ao redor da terra.

Teeteto — Perfeitamente.

Sócrates — Agora escuta por que falei dessa maneira. É como dizíamos há pouco: se apanhares num determinado objeto o que o distingue dos de­mais, apanhaste, como dizem alguns, sua explicação ou definição. Mas enquanto só atingires caracteres comuns, tua explicação dirá respeito apenas aos ob­jetos que tenham de comum essa característica.

Teeteto — Compreendo; e me parece corretís­simo dares a isso o nome de explicação.

Sócrates — Assim, quem acrescentar à opinião verdadeira de um ser a diferença que o distingue dos demais, terá adquirido o conhecimento do que antes ele tinha apenas opinião.

Teeteto — É também o que afirmamos.

Sócrates — Em verdade, Teeteto, agora que me encontro mais perto de nossa definição, passa-se comigo certamente como quem contempla de longe uma pintura: não entendo nada de nada. Enquanto me achava a certa distância, parecia-me exprimir alguma coisa.

Teeteto — Como assim?

Sócrates — Vou explicar-to, se puder. Admitin­do-se que eu tenha de ti opinião verdadeira, só che­garei a conhecer-te se acrescentar a isso tua defini­ção; em caso contrário, não faço senão opinar a teu respeito.

Teeteto — De acordo.

Sócrates — Ora, essa definição era a explica­ção de tua diferença.

Teeteto — Realmente.

Sócrates — Enquanto eu não fazia mais do que opinar, não alcançava com o pensamento aquilo por que te distingues dos demais.

Teeteto — Parece mesmo que não.

Sócrates — Só me ocupava, pois, em pensa­mento, com algo de que tanto participas como qual­quer outra pessoa.

Teeteto — Forçosamente.

Sócrates — Mas então dize-me, por Zeus, como eu poderia, nessas condições, opinar mais ao teu respeito do que ao de qualquer outra pessoa? Supõe que eu dissesse de mim para comigo: aquele ali é Teeteto, visto ser homem e ter nariz, olhos, boca e todos os outros membros. Em que esse pensamento me permitirá pensar mais em ti do que em Teodoro, ou, como se diz, no último dos Mísios?

Teeteto — Como fora possível?

Sócrates — E se eu não pensar apenas em alguém com nariz e olhos, mas também de nariz chato e olhos saltados, porventura pensarei mais em ti do que em mim mesmo, ou em quem possuir traços idênticos?

Teeteto— Absolutamente.

Sócrates — Acho que não poderei fazer uma ideia perfeita de Teeteto, enquanto essa forma acha­tada de nariz não se diferenciar de todos os outros narizes rombos que eu já vi, e não tiver deixado no meu espírito sua impressão característica — e assim também os demais traços de tua constituição — de forma que se eu vier a encontrar-te amanhã, me faça esse traço lembrado de ti e me leve a formar uma opinião certa a teu respeito.

Teeteto — Isso mesmo.

Sócrates — Logo, a opinião verdadeira de qual­quer coisa diz respeito às diferenças.

Teeteto — Parece.

Sócrates — Então, que significa acrescentar à opinião verdadeira a explicação racional? Se quiser dizer o acréscimo de um juízo a respeito do que de­terminado objeto difere dos demais, é um ditame mais do que ridículo.

Teeteto — De que jeito?

Sócrates — Naquilo de que já temos uma opi­nião certa sobre o que o distingue de tudo o mais, mandarem que acrescentemos a opinião certa a res­peito do que o distingue das outras coisas. Nessas conexões, rodar o rolo sem parar, ou a mão do almofariz, ou virar à volta tudo o de que trata o provérbio, é coisinha de nada ao lado de semelhante preceito. Seria mais justo chamar-lhe conselho de cego, pois convidar a tomar o que já temos para aprendermos o que já pensamos, parece próprio de quem não enxerga um dedo adiante do nariz.

Teeteto — Então, dize o que pretendias há pou­co, ao me formulares tuas perguntas.

Sócrates — Meu filho, se a adjunção da expli­cação racional implica o conhecimento da diferença, não a simples opinião, admirável viria a ser essa bela explicação do conhecimento. Conhecer é adqui­rir conhecimento, não é isso mesmo?

Teeteto — Certo.

Sócrates — Logo, se perguntarem a esse indiví­duo o que é conhecimento, ele responderá que é a opinião certa aliada ao conhecimento da diferença. Pois a adjunção da explicação racional seria isso mesmo, de acordo com sua explicação.

Teeteto — É evidente.

Sócrates — Ora, seria o cúmulo da simplicidade, estando nós à procura do conhecimento, vir alguém dizer-nos que é a opinião certa aliada ao conheci­mento, seja da diferença ou do que for. Desse modo, Teeteto, conhecimento não pode ser nem sensação, nem opinião verdadeira, nem a explicação racional acrescentada a essa opinião verdadeira.

Teeteto — Parece mesmo que não é.

Sócrates — E ainda estaremos, amigo, em estado de gravidez e com dores de parto a respeito do co­nhecimento, ou já se deu a expulsão de tudo?

Teeteto — Sim, por Zeus! Com a tua ajuda, disse mais coisas do que havia em mim.

Sócrates — E não declarou nossa arte maiêu­tica que tudo isso não passa de vento que não merece ser criado?

Teeteto — Declarou.

XLIV.

Sócrates — Se depois disto, Teeteto, voltares a conceber, e conceberes mesmo, ficarás cheio de melhores frutos, graças à presente inves­tigação. Mas se continuares vazio, serás menos incô­modo aos de tua companhia, porque mais dócil e compreensivo, visto não imaginares saber o que não sabes. Isso, apenas, é que minha arte é capaz de fazer, nada mais; nem conheço o que os outros conhecem, esses grandes e admiráveis varões do nosso tempo e do passado. A arte de partejar, eu e minha mãe foi de um deus que a recebemos: ela, para as mulheres; eu, para os adolescentes de boa origem e para os dotados de qualquer beleza. Agora, preciso ir apresentar-me ao Pórtico do Rei, a fim de res­ponder à acusação que Méleto formulou contra mim. Amanhã, Teodoro, voltaremos a encontrar-nos aqui mesmo.

  • tradução: Carlos Alberto Nunes
  • fonte: Acrópolis

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